O
PODER E AS RESPONSABILIDADES DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO
Wim Degrave
É preciso lembrar que qualquer
opinião sobre a posição
da Ciência e o seu poder e responsabilidades
é fragmentária e terá,
sem dúvida, uma feição
pessoal. Não pretendo trazer uma visão
histórica sobre o papel da Ciência
na sociedade, pois esta pode ser encontrada
em farta bibliografia, nem tentarei mencionar
diferentes áreas da Ciência e
seu impacto sobre a sociedade, pois isto traria
uma abrangência enorme. Indicarei apenas
alguns pontos específicos para discussão,
os quais sejam talvez menos abordados nos
debates científicos.
A
Ciência tem como objetivo a construção
de um modelo consistente, abrangente e unificado
do Universo e da sua evolução,
a partir de fenômenos observados ou postulados;
a verificação do(s) modelo(s)
a partir de simulação da "realidade";
a construção de previsões
precisas sobre fenômenos futuros, e a
transformação do conhecimento
em progresso tecnológico e melhoria na
qualidade de vida do ser humano.
A
Ciência vive uma situação
delicada entre o ímpeto de aumentar o
conhecimento, e a expectativa de transformar
esse conhecimento em aplicações
práticas e úteis para a sociedade.
Vive sob o questionamento da sociedade quanto
à legitimidade, praticidade e veracidade
do conhecimento científico. Quando a
Ciência pesquisa fenômenos num plano
teórico, não há grande
questionamento social, apenas debates e divergências
com defensores de modelos alternativos. Tradicionalmente,
há áreas de divergência
com as visões religiosas e esotéricas
da origem do Universo e da vida, e há,
até hoje, questionamentos relativos a
teorias que formam a base de certas práticas
medicinais "alternativas". Mas, desde
os gregos, a Ciência tem se desenvolvido
com crescente impacto, e hoje reina quase de
forma absoluta, com status de "visão
oficial" da sociedade sobre o Universo.
Até porque não há nenhum
outro modelo que consegue medir e prever com
tanto sucesso e previsão, e a nossa sociedade
"técnica-tecnológica"
de hoje depende 100% desta Ciência "oficial".
Curiosamente,
e em parte devido à sua grande complexidade,
somente uma pequena porcentagem de pessoas no
mundo consegue adquirir uma visão abrangente
do sistema científico, e ninguém
consegue compreender em detalhe mais que uma
fração do conhecimento e do método
científico. Há, portanto, uma
distância enorme entre o modelo/sistema
"oficial" e as visões, opiniões
e percepções individuais das pessoas.
Entretanto,
quando se trata da aplicação do
conhecimento científico, ao interferir
nos aspectos básicos e práticos
de nossa vida, surgem áreas de conflito
importantes. E a Ciência convive ainda
com um problema básico muito sério
de desigualdade social. O impacto benéfico
das descobertas científicas não
é igualmente distribuído por todas
as pessoas e isso parece paradoxal, pois a Ciência
e as suas aplicações deveriam
ter como objetivo a melhoria da qualidade das
nossas vidas, a educação, a compreensão
das pessoas sobre a sua realidade... Mas, não
houve, de modo algum, uma divisão igualitária
dos benefícios do que a Ciência
se propõe a fazer e faz.
Obviamente
é difícil discutir o quanto a
Ciência, em si, tem responsabilidade nessa
injusta distribuição e se a tarefa
de levar benefícios a todos é
da sociedade e/ou da Ciência, que é
uma atividade dessa mesma sociedade. O grau
de distribuição, e também
a capacidade da geração e absorção
do progresso tecnológico têm uma
relação direta com o modelo econômico/social
adotado por esta sociedade, e este, por sua
parte, é principalmente determinado pelos
valores morais e éticos praticados, e
em menor grau pelos pre-conizados ou idealizados,
da humanidade. Em outras palavras, o progresso
científico e o desenvolvimento de aplicações
tecnológicas foram estimulados, na sua
maior parte, pelo poder político-econômico,
e mais recentemente, pela economia de mercado,
ou seja, pelo mesmo poder que é, pelo
menos parcialmente, responsável pela
manutenção das desigualdades sociais.
