LIMITE

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BIOÉTICA E PROCESSOS DE DECISÃO[1]
André Rangel Rios[2]

A discussão sobre bioética envolve múltiplos aspectos.[3] Apreciar este debate amplo e variado, é, sem dúvida, difícil e arriscado. Mas, atendendo a nossas responsabilidades como observadores e críticos de idéias e tendências de nossa sociedade, devemos, aproveitando o crivo conscienciosamente oferecido pelos argumentos dos profissionais e pesquisadores presentes, arriscar, buscando, ainda que às apalpadelas, pressentir as tendências dúbias ou perversas que, por vezes, nós mesmos ou plantamos, ou nutrimos.

A questão aqui proposta, portanto, se baseia em um diagnóstico provisório, de modo que prudente será que tenhamos claro que não só a questão mas o diagnóstico por ela pressuposto igualmente deverá ser debatido. Em outras palavras, estamos aqui com o objetivo de debater, e a função de um debate, como o que me foi proposto, é o de amadurecer questões. Com esta finalidade apresento estas considerações que se seguem.

Com base na observação da composição deste encontro, bem como na do anterior[4] e ainda na de outros que tive notícia, assim como na do livro[5] do qual participei, diria que a discussão em bioética tende a privilegiar duas vertentes de problematização. Por um lado, são os princípios mais gerais que são discutidos; por outro lado, são as questões mais imediatas da prática médica e das pesquisas com seres humanos que são vistas como embaraçosas. Em ambas vertentes são convocados sobretudo filósofos, juristas e médicos. Com muito menos freqüência vemos cientistas sociais como antropólogos ou sociólogos. Um traço peculiar é a presença de psicanalistas. Penso que analisar a inserção deste grupo é uma tarefa complexa, pois passaria pela discussão das transformações do campo psicanalítico nas últimas décadas, o que é para nós, aqui, de difícil realização. Mas é, em todo caso, uma questão a ser melhor pensada. O que vejo é que a expectativa que gera o debate neste campo amplo dito bioética é a de que os filósofos e os juristas darão as contribuições de maior peso. Tudo se passa como se estivéssemos, no vertiginoso mundo atual, desorientados diante da desestabilização dos princípios universais, supostamente tão necessários para que qualquer ética se sustente, de modo que não se teria algo que norteasse a elaboração de uma legislação para a biotecnologia, para este domínio tão mutável pelo implacável progresso das pesquisas as mais fantásticas. Haveria uma sensação de perplexidade, oscilando entre a admiração e o horror: admiração pelo valoroso progresso do saber humano e horror pela desumanização do próprio corpo do homem, tornado manipulável pela genética. Esta ambígua sensação de perplexidade seria, por sua vez, sensacionalisticamente manipulada pela mídia. Diante desta sensação de descontrole tanto dos empreendimentos tecnológicos quanto da mídia, o que, porém, é reivindicado como urgente é que os princípios universais sejam revigorados, para se evitar de as coisas irem longe demais ou rápido demais.

Como paladinos do conservadorismo, não só social mas também biogenético, clama-se pelos filósofos e pelos juristas. Entende-se que há três aspectos especialmente problemáticos:
1. os princípios éticos a serem universalmente seguidos;
2. as formulações jurídicas que respeitariam tais princípios;
3. a aplicação prática destes princípios e leis.

Embora nem sempre me pareça que filósofos e juristas se tenham reciprocamente em grande conta, já constatei em algumas discussões que haveria um pressuposto difuso de que cabe a eles trabalhar em conjunto nestas questões, tão ansiogênicas, que nos trazem a prosperidade biotecnológica.

