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FRENTE
DE BATALHA
David
Hathaway
Sou
economista de formação e estou aqui
como bioativista, biopolítico, bioiconoclasta,
tentando fazer umas reflexões. Também
como bioativista sou um dos guerreiros da linha
de frente da lei de acesso aos recursos genéticos.
Não sou operador da lei, mas faço
algumas interpretações.
No
Brasil, o ato de legislar é complicado. Considero
essa Oficina promovida pela FIOCRUZ uma frente de
batalha.
Inicialmente,
vou tecer alguns comentários mais gerais.
A
primeira coisa que me ocorre seria perguntar: existirá
o gene que predispõe a pessoa a ser cientista?
Se existe e se descobrirmos, o que faremos com ele?
Será que deveria ser isolado para conseguir
mais cientistas do que advogados ou maníacos-depressivos,
ou homossexuais, etc.?
Nas
questões de valores e palavras que estamos
usando aqui hoje, há valores que valem mais
do que outros. A meu ver, o enfoque principal dessa
discussão é a utilização:
quem vai usar, para quê? Pergunto também:
com que pro- priedade? Nos dois sentidos-chaves de
propriedade: propriedade ética e a pro- priedade
relativa ao dono das tecnologias para terapias. Haverá
um dono do ser humano criado por modificação
da linha germinal? Isso porque as pesquisas só
acontecem se há investidores, se há
donos: essa é a guerra em que estamos.
A
genética já está de fato fazendo
modificações no mundo e nós,
nessa frente de batalha da lei de acesso aos recursos
genéticos, estamos essencialmente tentando
negociar o enquadramento jurídico de um novo
bem no mercado. Eu faria um paralelo com o século
passado quando se discutia a legislação
antitruste nos Estados Unidos. O próprio capital
viu por bem puxar um pouco as rédeas do Rockfeller.
Hoje, utilizando essa mesma lei, estão puxando
um pouco as rédeas do Bill Gates, da Microsoft.
Mas esta semana vimos que já foi a AOL - American
On Line - que se juntou à Times Warner, que
já tinha se juntado à Yahoo etc. Esses
impérios estão se juntando, mas parece
que existe uma lei antitruste para ter certos limites:
para defender o oligopólio contra o monopólio
abusivo!
Estamos
em uma batalha para definir juridicamente o acesso
ao recurso genético, em geral, na natureza,
e temos que dar um tratamento também ao recurso
genético humano, que já virou mercadoria
ou "comodidade". Aliás, acho que
deveríamos começar a falar em comodidade,
porque commodities vem dos ingleses que compravam
comodidades em Lisboa, na época do mercantilismo.
Se nossos genes já são comodidades ou
o são em potencial, como puxaremos um pouco
as rédeas dessa situação? É
basicamente isso que é possível propor.
O
que estamos falando não é nada simbólico
em termos do valor desse patrimônio, não
é coisa legada e compartilhada mas sim, tem
um sentido estritamente econômico. A apropriação
do patrimônio genético já está
em curso. A bioprospecção é aplicada
não só nos bens da natureza, mas também
nos bens da cultura, da humanidade - as tribos indígenas
têm sido expropriadas. O papel do pobre hoje
não é só consumir, ele é
também a própria fonte, a mina de matérias-primas
de genes como os povos indígenas, gaumi, no
Panamá, os haga hai, na Papua Nova Guiné,
os suruí e os karitiana, no Brasil, cujo sangue
está sendo vendido, está no mercado,
disponível até pela Internet. O sangue
destes brasileiros ainda não foi patenteado,
que eu saiba, mas está à venda nos Estados
Unidos, imortalizado.
Mas
não é só pobre que virou mina
de genes. Temos um americano bem sucedido - John Ward
- branco, rico, gordo, bem alimentado, (eu o conheci,
pessoalmente, em Buenos Aires), que teve suas enzimas
patenteadas e perdeu a ação nos tribunais
dos Estados Unidos quando tentou, ao menos, ganhar
uma participação nos lucros do médico
que as patenteou. Há uma apropriação,
um exercício do direito de propriedade privada
sobre os genes. Isso já existe. É muita
força política. Muita ilusão
também. Na semana passada vimos que a Nasdaq
está com problemas, mas muitas ações
estão subindo por causa do anúncio do
setor de biotecnologias e da Celera anunciando estar
de posse do sequenciamento do genoma humano. Só
que não era exatamente isso que a empresa havia
feito. Promovendo a ilusão sobre o que está
vendendo faz subir suas ações. Essa
tecnologia que tomamos conhecimento pela imprensa
vem envolta em muito marketing, muita ilusão.
O
valor do patrimônio genético é
um valor de exclusão, é um novo instrumento.
Hoje em dia você não pode legalmente
excluir pessoas por serem judias, por serem negras,
por serem mulheres; está ficando mais difícil
excluir por serem homossexuais, se bem que na prática
isso existe, mas juridicamente não se pode
assumir. O que está se propondo agora é
que a pessoa, enquanto funcionária de uma empresa,
enquanto objeto de um seguro de uma seguradora, possa
ter seu valor calculado e seria incluída ou
não na equação econômica
daquela empresa. Sob o manto da lei, está se
criando um novo instrumento de exclusão nesse
sistema que está aí.
