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BIOÉTICA
E PROCESSOS DE DECISÃO
André
Rangel Rios
A
discussão sobre bioética envolve
múltiplos aspectos. Apreciar este
debate amplo e variado, é, sem dúvida,
difícil e arriscado. Mas, atendendo a nossas
responsabilidades como observadores e críticos
de idéias e tendências de nossa sociedade,
devemos, aproveitando o crivo conscienciosamente
oferecido pelos argumentos dos profissionais e
pesquisadores presentes, arriscar, buscando, ainda
que às apalpadelas, pressentir as tendências
dúbias ou perversas que, por vezes, nós
mesmos ou plantamos, ou nutrimos.
A
questão aqui proposta, portanto, se baseia
em um diagnóstico provisório, de modo
que prudente será que tenhamos claro que
não só a questão mas o diagnóstico
por ela pressuposto igualmente deverá ser
debatido. Em outras palavras, estamos aqui com o
objetivo de debater, e a função de
um debate, como o que me foi proposto, é
o de amadurecer questões. Com esta finalidade
apresento estas considerações que
se seguem.
Com
base na observação da composição
deste encontro, bem como na do anterior e ainda na
de outros que tive notícia, assim como na
do livro do qual participei,
diria que a discussão em bioética
tende a privilegiar duas vertentes de problematização.
Por um lado, são os princípios mais
gerais que são discutidos; por outro lado,
são as questões mais imediatas da
prática médica e das pesquisas com
seres humanos que são vistas como embaraçosas.
Em ambas vertentes são convocados sobretudo
filósofos, juristas e médicos. Com
muito menos freqüência vemos cientistas
sociais como antropólogos ou sociólogos.
Um traço peculiar é a presença
de psicanalistas. Penso que analisar a inserção
deste grupo é uma tarefa complexa, pois passaria
pela discussão das transformações
do campo psicanalítico nas últimas
décadas, o que é para nós,
aqui, de difícil realização.
Mas é, em todo caso, uma questão a
ser melhor pensada. O que vejo é que a expectativa
que gera o debate neste campo amplo dito bioética
é a de que os filósofos e os juristas
darão as contribuições de maior
peso. Tudo se passa como se estivéssemos,
no vertiginoso mundo atual, desorientados diante
da desestabilização dos princípios
universais, supostamente tão necessários
para que qualquer ética se sustente, de modo
que não se teria algo que norteasse a elaboração
de uma legislação para a biotecnologia,
para este domínio tão mutável
pelo implacável progresso das pesquisas as
mais fantásticas. Haveria uma sensação
de perplexidade, oscilando entre a admiração
e o horror: admiração pelo valoroso
progresso do saber humano e horror pela desumanização
do próprio corpo do homem, tornado manipulável
pela genética. Esta ambígua sensação
de perplexidade seria, por sua vez, sensacionalisticamente
manipulada pela mídia. Diante desta sensação
de descontrole tanto dos empreendimentos tecnológicos
quanto da mídia, o que, porém, é
reivindicado como urgente é que os princípios
universais sejam revigorados, para se evitar de
as coisas irem longe demais ou rápido demais.
Como
paladinos do conservadorismo, não só
social mas também biogenético, clama-se
pelos filósofos e pelos juristas. Entende-se
que há três aspectos especialmente
problemáticos:
1. os princípios éticos a serem universalmente
seguidos;
2. as formulações jurídicas
que respeitariam tais princípios;
3. a aplicação prática destes
princípios e leis.
Embora
nem sempre me pareça que filósofos
e juristas se tenham reciprocamente em grande conta,
já constatei em algumas discussões
que haveria um pressuposto difuso de que cabe a
eles trabalhar em conjunto nestas questões,
tão ansiogênicas, que nos trazem a
prosperidade biotecnológica.
Proponho
que, embora o debate ético e jurídico
seja importante e incontornável, no momento,
o aspecto sociopolítico da discussão
em torno da biotecnologia seja aprofundado e problematizado.
Ou seja, não se deve ver essa questão
como uma predominante formal de como decidir, em
função de que princípios decidir,
mas, sobretudo, vista como a questão de quem
decide e controla a implementação
das decisões.
