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CONSENTIMENTO ESCLARECIDO: IMPLICAÇÕES NA ÉTICA DO SUJEITO DA CIÊNCIA
Halina Grynberg[1]

“Em cerca de 90% dos casos faltaram dados essenciais ou o termo de consentimento livre e esclarecido ( dados de relevância para a análise dos aspectos éticos) está inadequado.” É o que nos informa, com contundência, William Saad Hossne,[2] em seu editorial Liberdade de atuação, com responsabilidade,[3] ao comentar a avaliação de projetos científicos que envolvem o ser humano.

Consentimento livre e esclarecido... O que vem a ser exatamente isso, quando tropeçam pesquisadores de múltiplas áreas que lidam com projetos que têm a vida e o ser humano como objeto e são submetidos à avaliação ética?

E quando as pesquisas dizem respeito ao Genoma Humano como pode a Psicanálise ampliar a discussão sobre o consentimento livre e esclarecido?

Há contradições de base entre a ciência experimental contemporânea e a psicanálise neste campo: a psicanálise privilegia a subjetividade como espaço de reflexão e intervenção, ou melhor, o sujeito do inconsciente - precisamente o que tenta ser anulado e excluído do território das ciências experimentais e exatas como uma variável interveniente, incômoda. No entanto, a aquiescência do objeto pesquisado é solicitada na forma de um consentimento livre e esclarecido como pré-requisito de qualquer pesquisa experimental que lide com sua condição humana.

Interessante! Ao objeto de estudo é apresentado um pedido de consentimento ético. E o que é demandado aos pesquisadores? Que responsabilidade lhes é exigida? Eis que a questão ética se alarga quando se trata de entender os termos de responsabilidade para com o Outro,[4] que uma pesquisa neste campo supõe. De posse da autorização fornecida pelo objeto de estudo, estariam eles, os pesquisadores, supostamente resguardados quanto a alterações ou perturbações nas condições de vida psíquica e na humanidade do objeto pesquisado? Que tipo de comprometimento ético é este que onera o objeto (ser humano) e resguarda o dentista (não por acaso, ser humano também)?

Que diferenças de conceito de humanidade entre objeto de pesquisa e pesquisador são pressupostas quando um termo de consentimento livre, e portanto de responsabilidade, é solicitado apenas do lado do objeto/ser humano pesquisado?

A ciência não pensa o sujeito.

Ela pensa tão-somente um corpo humano - desubjetivado - como um espaço para onde eventualmente convergem uma multiplicidade de interesses econômicos e poderes tecnocientíficos contemporâneos, como no caso do Projeto Genoma.
É a Psicanálise que pensa o sujeito, entendido com sujeito do inconsciente, portanto, dividido desde o princípio, donde sua diferença com o sujeito da Filosofia - consciente, racional, único e inteiro.

O que seria o corpo na psicanálise e qual a sua relação com a subjetividade, onde se formulam “os desejos e o poder de transformação filtrados das influências do mundo”?[5]

O corpo na psicanálise não é entendido como uma estrutura biológica, mesmo quando sobre ele se projetam as sombras da mortalidade inevitável, destino comum que iguala a todos. De fato, por ter a incompletude marcada no corpo é que a questão humana passa a ser a de busca de um sentido para a vida. E esta busca acaba por produzir-se dentro de complexos culturais, onde o sujeito e o Outro estão em constante negociação entre a alienação e a autonomia.

O Projeto Genoma pensa o sujeito quando trata de preservar a dignidade da condição humana? Sob o ponto de vista psicanalítico, certamente não.

A questão do patenteamento de seres vivos e das informaçôes genéticas dos humanos toma-se, portanto, uma questão limítrofe e árdua entre a ciência e os cientistas experimentais, por um lado, e a psicanálise como saber do inconsciente e da subjetividade, por outro.

O que chamamos de humano nos separa.

O acesso e uso de informações genéticas humanas envolvendo perspectivas tão distintas, contrapõem questões e provocam controvérsias quando somos convocados a pensar os limites éticos do acesso e da manipulação destes dados.

Para a Psicanálise, há que se pensar a questão “ética do sujeito do inconsciente”[6], colocando em pauta desejos e interesses tanto do lado do cientista como sujeito, quanto do lado do objeto/sujeito alvo da autorização do consentimento livre e esclarecido.

Quem exatamente dá o seu consentimento à intervenção científica sobre o seu arquivo genético? Uma pessoa, do ponto de vista jurídico e filosófico, simultaneamente, um sujeito, do ponto de vista psíquico. Mas quem é afetado imediatamente em sua identidade? Certamente, o sujeito psíquico, antes da pessoa jurídica - na medida em que só a posteriori é que as legislações podem ser formuladas.

Somos, como pessoas psíquicas, inevitavelmente divididas. Não somos essa pessoa íntegra, coesa, que o mapeamento de um genoma possa fazer supor. Somos pessoas em conflito, ora sabemos, ora não sabemos.