Há
um consenso de que as aplicações
da Ciência devem se desenvolver para o
bem-estar do Homem. Quando a Ciência pode
interferir no bem-estar das pessoas e a distribuição
desse benefício não acontece,
trata-se de uma questão referente à
economia, às finanças, à
organização do espaço geopolítico,
etc., o que não é uma discussão
central para este Seminário. Devo, então,
afirmar que a Ciência, em si, não
tem a responsabilidade direta sobre isso. Ela
pode contribuir com o pensamento sobre essa
realidade, mas não tem uma responsabilidade
direta porque tal situação, de
fato, depende do modelo que a sociedade tem
para sua própria organização
e divisão dos recursos econômicos,
espaciais e sociais. Entretanto, o cientista
deve refletir e estar de acordo com os propostos
da sua atividade e com o projeto no qual se
engaje, pois ele tem uma responsabilidade direta
sobre o uso de aplicações que
foram objeto do desenvolvimento. Este princípio
se aplica especialmente a pesquisas com fins
destrutivos e militares, as que envolvem fronteiras
científicas e questionamentos éticos,
ou as que possam ter um impacto grande e iminente
sobre a saúde e o meio ambiente.
Pensemos
em mais alguns pontos onde a presença
da Ciência nos remete para a discussão
sobre suas responsabilidades.
A
primeira responsabilidade do dentista é
se conscientizar sobre a relatividade da verdade
científica e não aceitá-la
como a verdade absoluta, pois a realidade que
vivemos e desejamos estudar é comum mas
subjetiva, e pode ser compreendida em muitas
dimensões que a constituem, jamais podendo
a totalidade ser conhecida. Além disto,
a percepção sempre partida e interfere
nesta realidade.
A
Ciência, quando atua no desenvolvimento
teórico, pode oferecer visões
inovadoras sobre a nossa realidade: desde os
limites do Cosmo, a origem e organização
da vida, a relação do ser humano
com o meio ambiente e a necessária preservação
dos dois, os modos de interferir na própria
evolução... Pode-se até
mesmo questionar a visão positivista
do conhecimento científico e seus métodos-experimentação,
a lógica e a verificação
matemática.
Mas,
o método científico é de
tal modo aceito pelo senso comum que é
considerado "exato", não há
mais grandes questionamentos, nem mesmo entre
Religião e Ciência, pois à
medida que a Ciência analisa ou supera
um aspecto antes considerado religioso, as pessoas
e as próprias religiões, pelo
menos a católica, têm recuado em
seus conceitos e dogmas. Nesse aspecto, permanece
a discussão eterna: a Ciência "invade"
o campo religioso?
O
pensamento ocidental tem aceito que a Ciência
tem aumentado seu campo de conhecimento e que
a Religião, sem muitos problemas, consegue
preservar o seu. Há, claro, uma área
de conflito quanto à criação
e ao conceito da vida, ou sobre o quanto podemos
interferir e modificar os seres vivos e é
preciso aprofundar constantemente essa discussão.
Um
outro campo de interferência próximo
da Ciência será o da própria
visão sobre o Cosmo. A elucidação
sobre as outras eventuais formas de vida no
Cosmo e novas teorias sobre sua estrutura e
evolução terão um impacto
direto sobre nossa visão religiosa e
nossa situação perante a idéia
de Deus. Talvez um dia, os habitantes da Terra
terão que reconhecer plenamente sua condição
infinitesimal, e que são um grupinho
entre muitos.
Quando
se discute ética e responsabilidade da
Ciência, há de se observar a distinção
importante existente entre o objeto do saber
e as metodologias utilizadas. Quando falamos
sobre Ética, devemos levar em conta se
a pesquisa é teórica ou se trata
de uma aplicação científica
visando atender a necessidades. As metodologias
científicas, creio, devem ser um assunto
maior neste Seminário, porque há
os aspectos de biossegurança, de ética
em pesquisa, de utilização de
seres vivos como modelos para experimentação,
e dos impactos sobre a biodiversidade do planeta.
