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CONSENTIMENTO
ESCLARECIDO: IMPLICAÇÕES NA ÉTICA
DO SUJEITO DA CIÊNCIA
Halina Grynberg
“Em
cerca de 90% dos casos faltaram dados essenciais
ou o termo de consentimento livre e esclarecido
( dados de relevância para a análise
dos aspectos éticos) está inadequado.”
É o que nos informa, com contundência,
William Saad Hossne, em seu editorial
Liberdade de atuação, com responsabilidade, ao comentar a avaliação
de projetos científicos que envolvem o ser
humano.
Consentimento
livre e esclarecido... O que vem a ser exatamente
isso, quando tropeçam pesquisadores de múltiplas
áreas que lidam com projetos que têm
a vida e o ser humano como objeto e são submetidos
à avaliação ética?
E
quando as pesquisas dizem respeito ao Genoma Humano
como pode a Psicanálise ampliar a discussão
sobre o consentimento livre e esclarecido?
Há
contradições de base entre a ciência
experimental contemporânea e a psicanálise
neste campo: a psicanálise privilegia a subjetividade
como espaço de reflexão e intervenção,
ou melhor, o sujeito do inconsciente - precisamente
o que tenta ser anulado e excluído do território
das ciências experimentais e exatas como uma
variável interveniente, incômoda. No
entanto, a aquiescência do objeto pesquisado
é solicitada na forma de um consentimento
livre e esclarecido como pré-requisito de
qualquer pesquisa experimental que lide com sua
condição humana.
Interessante!
Ao objeto de estudo é apresentado um pedido
de consentimento ético. E o que é
demandado aos pesquisadores? Que responsabilidade
lhes é exigida? Eis que a questão
ética se alarga quando se trata de entender
os termos de responsabilidade para com o Outro, que uma pesquisa
neste campo supõe. De posse da autorização
fornecida pelo objeto de estudo, estariam eles,
os pesquisadores, supostamente resguardados quanto
a alterações ou perturbações
nas condições de vida psíquica
e na humanidade do objeto pesquisado? Que tipo
de comprometimento ético é este que
onera o objeto (ser humano) e resguarda o dentista
(não por acaso, ser humano também)?
Que
diferenças de conceito de humanidade entre
objeto de pesquisa e pesquisador são pressupostas
quando um termo de consentimento livre, e portanto
de responsabilidade, é solicitado apenas
do lado do objeto/ser humano pesquisado?
A
ciência não pensa o sujeito.
Ela
pensa tão-somente um corpo humano - desubjetivado
- como um espaço para onde eventualmente
convergem uma multiplicidade de interesses econômicos
e poderes tecnocientíficos contemporâneos,
como no caso do Projeto Genoma.
É a Psicanálise que pensa o sujeito,
entendido com sujeito do inconsciente, portanto,
dividido desde o princípio, donde sua diferença
com o sujeito da Filosofia - consciente, racional,
único e inteiro.
O
que seria o corpo na psicanálise e qual a
sua relação com a subjetividade, onde
se formulam “os desejos e o poder de transformação
filtrados das influências do mundo”?
O
corpo na psicanálise não é
entendido como uma estrutura biológica, mesmo
quando sobre ele se projetam as sombras da mortalidade
inevitável, destino comum que iguala a todos.
De fato, por ter a incompletude marcada no corpo
é que a questão humana passa a ser
a de busca de um sentido para a vida. E esta busca
acaba por produzir-se dentro de complexos culturais,
onde o sujeito e o Outro estão em constante
negociação entre a alienação
e a autonomia.
O
Projeto Genoma pensa o sujeito quando trata de preservar
a dignidade da condição humana? Sob
o ponto de vista psicanalítico, certamente
não.
A
questão do patenteamento de seres vivos e
das informaçôes genéticas dos
humanos toma-se, portanto, uma questão limítrofe
e árdua entre a ciência e os cientistas
experimentais, por um lado, e a psicanálise
como saber do inconsciente e da subjetividade, por
outro.