Uma decisão não necessariamente só
vem a ser tomada se há consenso quanto aos
princípios de decisão; uma decisão
pode ser tomada quando há desacordos múltiplos
quanto aos princípios a serem adotados. Problemas
práticos muitas vezes exigem decisões
rápidas; nem sempre se pode ficar adiando
empreendimentos práticos na expectativa de
um consenso que pode nunca acontecer. Não
se pode adotar uma moratória para todas as
pesquisas em biotecnologia na espera de que se chegue
a um consenso amplo e detalhado. Tampouco se pode
conceder carta branca aos centros de pesquisa ou
à indústria farmacêutica. Todo
mundo sabe que a democracia não é
um abstrato direito de se falar o que quiser e votar
em quem quiser. A democracia é a possibilidade
real de expressar opiniões e defender direitos
individuais e sociais. Ela só existe se construída
e mantida com participação e luta,
não só através de posicionamentos
individuais, mas de posicionamentos institucionais
os mais diversos. Só há democracia
e direitos individuais se houver o constante trabalho
de atualização dos direitos democráticos
em instituições que assegurem sua
efetividade.
Assim,
por exemplo, no caso da reprodução
assistida, pode-se ficar discutindo se a redução
embrionária é eticamente aceitável
ou não, mas pode-se também buscar
entender o que leva as pessoas a aceitarem se submeter
a procedimentos tão dispendiosos e de eficácia
limitada. Ou seja, pode-se
buscar estabelecer quais os dispositivos que criam
e aumentam esta “necessidade” de um
casal ter filhos com o próprio material genético
(ou só com o de uma parte do casal, etc.),
bem como descrever o circuito institucional que
leva uma mulher da consulta ginecológica
e diagnóstico de infertilidade (segundo quais
critérios? como estes critérios vieram
se alterando?) até submeter-se aos procedimentos
da reprodução assistida. Quais os
gastos médios destas pacientes? Qual a influência
da mídia neste processo de decisão?
O que pensam, o que sentem os casais que não
tiveram êxito? Todas estas pesquisas socio-antropológicas
deveriam se somar à discussão inicial
da “bioética de gabinete”, não
só para que se proponha que sejam elaboradas
novas leis, tão necessárias aos novos
tempos, mas também, para que a sociedade
possa se posicionar e rever suas posições.
Um
outro exemplo: a discussão sobre o aborto
passa não só por uma discussão
de princípios éticos (uma discussão,
aliás, que parece longe de chegar a qualquer
consenso) e uma aprovação, digamos,
legalizando o aborto, mas por uma série de
transformações sociais que assegurariam
que o direito legal obtido viesse a ser praticado.
Ou seja, o aborto pode ser legal, por exemplo! para
menores estupradas, mas os hospitais públicos
podem não ser obrigados a disponibilizar
este serviço. Pode haver o serviço
disponibilizado, mas ser obrigatória uma
autorização judicial que leva seis
meses para ser emitida. Pode haver uma autorização
judicial rápida, mas ser administrativamente
exigida uma entrevista de aconselhamento em que
a jovem vem a ser culpabilizantemente doutrinada
a não se submeter ao aborto. Ou seja, para
além da discussão ética e da
promulgação legal há uma série
de instâncias institucionais e sociopolíticas
que vêm ocorrer assegurar ou impedir a efetividade
do direito e da decisão. Também pode
ocorrer o contrário: os filósofos
podem se opor a uma determinada prática,
as leis proibirem, os médicos desaconselharem
e as igrejas condenarem, mas a sociedade seguir
ignorando tudo.
Sei
que sobretudo as discussões jurídicas
não são alheias à questão
de como uma lei vem a ser posta em prática.
Muitas vezes a lei vem associada à indicação
de que instância governamental deverá
implementá-la e com quais recursos. Não
tenho visto nos debates de questões bioéticas
uma ênfase, que talvez fosse necessária,
em analisar como se dá este processo pleno
de decisão e controle social, ou seja, analisar
como se dá ou pode se dar uma decisão
social que, para além da decisão de
princípios, seja uma decisão encampada
e efetivada por instâncias sociopolíticas
que tanto contribuam para que a decisão represente
a multiplicidade social quanto possibilitem o controle
desta efetivação.
Cada
questão bioética parece ter suas peculiaridades
no que toca ao que chamei de processo pleno de decisão
e controle social. Referi-me rapidamente a dois
exemplos: a reprodução assistida e
o aborto. No caso do controle social do financiamento
e dos resultados das pesquisas sobre o genoma são
já outras questões que teriam de ser
focadas. Neste caso, o problema de como controlar
as inovações biotecnológicas
se confude com o de como controlar as mais diversas
inovações da tecnociência e
seus efeitos contraprodutivos. Há ainda -
e isto é já em si uma questão
bioética - a parceria suspeitosa entre mídia
e divulgação do debate bioético, influenciando
a sociedade ao familiarizá-la, ora com Jekyll
ora com Hyde.