Creio que nenhum cientista faz restrição
às discussões éticas sobre
a metodologia. Há um consenso sobre a
necessidade de haver normas sobre pesquisas
clínicas e a utilização
de animais; sobre a fiscalização
nos campos da biossegurança e ética
em pesquisa; e sobre a importância de
se desenvolver um pensamento rigoroso a respeito
da preservação da biodiversidade.
Nenhum
campo de estudos é isolado, sendo necessário
ter consciência de outros fatores e intercessões.
Por exemplo, quando se trata da interferência
da Ciência no bem-estar relativo à
medicina preventiva e curativa, ela tem um poder
limitado no impacto de sua ação,
pois também depende da situação
nutricional das pessoas que procuram ajuda,
da modelação do meio ambiente,
das condições de habitação,
da facilidade de acesso a produtos básicos,
do sistema de transportes, etc., setores que
também sofrem intervenções
da Ciência.
Mas
voltemos a analisar a relação
entre a Ciência e as fontes que a financiam,
pois esta relação influencia,
na prática e de forma decisiva, o poder
e a responsabilidade da Ciência sobre
a sociedade. Este aspecto talvez não
seja tão discutido nos meios científicos,
mas podemos observar um crescimento exponencial
no domínio do capital financeiro sobre
a Ciência, o que vem provocando um distanciamento
dessa mesma Ciência daquilo que se poderia
chamar consciência social.
Observando
a evolução da produção
científica na Europa e nos EUA, uma evolução
que fatalmente irá acontecer também
no Brasil, verificamos que está havendo
um deslocamento dessa produção
da área acadêmica para a indústria.
Até o final dos anos 70, o conhecimento
científico era construído e ensinado,
quase unicamente, nas universidades. O marco
da crise do petróleo e a conseqüente
diminuição dos recursos governamentais
na Europa e EUA para investimentos na pesquisa
científica, fizeram emergir a indústria
de biotecnologia (vou falar apenas da área
tecnológica). Atualmente, grande parte
das pesquisas científicas é feita
nas indústrias e devemos interrogar qual
o impacto na sociedade e de que forma este se
dá.
Primeiro,
a divulgação para a sociedade
torna-se altamente filtrada, e esta passa a
ter pouquíssimo controle sobre a pesquisa...
Basta um olhar para a globalização
econômica e percebemos a evaporação,
de um momento para outro, do capital público
(em termos percentuais) investido em Ciência.
O
desenvolvimento científico transportou-se
para a indústria. A sociedade passa a
não ter pouquíssimo controle sobre
os produtos e os processos que estão
sendo realizados, pois o desenvolvimento científico
passa a ser controlado virtual e unicamente
por grandes indústrias, sem entendimento,
discussão, adaptação e
absorção mais igualitária
das aplicações da Ciência.
Se antes, o acompanhamento da sociedade e a
absorção do conhecimento iam sendo
feitos num ritmo e de forma mais participativas,
agora mudou o caráter dessa produção.
Como
exemplo disso, podemos observar a produção
de plantas, que é uma área primária
em termos econômicos. As plantas transgênicas
estão sendo feitas pelas grandes multinacionais
que, há 10 -15 anos atrás, não
dominavam este tipo de conhecimento científico.
Como é que este conhecimento, então,
foi incorporado pelas indústrias? Através
de absorção de pesquisadores e
laboratórios das universidades, estes
últimos em dificuldades por causa de
financiamento público e emprego cada
vez mais reduzido. As empresas foram se fundindo
e, dentro de alguns anos haverá apenas
umas poucas empresas no mundo produzindo sementes.
As multinacionais dominarão todo o mercado
de produção de plantas transgênicas
e quase todo o conhecimento de biotecnologia
vegetal.
A
Ciência no Brasil sofre também
de estrangulação econômica,
e pode-se prever que a sobrevivência da
Ciência na universidade se dará,
no futuro, apenas em áreas do pensamento
contemplativo e teórico, pela abnegação
de pessoas em trabalhos solitários, já
que a alternativa para os dentistas das universidades
será, obviamente, buscar o capital privado
para o desenvolvimento pessoal e profissional
ou, então, deslocar-se para outros países
de mundo onde há mais interesse neste
trabalho. A Ciência no Brasil sofre freqüentemente
muito mais pelo negligenciamento de sua importância
e inoperância administrativa, do que pela
falta de recursos.
