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O PODER E AS RESPONSABILIDADES DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO[1]
Wim Degrave[2]

É preciso lembrar que qualquer opinião sobre a posição da Ciência e o seu poder e responsabilidades é fragmentária e terá, sem dúvida, uma feição pessoal. Não pretendo trazer uma visão histórica sobre o papel da Ciência na sociedade, pois esta pode ser encontrada em farta bibliografia, nem tentarei mencionar diferentes áreas da Ciência e seu impacto sobre a sociedade, pois isto traria uma abrangência enorme. Indicarei apenas alguns pontos específicos para discussão, os quais sejam talvez menos abordados nos debates científicos.

A Ciência tem como objetivo a construção de um modelo consistente, abrangente e unificado do Universo e da sua evolução, a partir de fenômenos observados ou postulados; a verificação do(s) modelo(s) a partir de simulação da "realidade"; a construção de previsões precisas sobre fenômenos futuros, e a transformação do conhecimento em progresso tecnológico e melhoria na qualidade de vida do ser humano.

A Ciência vive uma situação delicada entre o ímpeto de aumentar o conhecimento, e a expectativa de transformar esse conhecimento em aplicações práticas e úteis para a sociedade. Vive sob o questionamento da sociedade quanto à legitimidade, praticidade e veracidade do conhecimento científico. Quando a Ciência pesquisa fenômenos num plano teórico, não há grande questionamento social, apenas debates e divergências com defensores de modelos alternativos. Tradicionalmente, há áreas de divergência com as visões religiosas e esotéricas da origem do Universo e da vida, e há, até hoje, questionamentos relativos a teorias que formam a base de certas práticas medicinais "alternativas". Mas, desde os gregos, a Ciência tem se desenvolvido com crescente impacto, e hoje reina quase de forma absoluta, com status de "visão oficial" da sociedade sobre o Universo. Até porque não há nenhum outro modelo que consegue medir e prever com tanto sucesso e previsão, e a nossa sociedade "técnica-tecnológica" de hoje depende 100% desta Ciência "oficial".

Curiosamente, e em parte devido à sua grande complexidade, somente uma pequena porcentagem de pessoas no mundo consegue adquirir uma visão abrangente do sistema científico, e ninguém consegue compreender em detalhe mais que uma fração do conhecimento e do método científico. Há, portanto, uma distância enorme entre o modelo/sistema "oficial" e as visões, opiniões e percepções individuais das pessoas.

Entretanto, quando se trata da aplicação do conhecimento científico, ao interferir nos aspectos básicos e práticos de nossa vida, surgem áreas de conflito importantes. E a Ciência convive ainda com um problema básico muito sério de desigualdade social. O impacto benéfico das descobertas científicas não é igualmente distribuído por todas as pessoas e isso parece paradoxal, pois a Ciência e as suas aplicações deveriam ter como objetivo a melhoria da qualidade das nossas vidas, a educação, a compreensão das pessoas sobre a sua realidade... Mas, não houve, de modo algum, uma divisão igualitária dos benefícios do que a Ciência se propõe a fazer e faz.

Obviamente é difícil discutir o quanto a Ciência, em si, tem responsabilidade nessa injusta distribuição e se a tarefa de levar benefícios a todos é da sociedade e/ou da Ciência, que é uma atividade dessa mesma sociedade. O grau de distribuição, e também a capacidade da geração e absorção do progresso tecnológico têm uma relação direta com o modelo econômico/social adotado por esta sociedade, e este, por sua parte, é principalmente determinado pelos valores morais e éticos praticados, e em menor grau pelos pre-conizados ou idealizados, da humanidade. Em outras palavras, o progresso científico e o desenvolvimento de aplicações tecnológicas foram estimulados, na sua maior parte, pelo poder político-econômico, e mais recentemente, pela economia de mercado, ou seja, pelo mesmo poder que é, pelo menos parcialmente, responsável pela manutenção das desigualdades sociais.