O
que chamamos de humano nos separa.
O
acesso e uso de informações genéticas
humanas envolvendo perspectivas tão distintas,
contrapõem questões e provocam controvérsias
quando somos convocados a pensar os limites éticos
do acesso e da manipulação destes
dados.
Para
a Psicanálise, há que se pensar a
questão “ética do sujeito do
inconsciente”, colocando em pauta
desejos e interesses tanto do lado do cientista
como sujeito, quanto do lado do objeto/sujeito alvo
da autorização do consentimento livre
e esclarecido.
Quem
exatamente dá o seu consentimento à
intervenção científica sobre
o seu arquivo genético? Uma pessoa, do ponto
de vista jurídico e filosófico, simultaneamente,
um sujeito, do ponto de vista psíquico. Mas
quem é afetado imediatamente em sua identidade?
Certamente, o sujeito psíquico, antes da
pessoa jurídica - na medida em que só
a posteriori é que as legislações
podem ser formuladas.
Somos,
como pessoas psíquicas, inevitavelmente divididas.
Não somos essa pessoa íntegra, coesa,
que o mapeamento de um genoma possa fazer supor.
Somos pessoas em conflito, ora sabemos, ora não
sabemos.
E,
se ousamos pensar o genoma humano como “um
texto-expressão de uma espécie”, nem por isso solucionamos
a questão do “livre consentimento”,
já que ele só pode ser dado por indivíduos,
um a um, responsabilizando-se, um a um, por suas
escolhas existenciais, por suas trajetórias
singulares. Não é a espécie
quem autoriza, é o sujeito quem escolhe sobre
seu destino, e por sua escolha tem que responsabilizar-se.
apesar de esta escolha e este destino serem formulados,
essencialmente, dentro de uma cadeia significante
inconsciente, num inconsciente estruturado como
linguagem.
É esta a ética do sujeito, a ética
do seu desejo e de sua enunciação
responsável.
Ele
acaba por ter que responsabilizar-se por aquilo
que dentro de si, é fora de si ao mesmo tempo:
o sujeito em seu estatuto singular de ex-timidade.
Há
ainda outro aspecto a ser levado em conta. O consentimento
individual é necessário mas não
suficiente, como bem problematizam as ciências
jurídicas ao destacar que o bem, alvo do
consentimento esclarecido que é a informação
genética é, na verdade, indivisível
e sem titularidade determinada.
Ou
ainda, como aponta Laymert Garcia: “...Velhos
humanistas questionam também se o Homem -
espécie reconhecida pelas Ciências
Naturais, 'é livre para renunciar à
sua qualidade de Homem’” (grifo meu).
O
que pode suceder ao sujeito se a possibilidade do
valor da informação genética
passar a ser referencial de identidade? A alienação,
a servidão, a morte psíquica. O sujeito
é, na medida de sua constante e fluente diferença,
na medida de seu movimento pulsional errante, um
constante devir e que a Psicanálise em sua
prática propõe acompanhar. A errância
de sentido e destino, condição da
subjetividade, supõe a representação
de si como algo em suspenso, à beira de si
mesma representação invocando o inacabado.
o infinito.
No
campo dos limites ao acesso e uso do Genoma Humano
é imprescindível destacar que nem
mesmo o cientista pode fugir da sua condição
de sujeito, sobretudo quando pretende estar objetiva
e neutralmente utilizando os procedimentos técnicos
de modelos científicos que ele próprio,
o cientista, não alcança saber qual
é a conseqüência em um longo prazo.”
Assim,
a questão ética do procedimento científico,
no que concerne as pesquisas com o Genoma Humano,
tem de levar em conta, e tratar como variável
interveniente poderosa, o desejo do cientista, ele
também, como qualquer sujeito, assujeitado
às suas fantasias inconscientes, que desafiam
os limites, a impossibilidade e pretendem, in extremis,
contrapor-se à condição mortal
do ser humano.