E, se ousamos pensar o genoma humano como “um texto-expressão de uma espécie”,[7] nem por isso solucionamos a questão do “livre consentimento”, já que ele só pode ser dado por indivíduos, um a um, responsabilizando-se, um a um, por suas escolhas existenciais, por suas trajetórias singulares. Não é a espécie quem autoriza, é o sujeito quem escolhe sobre seu destino, e por sua escolha tem que responsabilizar-se. apesar de esta escolha e este destino serem formulados, essencialmente, dentro de uma cadeia significante inconsciente, num inconsciente estruturado como linguagem.[8]

É esta a ética do sujeito, a ética do seu desejo e de sua enunciação responsável.

Ele acaba por ter que responsabilizar-se por aquilo que dentro de si, é fora de si ao mesmo tempo: o sujeito em seu estatuto singular de ex-timidade.[9]

Há ainda outro aspecto a ser levado em conta. O consentimento individual é necessário mas não suficiente, como bem problematizam as ciências jurídicas ao destacar que o bem, alvo do consentimento esclarecido que é a informação genética é, na verdade, indivisível e sem titularidade determinada.[10]

Ou ainda, como aponta Laymert Garcia[11]: “...Velhos humanistas questionam também se o Homem - espécie reconhecida pelas Ciências Naturais, 'é livre para renunciar à sua qualidade de Homem’” (grifo meu).

O que pode suceder ao sujeito se a possibilidade do valor da informação genética passar a ser referencial de identidade? A alienação, a servidão, a morte psíquica. O sujeito é, na medida de sua constante e fluente diferença, na medida de seu movimento pulsional errante, um constante devir e que a Psicanálise em sua prática propõe acompanhar. A errância de sentido e destino, condição da subjetividade, supõe a representação de si como algo em suspenso, à beira de si mesma representação invocando o inacabado. o infinito.

No campo dos limites ao acesso e uso do Genoma Humano é imprescindível destacar que nem mesmo o cientista pode fugir da sua condição de sujeito, sobretudo quando pretende estar objetiva e neutralmente utilizando os procedimentos técnicos de modelos científicos que ele próprio, o cientista, não alcança saber qual é a conseqüência em um longo prazo.”

Assim, a questão ética do procedimento científico, no que concerne as pesquisas com o Genoma Humano, tem de levar em conta, e tratar como variável interveniente poderosa, o desejo do cientista, ele também, como qualquer sujeito, assujeitado às suas fantasias inconscientes, que desafiam os limites, a impossibilidade e pretendem, in extremis, contrapor-se à condição mortal do ser humano.

Quem faz e como o faz?

Neste obscuro terreno, teme-se que os processos de pesquisas sejam feitos por quem, ao esquivar-se da problemática de castração que viabiliza o sujeito) confunda realidade com ficção - pretendendo ignorar-se na sua parcialidade de homem ou mulher com experiências singulares de vida - e não admitia as incertezas que o acompanham como condição de vida e não como condição de método.

A gravidade reside no fato de que a ciência, baseando-se numa definição de verdade suficiente, ignora seu campo ficcional. Ela não faz de conta. Ela faz ato, sem levar em consideração que a linguagem simbólica dentro da qual o cientista formula suas teses, é a mesma que nos caracteriza como humanos em nossa imprecisão e ambigüidade multi-determinadas. Como nos faz recordar Lacan, no título de um de seus seminários: “Les non dupes errent” ou “Os não tolos erram”, reafirmando a errância inequívoca da condição humana, enquanto os tolos (aqueles que se supõe sábios) afirmam certezas.

Se estamos falando em sujeito humano, dependendo da sua construção e estrutura psíquica, quem diz que um consentimento que é dado não é um consentimento masoquista, auto-destrutivo ou suicida?

O apego à idéia de consentimento esclarecido só faz sentido para aqueles que igualam subjetividade à consciência e ignoram a fantasia humana inconsciente como o motor principal de nosso atos e desejos.

Quando a Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos começa a trabalhar com a diferenciação do genoma como algo diferente da natureza, que não tem titularidade determinada, definindo-a como patrimônio ou herança simbólica da humanidade, estamos sendo reenviados ao campo simbólico, ao campo da palavra e do desejo inconsciente, de onde surgem as grandes vertentes e sentidos da vida humana.