Outro
aspecto importante do poder de transformação
da Ciência é a rapidez exponencial
de sua evolução e isso é
associado com o fluxo do capital privado, como
é o caso do maciço investimento
nas pesquisas do Genoma.
Houve
grandes discussões iniciais sobre o projeto
Genoma Humano e a expectativa na comunidade
científica e na sociedade é muito
grande. Mas muitos recursos ali investidos não
são governamentais. A indústria
foi responsável por pesados investimentos
nas áreas de desenvolvimento deste programa
e houve grande evolução tecnológica
para análise de genomas. A previsão
era de que este projeto terminaria em 2010,
e agora já está quase completo!
Isso porque uma nova empresa investiu muito
capital e formou-se um consórcio poderoso
em termos de conhecimento e de determinação
de códigos genéticos.
Três
quartos do conhecimento está restrito
à indústria: o poder de seqüenciamento,
manipulação, de fertilização
assistida, terapias genéticas, etc. Haverá,
entretanto, também a possibilidade de
produção de drogas para melhorar
o desempenho do corpo na área da memória
e da aprendizagem, e diversas intervenções
genéticas. A maior parte da produção
dessas informações estão
privadas, fechadas, sem controle social. O debate
no campo da Ética será conduzido
a posteriori.
Para
se ter uma idéia da rapidez da evolução
do conhecimento, há o exemplo da reprodução
assistida que já é uma atividade
com grande aceitação social e
as possibilidades técnicas nessa área
são enormes. A experimentação
neste campo começou em 1978 e deu um
salto enorme. A estocagem e a utilização
de tecido embrionário são áreas
sobre as quais a sociedade faz muita reflexão
mas não tem consenso sobre elas. A sofisticação
da técnica vai crescendo e as possibilidades
de situações e dilemas mais extremos
vão crescendo também.
Por
exemplo, o debate sobre a clonagem que eclodiu
nos últimos tempos, mostrou uma tendência
para a proibição da mesma ligada
à reprodução assistida.
Isso não quer dizer que vai ser interrompido
o estudo sobre a possibilidade de aplicá-la
neste aspecto, mesmo que não tenha uma
finalidade social relevante. Já o investimento
em diagnóstico e cura, obviamente, teria
um impacto grande no cotidiano das nossas vidas.
As plantas transgênicas, também,
teriam um impacto enorme no cotidiano da vida,
se dominarem o mercado... No Brasil, o debate
sobre tantas questões novas está
em pleno curso e a sociedade vai amadurecendo
seus conceitos e opiniões.
Quero
lembrar ainda que há uma capacidade de
transformação imensa na área
da astrofísica e do saber sobre as forças
atômicas, a fusão nuclear, etc.
O fornecimento de energia quase ilimitada é
um sonho que há de se realizar um dia.
Observamos uma revolução drástica,
nos últimos anos, na comunicação
e na informação, na telefonia
via satélite, na Internet pela TV e,
pouco a pouco, vão substituindo-se os
livros e enciclopédias, ainda presentes
em nossas casas.
É
importante estar ciente de que o Poder e a Ciência
sempre se deram prestígio, mutuamente,
mas a Ciência não conseguia controlar
a direção do Poder. Agora, com
a globalização da economia e da
Ciência, tudo está mudando e não
conseguimos prever o que vai acontecer. O poder
econômico está dependente do desenvolvimento
científico. “A biotecnologia vai
ser o motor da economia americana no século
XXI”, afirmou o Presidente dos EUA, Bill
Clinton, há pouco tempo, mas é
preciso controlar esta dependência e interrelação,
pois fatalmente, a economia vai correr mais
rápido do que o nosso consenso sobre
os aspectos éticos e científicos.
* * * * * * *
NOTAS
Editado a partir de artigo,
com mesmo título, publicado no livro
A moralidade dos Atos Científicos Carneiro,
F. (org.), FIOCRUZ/1999.
Pesquisador Titular na
FIOCRUZ, Biólogo Molecular.