Há um consenso de que as aplicações da Ciência devem se desenvolver para o bem-estar do Homem. Quando a Ciência pode interferir no bem-estar das pessoas e a distribuição desse benefício não acontece, trata-se de uma questão referente à economia, às finanças, à organização do espaço geopolítico, etc., o que não é uma discussão central para este Seminário. Devo, então, afirmar que a Ciência, em si, não tem a responsabilidade direta sobre isso. Ela pode contribuir com o pensamento sobre essa realidade, mas não tem uma responsabilidade direta porque tal situação, de fato, depende do modelo que a sociedade tem para sua própria organização e divisão dos recursos econômicos, espaciais e sociais. Entretanto, o cientista deve refletir e estar de acordo com os propostos da sua atividade e com o projeto no qual se engaje, pois ele tem uma responsabilidade direta sobre o uso de aplicações que foram objeto do desenvolvimento. Este princípio se aplica especialmente a pesquisas com fins destrutivos e militares, as que envolvem fronteiras científicas e questionamentos éticos, ou as que possam ter um impacto grande e iminente sobre a saúde e o meio ambiente.

Pensemos em mais alguns pontos onde a presença da Ciência nos remete para a discussão sobre suas responsabilidades.

A primeira responsabilidade do dentista é se conscientizar sobre a relatividade da verdade científica e não aceitá-la como a verdade absoluta, pois a realidade que vivemos e desejamos estudar é comum mas subjetiva, e pode ser compreendida em muitas dimensões que a constituem, jamais podendo a totalidade ser conhecida. Além disto, a percepção sempre partida e interfere nesta realidade.

A Ciência, quando atua no desenvolvimento teórico, pode oferecer visões inovadoras sobre a nossa realidade: desde os limites do Cosmo, a origem e organização da vida, a relação do ser humano com o meio ambiente e a necessária preservação dos dois, os modos de interferir na própria evolução... Pode-se até mesmo questionar a visão positivista do conhecimento científico e seus métodos-experimentação, a lógica e a verificação matemática.

Mas, o método científico é de tal modo aceito pelo senso comum que é considerado "exato", não há mais grandes questionamentos, nem mesmo entre Religião e Ciência, pois à medida que a Ciência analisa ou supera um aspecto antes considerado religioso, as pessoas e as próprias religiões, pelo menos a católica, têm recuado em seus conceitos e dogmas. Nesse aspecto, permanece a discussão eterna: a Ciência "invade" o campo religioso?

O pensamento ocidental tem aceito que a Ciência tem aumentado seu campo de conhecimento e que a Religião, sem muitos problemas, consegue preservar o seu. Há, claro, uma área de conflito quanto à criação e ao conceito da vida, ou sobre o quanto podemos interferir e modificar os seres vivos e é preciso aprofundar constantemente essa discussão.

Um outro campo de interferência próximo da Ciência será o da própria visão sobre o Cosmo. A elucidação sobre as outras eventuais formas de vida no Cosmo e novas teorias sobre sua estrutura e evolução terão um impacto direto sobre nossa visão religiosa e nossa situação perante a idéia de Deus. Talvez um dia, os habitantes da Terra terão que reconhecer plenamente sua condição infinitesimal, e que são um grupinho entre muitos.

Quando se discute ética e responsabilidade da Ciência, há de se observar a distinção importante existente entre o objeto do saber e as metodologias utilizadas. Quando falamos sobre Ética, devemos levar em conta se a pesquisa é teórica ou se trata de uma aplicação científica visando atender a necessidades. As metodologias científicas, creio, devem ser um assunto maior neste Seminário, porque há os aspectos de biossegurança, de ética em pesquisa, de utilização de seres vivos como modelos para experimentação, e dos impactos sobre a biodiversidade do planeta. Creio que nenhum cientista faz restrição às discussões éticas sobre a metodologia. Há um consenso sobre a necessidade de haver normas sobre pesquisas clínicas e a utilização de animais; sobre a fiscalização nos campos da biossegurança e ética em pesquisa; e sobre a importância de se desenvolver um pensamento rigoroso a respeito da preservação da biodiversidade.