Extremamente
importante é a questão bem mais geral,
mas sem dúvida fundamental, da alocação
de recursos, ou seja, há que se ter clareza
que a alo- cação de recursos, em quase
todos os níveis, é uma das mais graves
questões de bioética em nosso país.
E neste caso, sem negar que uma discussão
ética da alocação de recursos,
bem como o debate jurídico e constitucional
acerca das possibilidades de uso dos recursos da
União para a sua utilização
na saúde e previdência (ou do contingenciamento
de recursos constitucionalmente destinados à
saúde), assim como do uso dos recursos para
pesquisa, seja importante, poder-se-ia, contudo,
reconhecer que a maior dificuldade é a insuficiência
dos mecanismos de controle por parte dos contribuintes
e cidadãos em geral dos recursos governamentais.
Em
resumo, o que estou fazendo é mostrar-me
a favor desta tendência atual de ampliar
o debate bioético deslocando a ênfase
ainda forte numa bioética filosófico-jurídica
para priorizar uma bioética sociopolítica.
* * * * * * *
REFERÊNCIAS
CORRÊA,
Marilena. Tecnologias Reprodutivas. cap. 5: "A
introducão da reproducão assistida
no Brasil". In Os Limites da Biologia ou uma
Biologia sem Limites. Rio de Janeiro: Uerj, 2000
(no prelo).
CORRÊA,
Marilena. As novas tecnologias reprodutivas: uma
revolução a ser assimilada In Physis.
Revista de Saúde Coletiva vol. 7 n° 1
(1997) p. 60-98.
CORRÊA
Marilena. Nova tecnologias reprodutivas: bem-vindas
reflexões feminina, ética e psicanalítica
In: Estudos Feministas IFCS/UFRJ vol. 6 n° 1
(1998) p. 126-137.
CORRÊA,
Marilena. Medicalization of reproduction: new reprodutive
technologies, images of child and family among a
group of women from the city of Rio de Janeiro Journal
Social Sciences 3 (1-2): 73-87, 1999.
DINIZ,
Débora. Da Impossibilidade do Trágico:
Conflitos Morais e Bioética. Tese de Doutorado,
UNB, Brasília: 227pp. 1997.
RIOS,
André Range et al. A Bioética no Brasil.
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1999.
NOTAS
Texto apresentado e lido
na Oficina Genoma Humano: Limites ao Acesso e Uso
(FIOCRUZ, abril, 2000).
Médico/filósofo,
professor de filosofia do Instituto de Medicina
Social/UERJ.
Não me refiro portanto
à bioética como algo que possa ser
entendido apenas como uma disciplina da filosofia,
mas como um conjunto de discussões em tomo
de temas suscitados principalmente pelo uso da biotecnologia.
Carneiro, Femanda (org.).
A Moralidade dos Atos Científicos. Rio de
janeiro: FIOCRUZ, 1999.
Rios, André Rangel
et al. A Bioética no Brasil. Rio de janeiro:
Espaço e Tempo, 1999.
Cf. Corrêa, Marilena
Medicalization of reproduction: new reprodutive
technologies, images of child and family among a
group of women from the city of Rio de Janeiro Journal
Social Sciences 3 (1-2): 73-87, 1999.
Não estou dizendo
que a bioética (ou tudo que se costuma subsumir
sob este nome) não se preocupe com a participação
da sociedade e dos grupos concernidos nos processos
de decisão, mas sugiro que seja posto em
debate se tal participação, como ela
tem funcionado e como poderia se expandir, não
estaria sendo pouco tematizada.
Cf. Corrêa, Marilena
Tecnologias Reprodutivas. Os Limites da Biologia
ou uma Biologia sem Limites Rio de janeiro: EdUeli,
2000 (no prelo) cap. 5: “A introdução
da reproducão assistida no Brasil”.
Idem Nova tecnologia reprodutiva: uma revolucão
a ser assimilada In: Physis. Revista de Saúde
Coletiva vol. 7 no 1 (1997) p. 60-98.
Cf. Débora Diniz,
Da Impossibilidade do Trágico: Conflitos
Morais e Bioética (Tese de Doutorado, UNE,
Brasília, 227pp.); Marilena Corrêa
Nova.tecnologia reprodutiva: bem-vindas reflexões
feminista, ética e psicanalítica in:
Estudos Feministas IFCS/UFRJ vol. 6 no 1 (1998)
p. 126-137.