Quem
faz e como o faz?
Neste
obscuro terreno, teme-se que os processos de pesquisas
sejam feitos por quem, ao esquivar-se da problemática
de castração que viabiliza o sujeito)
confunda realidade com ficção - pretendendo
ignorar-se na sua parcialidade de homem ou mulher
com experiências singulares de vida - e não
admitia as incertezas que o acompanham como condição
de vida e não como condição
de método.
A
gravidade reside no fato de que a ciência,
baseando-se numa definição de verdade
suficiente, ignora seu campo ficcional. Ela não
faz de conta. Ela faz ato, sem levar em consideração
que a linguagem simbólica dentro da qual
o cientista formula suas teses, é a mesma
que nos caracteriza como humanos em nossa imprecisão
e ambigüidade multi-determinadas. Como nos
faz recordar Lacan, no título de um de seus
seminários: “Les non dupes errent”
ou “Os não tolos erram”, reafirmando
a errância inequívoca da condição
humana, enquanto os tolos (aqueles que se supõe
sábios) afirmam certezas.
Se
estamos falando em sujeito humano, dependendo da
sua construção e estrutura psíquica,
quem diz que um consentimento que é dado
não é um consentimento masoquista,
auto-destrutivo ou suicida?
O
apego à idéia de consentimento esclarecido
só faz sentido para aqueles que igualam subjetividade
à consciência e ignoram a fantasia
humana inconsciente como o motor principal de nosso
atos e desejos.
Quando
a Declaração Universal do Genoma Humano
e Direitos Humanos começa a trabalhar com
a diferenciação do genoma como algo
diferente da natureza, que não tem titularidade
determinada, definindo-a como patrimônio ou
herança simbólica da humanidade, estamos
sendo reenviados ao campo simbólico, ao campo
da palavra e do desejo inconsciente, de onde surgem
as grandes vertentes e sentidos da vida humana.
Como
incluir a categoria “desejo do cientista”
na interpretação ou no texto desta
Declaração? Talvez, acentuando que
o saber do cientista não pode obliterar sua
capacidade de discernimento como assinala Steve
]ones, britânico, pesquisador no campo da
genética da University College London: “(...)
Se saber é poder; aí reside o perigo:
o encontro do saber; com o desejo de poder; de dominar
a realidade, que está presente em cada ato
científico puro. (...) no entanto não
temos a qualificação necessária,
pois não temos o distanciamento necessário,
para saber o que fazemos e quais as conseqüências
do que fazemos ( vide a bomba atômica, os
experimentos com judeus nos campos de extermínio
nazistas...)”.
É
aí que a psicanálise tem algo a dizer.
Embora para a maioria dos cientista experimentais,
ela nada mais seja do que uma “prática
burguesa”, um tanto imprecisa, sem comprovação
experimental, sem variáveis reproduzíveis
ou controláveis, sem tabelas de falso e verdadeiro,
reduzindo-se a uma prática interpretativa,
para quem tem tempo e dinheiro a perder, num jogo
intelectual para poucos. Para os que pensam assim,
convém lembrar, que o entrelaçamento
de nossos saberes sobre a questão do Genoma
Humano se faz por meio da palavra ética,
ao mesmo tempo substantivo e adjetivo.
E,
sendo o campo da ética o território
por excelência do sujeito, esbarramos no que
é específico da descoberta da psicanálise:
o inconsciente, sua pulsação, suas
formações e produções.
O
psicanalista, ao empreender tecnicamente uma forma
de distanciamento que é, ao mesmo tempo,
inclusão transferencial, encontra recursos
para escutar na linguagem cifrada de cada sujeito,
a busca desesperada de saber-se, o livre arbitrar-se,
num ilógico duelo para consumar seus desejos.
Desejar ou enlouquecer, este parece ser o dilema
humano fundamental no mundo.