Nenhum campo de estudos é isolado, sendo necessário ter consciência de outros fatores e intercessões. Por exemplo, quando se trata da interferência da Ciência no bem-estar relativo à medicina preventiva e curativa, ela tem um poder limitado no impacto de sua ação, pois também depende da situação nutricional das pessoas que procuram ajuda, da modelação do meio ambiente, das condições de habitação, da facilidade de acesso a produtos básicos, do sistema de transportes, etc., setores que também sofrem intervenções da Ciência.

Mas voltemos a analisar a relação entre a Ciência e as fontes que a financiam, pois esta relação influencia, na prática e de forma decisiva, o poder e a responsabilidade da Ciência sobre a sociedade. Este aspecto talvez não seja tão discutido nos meios científicos, mas podemos observar um crescimento exponencial no domínio do capital financeiro sobre a Ciência, o que vem provocando um distanciamento dessa mesma Ciência daquilo que se poderia chamar consciência social.

Observando a evolução da produção científica na Europa e nos EUA, uma evolução que fatalmente irá acontecer também no Brasil, verificamos que está havendo um deslocamento dessa produção da área acadêmica para a indústria. Até o final dos anos 70, o conhecimento científico era construído e ensinado, quase unicamente, nas universidades. O marco da crise do petróleo e a conseqüente diminuição dos recursos governamentais na Europa e EUA para investimentos na pesquisa científica, fizeram emergir a indústria de biotecnologia (vou falar apenas da área tecnológica). Atualmente, grande parte das pesquisas científicas é feita nas indústrias e devemos interrogar qual o impacto na sociedade e de que forma este se dá.

Primeiro, a divulgação para a sociedade torna-se altamente filtrada, e esta passa a ter pouquíssimo controle sobre a pesquisa... Basta um olhar para a globalização econômica e percebemos a evaporação, de um momento para outro, do capital público (em termos percentuais) investido em Ciência.

O desenvolvimento científico transportou-se para a indústria. A sociedade passa a não ter pouquíssimo controle sobre os produtos e os processos que estão sendo realizados, pois o desenvolvimento científico passa a ser controlado virtual e unicamente por grandes indústrias, sem entendimento, discussão, adaptação e absorção mais igualitária das aplicações da Ciência. Se antes, o acompanhamento da sociedade e a absorção do conhecimento iam sendo feitos num ritmo e de forma mais participativas, agora mudou o caráter dessa produção.

Como exemplo disso, podemos observar a produção de plantas, que é uma área primária em termos econômicos. As plantas transgênicas estão sendo feitas pelas grandes multinacionais que, há 10 -15 anos atrás, não dominavam este tipo de conhecimento científico. Como é que este conhecimento, então, foi incorporado pelas indústrias? Através de absorção de pesquisadores e laboratórios das universidades, estes últimos em dificuldades por causa de financiamento público e emprego cada vez mais reduzido. As empresas foram se fundindo e, dentro de alguns anos haverá apenas umas poucas empresas no mundo produzindo sementes. As multinacionais dominarão todo o mercado de produção de plantas transgênicas e quase todo o conhecimento de biotecnologia vegetal.

A Ciência no Brasil sofre também de estrangulação econômica, e pode-se prever que a sobrevivência da Ciência na universidade se dará, no futuro, apenas em áreas do pensamento contemplativo e teórico, pela abnegação de pessoas em trabalhos solitários, já que a alternativa para os dentistas das universidades será, obviamente, buscar o capital privado para o desenvolvimento pessoal e profissional ou, então, deslocar-se para outros países de mundo onde há mais interesse neste trabalho. A Ciência no Brasil sofre freqüentemente muito mais pelo negligenciamento de sua importância e inoperância administrativa, do que pela falta de recursos.