Proponho que, embora o debate ético e jurídico seja importante e incontornável, no momento, o aspecto sociopolítico da discussão em torno da biotecnologia seja aprofundado e problematizado. Ou seja, não se deve ver essa questão como uma predominante formal de como decidir, em função de que princípios decidir, mas, sobretudo, vista como a questão de quem decide e controla a implementação das decisões.
Uma decisão não necessariamente só vem a ser tomada se há consenso quanto aos princípios de decisão; uma decisão pode ser tomada quando há desacordos múltiplos quanto aos princípios a serem adotados. Problemas práticos muitas vezes exigem decisões rápidas; nem sempre se pode ficar adiando empreendimentos práticos na expectativa de um consenso que pode nunca acontecer. Não se pode adotar uma moratória para todas as pesquisas em biotecnologia na espera de que se chegue a um consenso amplo e detalhado. Tampouco se pode conceder carta branca aos centros de pesquisa ou à indústria farmacêutica. Todo mundo sabe que a democracia não é um abstrato direito de se falar o que quiser e votar em quem quiser. A democracia é a possibilidade real de expressar opiniões e defender direitos individuais e sociais. Ela só existe se construída e mantida com participação e luta, não só através de posicionamentos individuais, mas de posicionamentos institucionais os mais diversos. Só há democracia e direitos individuais se houver o constante trabalho de atualização dos direitos democráticos em instituições que assegurem sua efetividade.

Assim, por exemplo, no caso da reprodução assistida, pode-se ficar discutindo se a redução embrionária é eticamente aceitável ou não, mas pode-se também buscar entender o que leva as pessoas a aceitarem se submeter a procedimentos tão dispendiosos e de eficácia limitada.[6] Ou seja, pode-se buscar estabelecer quais os dispositivos que criam e aumentam esta “necessidade” de um casal ter filhos com o próprio material genético (ou só com o de uma parte do casal, etc.), bem como descrever o circuito institucional que leva uma mulher da consulta ginecológica e diagnóstico de infertilidade (segundo quais critérios? como estes critérios vieram se alterando?) até submeter-se aos procedimentos da reprodução assistida. Quais os gastos médios destas pacientes? Qual a influência da mídia neste processo de decisão? O que pensam, o que sentem os casais que não tiveram êxito? Todas estas pesquisas socio-antropológicas deveriam se somar à discussão inicial da “bioética de gabinete”, não só para que se proponha que sejam elaboradas novas leis, tão necessárias aos novos tempos, mas também, para que a sociedade possa se posicionar e rever suas posições.

Um outro exemplo: a discussão sobre o aborto passa não só por uma discussão de princípios éticos (uma discussão, aliás, que parece longe de chegar a qualquer consenso) e uma aprovação, digamos, legalizando o aborto, mas por uma série de transformações sociais que assegurariam que o direito legal obtido viesse a ser praticado. Ou seja, o aborto pode ser legal, por exemplo! para menores estupradas, mas os hospitais públicos podem não ser obrigados a disponibilizar este serviço. Pode haver o serviço disponibilizado, mas ser obrigatória uma autorização judicial que leva seis meses para ser emitida. Pode haver uma autorização judicial rápida, mas ser administrativamente exigida uma entrevista de aconselhamento em que a jovem vem a ser culpabilizantemente doutrinada a não se submeter ao aborto. Ou seja, para além da discussão ética e da promulgação legal há uma série de instâncias institucionais e sociopolíticas que vêm ocorrer assegurar ou impedir a efetividade do direito e da decisão. Também pode ocorrer o contrário: os filósofos podem se opor a uma determinada prática, as leis proibirem, os médicos desaconselharem e as igrejas condenarem, mas a sociedade seguir ignorando tudo.

Sei que sobretudo as discussões jurídicas não são alheias à questão de como uma lei vem a ser posta em prática. Muitas vezes a lei vem associada à indicação de que instância governamental deverá implementá-la e com quais recursos. Não tenho visto nos debates de questões bioéticas uma ênfase, que talvez fosse necessária, em analisar como se dá este processo pleno de decisão e controle social, ou seja, analisar como se dá ou pode se dar uma decisão social que, para além da decisão de princípios, seja uma decisão encampada e efetivada por instâncias sociopolíticas que tanto contribuam para que a decisão represente a multiplicidade social quanto possibilitem o controle desta efetivação.[7]

Cada questão bioética parece ter suas peculiaridades no que toca ao que chamei de processo pleno de decisão e controle social. Referi-me rapidamente a dois exemplos: a reprodução assistida e o aborto. No caso do controle social do financiamento e dos resultados das pesquisas sobre o genoma são já outras questões que teriam de ser focadas. Neste caso, o problema de como controlar as inovações biotecnológicas se confude com o de como controlar as mais diversas inovações da tecnociência e seus efeitos contraprodutivos. Há ainda - e isto é já em si uma questão bioética - a parceria suspeitosa entre mídia e divulgação do debate bioético,[8] influenciando a sociedade ao familiarizá-la, ora com Jekyll ora com Hyde.