Como incluir a categoria “desejo do cientista” na interpretação ou no texto desta Declaração? Talvez, acentuando que o saber do cientista não pode obliterar sua capacidade de discernimento como assinala Steve ]ones, britânico, pesquisador no campo da genética da University College London: “(...) Se saber é poder; aí reside o perigo: o encontro do saber; com o desejo de poder; de dominar a realidade, que está presente em cada ato científico puro. (...) no entanto não temos a qualificação necessária, pois não temos o distanciamento necessário, para saber o que fazemos e quais as conseqüências do que fazemos ( vide a bomba atômica, os experimentos com judeus nos campos de extermínio nazistas...)”.[13]

É aí que a psicanálise tem algo a dizer. Embora para a maioria dos cientista experimentais, ela nada mais seja do que uma “prática burguesa”, um tanto imprecisa, sem comprovação experimental, sem variáveis reproduzíveis ou controláveis, sem tabelas de falso e verdadeiro, reduzindo-se a uma prática interpretativa, para quem tem tempo e dinheiro a perder, num jogo intelectual para poucos. Para os que pensam assim, convém lembrar, que o entrelaçamento de nossos saberes sobre a questão do Genoma Humano se faz por meio da palavra ética, ao mesmo tempo substantivo e adjetivo.

E, sendo o campo da ética o território por excelência do sujeito, esbarramos no que é específico da descoberta da psicanálise: o inconsciente, sua pulsação, suas formações e produções.

O psicanalista, ao empreender tecnicamente uma forma de distanciamento que é, ao mesmo tempo, inclusão transferencial, encontra recursos para escutar na linguagem cifrada de cada sujeito, a busca desesperada de saber-se, o livre arbitrar-se, num ilógico duelo para consumar seus desejos. Desejar ou enlouquecer, este parece ser o dilema humano fundamental no mundo.

Mas, se um cientista se pretende capaz de não desejar ou de não incluir seus desejos no campo de sua experiência, se se supõe capaz de neutralidade rigorosa, coerência e precisão ao empregar a lógica aristotélica e as premissas cartesianas para gerir-se e gerir a sua produção... inevitavelmente, beiramos a possibilidade de que, com sua onipotência científica, esteja, na metáfora lacaniana, do lado oposto aos “Les non dupes errent”.
O cientista, ao viver no mundo da mais pura ilusão delirante, crê poder dominar e controlar a natureza, inclusive a natureza humana, adiando a morte, vislumbrando a eternidade. Nega assim, a própria morte, os próprios limites, seus desejos contraditórios, a ambivalência que é de qualquer humano, mesmo do cientista que pretende, um dia, tudo explicar ao esgotar o mistério.

É a certeza paranóica, talvez, quando julgando-se capazes de serem árbitros de seus próprios experimentos, acreditam que seus pensamentos estão imunes e assepticamente isolados de sua condição humana. Onde, sem dúvidas, sempre em busca de certezas, de campos definidos e controlados, o cientista corre o perigo de tornar-se o cerne da questão ética.

Porque ser humano é ter dúvidas, não saber o que fazer, como conseguir o que quer, é mesclar e tentar separar a realidade da ficção, presente do passa- do, futuro do passado, não saber se é homem ou mulher, a quem amar, como fazê-lo, é não saber como ser feliz.

A metáfora lacaniana de que somente os tolos têm a ilusão de que não erram, nos adverte sobre os perigos da onipotência e do totalitarismo que rondam a operação científica, qualquer que seja ela.

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NOTAS

[1] Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Rio. Mestre em Comunicação pela Escola de Comunicação da UFRJ

[2] Presidente da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS).

[3] Cadernos de Ética em Pesquisa, ano III, número 4, Brasília: CNS/CONEP/Ministério da Saúde, abril 2000.

[4] Outro com maiúscula designa aqui o reconhecimento da alteridade, da diferença e do estranhamento na relação entre seres humanos, tal como conceituado originalmente.

[5] CARNEIRO, Fernanda et alli, Genoma Humano: limites ao acesso e uso de gen-tes, texto-resultado da Oficina de Trabalho: Genoma Humano- aspectos ético e jurídicos de seu acesso e uso, na qual fui palestrante em 14 de abril de 2000 na FIOCRUZ. [Texto publicado nos Anais do Seminário Saúde & Ambiente no Processo de Desenvolvimento, Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2000, e neste livro [Parte I (N.O)].

[6] LACAN, Jaques, Seminário III; Ética.[sem informação sobre a edição (N.O)].

[7] Ibid, Carneiro, Fernanda et alli.

[8] Conceito originalmente descrito na obra de Jacques Lacan.

[9] A noção de ex-timidade é empregada por Lacan para descrever o estatuto singular do sujeito e o lugar excêntrico em que se situa enquanto sujeito do inconsciente. Este neologismo, criado por este autor, visa dar conta daquilo que, sendo ao mesmo tempo o mais íntimo do sujeito, lhe é inquietantemente exterior. Visando alcançar isto, Jacques Lacan desenhou uma topologia psíquica, onde a inquietante estranheza descreve uma região exilada no interior do próprio sujeito.

[10] DIAFÉRIA, Adriana in Genoma Humano: limites ao acesso e uso de gen-tes. Carneiro, Fernanda et.alli.in ibid.

[11] GARCIA, Laymert in ibid. Carneiro, Fernanda et alli.

[12] GEDIEL, José Antonio in ibid. Carneiro, Fernanda et alli.

[13] Anotações pessoais da autora extraídas de matéria da Revista Time. S/d.