Outro aspecto importante do poder de transformação da Ciência é a rapidez exponencial de sua evolução e isso é associado com o fluxo do capital privado, como é o caso do maciço investimento nas pesquisas do Genoma.

Houve grandes discussões iniciais sobre o projeto Genoma Humano e a expectativa na comunidade científica e na sociedade é muito grande. Mas muitos recursos ali investidos não são governamentais. A indústria foi responsável por pesados investimentos nas áreas de desenvolvimento deste programa e houve grande evolução tecnológica para análise de genomas. A previsão era de que este projeto terminaria em 2010, e agora já está quase completo! Isso porque uma nova empresa investiu muito capital e formou-se um consórcio poderoso em termos de conhecimento e de determinação de códigos genéticos.

Três quartos do conhecimento está restrito à indústria: o poder de seqüenciamento, manipulação, de fertilização assistida, terapias genéticas, etc. Haverá, entretanto, também a possibilidade de produção de drogas para melhorar o desempenho do corpo na área da memória e da aprendizagem, e diversas intervenções genéticas. A maior parte da produção dessas informações estão privadas, fechadas, sem controle social. O debate no campo da Ética será conduzido a posteriori.

Para se ter uma idéia da rapidez da evolução do conhecimento, há o exemplo da reprodução assistida que já é uma atividade com grande aceitação social e as possibilidades técnicas nessa área são enormes. A experimentação neste campo começou em 1978 e deu um salto enorme. A estocagem e a utilização de tecido embrionário são áreas sobre as quais a sociedade faz muita reflexão mas não tem consenso sobre elas. A sofisticação da técnica vai crescendo e as possibilidades de situações e dilemas mais extremos vão crescendo também.

Por exemplo, o debate sobre a clonagem que eclodiu nos últimos tempos, mostrou uma tendência para a proibição da mesma ligada à reprodução assistida. Isso não quer dizer que vai ser interrompido o estudo sobre a possibilidade de aplicá-la neste aspecto, mesmo que não tenha uma finalidade social relevante. Já o investimento em diagnóstico e cura, obviamente, teria um impacto grande no cotidiano das nossas vidas. As plantas transgênicas, também, teriam um impacto enorme no cotidiano da vida, se dominarem o mercado... No Brasil, o debate sobre tantas questões novas está em pleno curso e a sociedade vai amadurecendo seus conceitos e opiniões.

Quero lembrar ainda que há uma capacidade de transformação imensa na área da astrofísica e do saber sobre as forças atômicas, a fusão nuclear, etc. O fornecimento de energia quase ilimitada é um sonho que há de se realizar um dia. Observamos uma revolução drástica, nos últimos anos, na comunicação e na informação, na telefonia via satélite, na Internet pela TV e, pouco a pouco, vão substituindo-se os livros e enciclopédias, ainda presentes em nossas casas.

É importante estar ciente de que o Poder e a Ciência sempre se deram prestígio, mutuamente, mas a Ciência não conseguia controlar a direção do Poder. Agora, com a globalização da economia e da Ciência, tudo está mudando e não conseguimos prever o que vai acontecer. O poder econômico está dependente do desenvolvimento científico. “A biotecnologia vai ser o motor da economia americana no século XXI”, afirmou o Presidente dos EUA, Bill Clinton, há pouco tempo, mas é preciso controlar esta dependência e interrelação, pois fatalmente, a economia vai correr mais rápido do que o nosso consenso sobre os aspectos éticos e científicos.


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NOTAS

[1] Editado a partir de artigo, com mesmo título, publicado no livro A moralidade dos Atos Científicos Carneiro, F. (org.), FIOCRUZ/1999.

[2] Pesquisador Titular na FIOCRUZ, Biólogo Molecular.