Mas,
se um cientista se pretende capaz de não
desejar ou de não incluir seus desejos no
campo de sua experiência, se se supõe
capaz de neutralidade rigorosa, coerência
e precisão ao empregar a lógica aristotélica
e as premissas cartesianas para gerir-se e gerir
a sua produção... inevitavelmente,
beiramos a possibilidade de que, com sua onipotência
científica, esteja, na metáfora lacaniana,
do lado oposto aos “Les non dupes errent”.
O cientista, ao viver no mundo da mais pura ilusão
delirante, crê poder dominar e controlar a
natureza, inclusive a natureza humana, adiando a
morte, vislumbrando a eternidade. Nega assim, a
própria morte, os próprios limites,
seus desejos contraditórios, a ambivalência
que é de qualquer humano, mesmo do cientista
que pretende, um dia, tudo explicar ao esgotar o
mistério.
É
a certeza paranóica, talvez, quando julgando-se
capazes de serem árbitros de seus próprios
experimentos, acreditam que seus pensamentos estão
imunes e assepticamente isolados de sua condição
humana. Onde, sem dúvidas, sempre em busca
de certezas, de campos definidos e controlados,
o cientista corre o perigo de tornar-se o cerne
da questão ética.
Porque
ser humano é ter dúvidas, não
saber o que fazer, como conseguir o que quer, é
mesclar e tentar separar a realidade da ficção,
presente do passa- do, futuro do passado, não
saber se é homem ou mulher, a quem amar,
como fazê-lo, é não saber como
ser feliz.
A
metáfora lacaniana de que somente os tolos
têm a ilusão de que não erram,
nos adverte sobre os perigos da onipotência
e do totalitarismo que rondam a operação
científica, qualquer que seja ela.
*
* * * * * *
NOTAS
Psicanalista, membro da
Escola Brasileira de Psicanálise - Seção
Rio. Mestre em Comunicação pela Escola
de Comunicação da UFRJ
Presidente da Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS).
Cadernos de Ética
em Pesquisa, ano III, número 4, Brasília:
CNS/CONEP/Ministério da Saúde, abril
2000.
Outro com maiúscula
designa aqui o reconhecimento da alteridade, da
diferença e do estranhamento na relação
entre seres humanos, tal como conceituado originalmente.
CARNEIRO, Fernanda et alli,
Genoma Humano: limites ao acesso e uso de gen-tes,
texto-resultado da Oficina de Trabalho: Genoma Humano-
aspectos ético e jurídicos de seu
acesso e uso, na qual fui palestrante em 14 de abril
de 2000 na FIOCRUZ. [Texto publicado nos Anais do
Seminário Saúde & Ambiente no
Processo de Desenvolvimento, Rio de Janeiro: FIOCRUZ,
2000, e neste livro [Parte I (N.O)].
LACAN, Jaques, Seminário
III; Ética.[sem informação
sobre a edição (N.O)].
Ibid, Carneiro, Fernanda
et alli.
Conceito originalmente
descrito na obra de Jacques Lacan.
A noção de
ex-timidade é empregada por Lacan para descrever
o estatuto singular do sujeito e o lugar excêntrico
em que se situa enquanto sujeito do inconsciente.
Este neologismo, criado por este autor, visa dar
conta daquilo que, sendo ao mesmo tempo o mais íntimo
do sujeito, lhe é inquietantemente exterior.
Visando alcançar isto, Jacques Lacan desenhou
uma topologia psíquica, onde a inquietante
estranheza descreve uma região exilada no
interior do próprio sujeito.
DIAFÉRIA, Adriana
in Genoma Humano: limites ao acesso e uso de gen-tes.
Carneiro, Fernanda et.alli.in ibid.
GARCIA, Laymert in ibid.
Carneiro, Fernanda et alli.
GEDIEL, José Antonio
in ibid. Carneiro, Fernanda et alli.
Anotações
pessoais da autora extraídas de matéria
da Revista Time. S/d.