Extremamente importante é a questão bem mais geral, mas sem dúvida fundamental, da alocação de recursos, ou seja, há que se ter clareza que a alo- cação de recursos, em quase todos os níveis, é uma das mais graves questões de bioética em nosso país. E neste caso, sem negar que uma discussão ética da alocação de recursos, bem como o debate jurídico e constitucional acerca das possibilidades de uso dos recursos da União para a sua utilização na saúde e previdência (ou do contingenciamento de recursos constitucionalmente destinados à saúde), assim como do uso dos recursos para pesquisa, seja importante, poder-se-ia, contudo, reconhecer que a maior dificuldade é a insuficiência dos mecanismos de controle por parte dos contribuintes e cidadãos em geral dos recursos governamentais.

Em resumo, o que estou fazendo é mostrar-me a favor desta tendência atual[9] de ampliar o debate bioético deslocando a ênfase ainda forte numa bioética filosófico-jurídica para priorizar uma bioética sociopolítica.


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REFERÊNCIAS

CORRÊA, Marilena. Tecnologias Reprodutivas. cap. 5: "A introducão da reproducão assistida no Brasil". In Os Limites da Biologia ou uma Biologia sem Limites. Rio de Janeiro: Uerj, 2000 (no prelo).

CORRÊA, Marilena. As novas tecnologias reprodutivas: uma revolução a ser assimilada In Physis. Revista de Saúde Coletiva vol. 7 n° 1 (1997) p. 60-98.

CORRÊA Marilena. Nova tecnologias reprodutivas: bem-vindas reflexões feminina, ética e psicanalítica In: Estudos Feministas IFCS/UFRJ vol. 6 n° 1 (1998) p. 126-137.

CORRÊA, Marilena. Medicalization of reproduction: new reprodutive technologies, images of child and family among a group of women from the city of Rio de Janeiro Journal Social Sciences 3 (1-2): 73-87, 1999.

DINIZ, Débora. Da Impossibilidade do Trágico: Conflitos Morais e Bioética. Tese de Doutorado, UNB, Brasília: 227pp. 1997.

RIOS, André Range et al. A Bioética no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1999.


NOTAS

[1] Texto apresentado e lido na Oficina Genoma Humano: Limites ao Acesso e Uso (FIOCRUZ, abril, 2000).

[2] Médico/filósofo, professor de filosofia do Instituto de Medicina Social/UERJ.

[3] Não me refiro portanto à bioética como algo que possa ser entendido apenas como uma disciplina da filosofia, mas como um conjunto de discussões em tomo de temas suscitados principalmente pelo uso da biotecnologia.

[4] Carneiro, Femanda (org.). A Moralidade dos Atos Científicos. Rio de janeiro: FIOCRUZ, 1999.

[5] Rios, André Rangel et al. A Bioética no Brasil. Rio de janeiro: Espaço e Tempo, 1999.

[6] Cf. Corrêa, Marilena Medicalization of reproduction: new reprodutive technologies, images of child and family among a group of women from the city of Rio de Janeiro Journal Social Sciences 3 (1-2): 73-87, 1999.

[7] Não estou dizendo que a bioética (ou tudo que se costuma subsumir sob este nome) não se preocupe com a participação da sociedade e dos grupos concernidos nos processos de decisão, mas sugiro que seja posto em debate se tal participação, como ela tem funcionado e como poderia se expandir, não estaria sendo pouco tematizada.

[8] Cf. Corrêa, Marilena Tecnologias Reprodutivas. Os Limites da Biologia ou uma Biologia sem Limites Rio de janeiro: EdUeli, 2000 (no prelo) cap. 5: “A introdução da reproducão assistida no Brasil”. Idem Nova tecnologia reprodutiva: uma revolucão a ser assimilada In: Physis. Revista de Saúde Coletiva vol. 7 no 1 (1997) p. 60-98.

[9] Cf. Débora Diniz, Da Impossibilidade do Trágico: Conflitos Morais e Bioética (Tese de Doutorado, UNE, Brasília, 227pp.); Marilena Corrêa Nova.tecnologia reprodutiva: bem-vindas reflexões feminista, ética e psicanalítica in: Estudos Feministas IFCS/UFRJ vol. 6 no 1 (1998) p. 126-137.