A
necessidade de uma "lei de acesso" é
para estabelecer a soberania do Brasil sobre seus
recursos genéticos. Soberania nacional e soberania
social também das comunidades indígenas
e tradicionais, sobre seus conhecimentos com relação,
por exemplo, às plantas. Um elemento desses
recursos genéticos é o recurso genético
humano. Há várias propostas. Como é
que vamos tratar? Somos antropocêntricos. Então,
há uma sensação generalizada
de que esse problema do recurso genético humano
deve ser tratado em outro lugar, não pode ser
resolvido completamente nesta lei. Mas esta é
uma lei que trata de recurso genético. Então,
tem que dizer alguma coisa porque, se a lei não
especificar o recurso genético humano, então
ele seguirá sendo um recurso - ou seja, um
bem econômico - humano, e continuará
à venda no mercado global, só que sujeito
à nova lei como qualquer outro recurso. Qual
é a nossa opção nesta lei para
diferenciar o tratamento a ser dado para o acesso
ao recurso genético humano no Brasil? Dizermos
que isto simplesmente está fora do âmbito
desta lei, é uma opção. Quer
dizer que o acesso ao recurso genético humano
continua livre, de graça, que qualquer um pode
levar e seguir levando ou explorando, se apropriando
privadamente como quiser, neste mercado global, sendo
patenteado? No Brasil não se pode patentear
seqüência genética. Mas lá
fora pode.
Outra opção é também estabelecer
nessa lei se haverá alguma condição
limitando o acesso ao recurso genético humano
que não seja para fins comerciais. A verdade
é que, na prática, ele já virou
uma mercadoria. Esse é o problema no fundo,
que não podemos resolver. O desafio, então,
é que condição estabelecer nesta
lei para não deixar o acesso absolutamente
livre. Uma proposta seria deixar para uma disposição
transitória que estabeleça condições
mínimas para o acesso ao recurso genético
humano. Por exemplo, desde que haja o consentimento
prévio do doador. Mas qual consentimento prévio?
O do indivíduo ou o da comunidade, ou seja,
o consentimento teria que ser individual, ou deve
ser coletivo? São aspectos difíceis
do problema que teremos que encarar. Como proceder
e com que princípios nesta lei? Será
que frente à mercantilização,
à "comoditização" da
vida, do genoma, que já é um fato, será
que ainda é possível, como propunha
Adriana Diaféria, amarrar o recurso genético,
a informação genética pelo menos
do ser humano, se não do resto, no reino dos
bens do interesse difuso? É uma abordagem possível
também.
Se
o recurso genético humano, já é
uma comodidade apropriada, privatizada, que já
tem dono, será que a nossa tarefa de regulamentar
o acesso se assemelha àquela das autoridades
das leis antitruste? Ficaremos restritos à
tarefa de defender um pouco o oligopólio contra
o monopólio? Ou será que essa "indústria
genômica" que está surgindo e dominando
o mundo é mesmo o bonde da história?
Ela ainda poderá ser controlada nessa hora
da "ética de guerra"? Haveria algum
espaço para objeções de consciência?
Apenas
para deixar pontuada minha posição,
não concordo com essa expansão do patenteamento
para novas áreas, como a dos recursos genéticos
humanos. Acho que há muitos que não
concordam com isso e há que se firmar critérios
fortes para aplicação numa lei de patentes.
Para que áreas, selecionar que coisas devem
ou não ser protegidas por patente, dependendo
do interesse nacional, e as formas de concessão
desse direito, os limites ao direito, etc.
Acho
muito importante entendermos o significado da "indústria
genômica". Estão falando em genômica,
que já virou não sã um campo
tecnológico, mas um setor da indústria,
inclusive, fusionando as indústrias eletrônica
e informática com a biologia. São novos
nexus de poder empresarial global e monopólico.
Daqui a pouco teremos a fusão da Monsanto com
a Microsoft para ter a MS global, para promover a
união mais completa desses dois campos, hoje
ainda separados.
Esse
uso da informação genética não
é só para fazer engenharia genética,
é para manipular essa informação,
para discriminar as pessoas, para que as pessoas com
qualquer previsão de doença geneticamente
determinada não tenham mais futuro no mercado
como trabalhadores, para que o seu valor seja diminuído.
Sendo uma sociedade cada vez mais globalizadamente
excludente, isso vira uma forma de eugenia social.
Não eliminar fisicamente apenas no útero
da mãe, mas impedir que essa população
tenha futuro no mercado de trabalho, e que não
tenha também possibilidade de cobertura por
seguros. Porque o seguro sairá muito caro.
E como uma pessoa sem trabalho vai pagar um seguro,
inclusive mais caro, do que a pessoa sadia, que pode
trabalhar? É uma eugenia social a longo prazo!
Queria deixar essa idéia registrada e felicitar
a FIOCRUZ. Este é um dos espaços onde,
não só a Senadora Marina Silva, mas a sociedade
civil engajada nessa proposta sempre encontrou um
lugar de diálogo, de interesse, de poder ser
ouvida e ter muito o que ouvir nesse processo concreto
de aprendizado. Espero que esta iniciativa leve pelo
menos uma parte do Executivo a engajar-se no diálogo
com o Congresso porque, infelizmente, o Executivo
se eximiu, por decisão própria, de participar
de qualquer diálogo com senadores, a sociedade,
a comunidade. Desinteresse não é apenas
ser contra, é não comparecer. Fora eu
e algumas ONGs, o gabinete da Marina Silva, alguns
senadores e cientistas e poucas pessoas de fora acompanharam
realmente esse processo no Senado. Estamos esperando
há quase dois anos que o Presidente da Câmara
dos Deputados, Michel Temmer, receba o sinal verde
para deixar esse projeto caminhar. E esse sinal verde
viria do Executivo. Talvez, venha algum dia, para
que esse projeto possa voltar a tramitar efetivamente
no Legislativo.
* * * * * * *
NOTAS
Editado por Fernanda Carneiro
a partir das falas transcritas da Oficina de Abril
e revisadas pelo autor.
Membro da AS-PTA. Assessoria
e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa.
V. artigo da senadora neste
livro Medida descabida (N.O.)