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DECLARAÇÃO UNIVERSAL DO GENOMA HUMANO E DIREITOS HUMANOS: REVISITAÇÃO CRÍTICA DOS INSTRUMENTOS JURÍDICOS
José Antônio Peres Gediel[1]


1 – PREMISSAS SOBRE DIREITO, BIOTECNOLOGIA E SOCIEDADE

O mapeamento e seqüênciamento do genoma humano e a identificação das funções dos gens, com vistas a sua utilização terapêutica no mercado mundial, têm exigido a participação dos juristas para regular o seu acesso e uso.

Por evidente, o ineditismo, a escassez e a extrema versatilidade dessas informações têm elevado o seu valor científico e de mercado e tornado cada vez mais complexas as relações entre seus fornecedores e usuários, e entre as sociedades detentoras de tecnologias e aquelas tecnologicamente dependentes, apenas fornecedoras de material pesquisado.

Sempre que se apresentam conflitos de interesses entre os titulares dos organismos pesquisados, os detentores do conhecimento aplicado e os proprietários do capital exigido para tornar possível a pesquisa, as bases teóricas para o tratamento desses conflitos têm sido buscadas no Direito Privado clássico, cujo núcleo se constituiu, precipalmente, para regular relações entre sujeitos a respeito de coisas com valor econômico.

Por outro lado, o instrumental do Direito Público clássico, assentado sobre a noção de soberania estatal, tem fornecido as bases para regular conflitos que extrapolam interesses individuais e vêm orientados pela oposição entre grupos de indivíduos e Estados, e entre Estados soberanos.

As respostas jurídicas mais recentes, por sua vez, começam a trabalhar com categorias que contemplam, concomitantemente, interesses individuais, coletivos e comunitários, não-estatais, como é o caso da Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos (UNESCO, 1997).

Nesse panorama, o rápido aparecimento e trânsito jurídico desses dados e informações têm provocado um amplo debate jurídico doutrinário, cujas premissas apontam para superação das categorias que orientam qualquer uma dessas três esferas jurídicas regulatórias (nacional, pública e privada, internacional e comunitária).

O norte dessa reconstrução teórica e instrumental aponta, sobretudo, para a redefinição do regime de titularidade dos sujeitos sobre as coisas, para o estabelecimento de limites à autonomia corporal, para a revitalização de formas da contratualidade moderna e, também, para o reconhecimento da pluralidade de fontes dos instrumentos jurídicos, tomando, sempre, como ponto de partida a noção jurídica de dignidade humana estampada nos textos das Declarações Universais de Direitos e das Constituições de países do Ocidente.

Levantadas essas premissas e realizado o inventário inicial de problemas, podemos afirmar que as formulações jurídicas contemporâneas, que têm por finalidade regular relações decorrentes da aplicação da biotecnologia, ainda não constituem um novo modelo jurídico, mas sugerem uma severa revisão principiológica do Direito vigente. A revi-sitação crítica das categorias e conceitos jurídicos com vistas à readequação dos instrumentos jurídicos[2] e sua possível superação se inserem nesse movimento teórico. A par disso, o sentido e alcance dessas novas fórmulas jurídicas dependem de opções éticas e políticas que a sociedade ocidental toma diante dos avanços da ciência, em sua relação com o apelo do mercado.

2. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DO GENOMA HUMANO E DIREITOS HUMANOS: UM PONTO DE PARTIDA PARA AS TAREFAS DOS JURISTAS CONTEMPORÂNEOS

A Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos contempla, com exemplar riqueza, as três dimensões regulatórias que compõem o modelo jurídico ocidental moderno, renovando e pondo em destaque a função ou dimensão comunitária do Direito atual, mas, nem por isso, prescinde de aprofundamento de sua análise conceitual e de acompanhamento de sua aplicação às situações concretas advindas do uso e do acesso ao genoma humano.

O título da Declaração a identifica, desde logo, com sua raiz iluminista e humanista, a qual se evidencia, também, porque se endereça à totalidade dos homens, buscando sobrepor-se à particularidade das ordens jurídicas nacionais, para atingir uma comunidade ideal-universal.

A visão universalista da Declaração apresenta, sem dúvida, traços inovadores e peculiares em relação às demais Declarações Universais de Direito, pois não se apóia apenas na noção filosófica abstrata da igualdade entre todos os homens (fundada na presença da racionalidade e da autonomia humanas), mas se apóia, também, na identidade biológica traçada a partir do genoma.

Nesse sentido, o artigo 1°, ao apresentar a definição jurídica de genoma, afirma a unidade fundamental biológica da espécie, sem, contudo, afastar a dimensão axiológica do humano, ao estabelecer: "O genoma humano subjaz à unidade fundamental de todos os membros da família humana e também ao reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. "

Nessa mesma perspectiva, em seu artigo 2°, a Declaração contempla valores e princípios presentes em outras Declarações de Direitos e em ordenamentos jurídicos nacionais, especialmente, o respeito à dignidade da pessoa, levando em consideração as diferenças individuais e coletivas e a preservação da biodiversidade.

Esses valores e princípios adquirem significativo valor hermenêutico e normativo e seu conteúdo só se concretiza, na atualidade, diante das descobertas e inventos tecnológicos, pois os ideais universais, embora se apresentem sob formas conceituais e abstratas, admitem leituras particularizadas, com base na realidade das sociedades contemporâneas.

O Homem, como fonte elementar do genoma, é requalificado na comunidade humana e, em razão disso, passa a ter ampliada sua proteção à luz dos direitos humanos. A dimensão biológica do sujeito é ressaltada, mas deve ser compreendida no contexto social, de modo a evitar a redução do Homem às suas características biológicas.

Para dar maior concretude a essa proposta axiológica, os artigos 6º e 7º da Declaração tratam, respectivamente, da vedação à discriminação fundada em características genéticas e da manutenção em sigilo dos dados genéticos. O reconhecimento da vulnerabilidade humana diante dos impactos da ciência leva a Declaração a reafirmar, na modernidade tardia, o axioma iluminista que proclamava ser o Homem a fonte e o fim de todo Direito.

Ao lado dessa feição universalista e conceitual, a Declaração tem por finalidade estabelecer parâmetros para a regulação jurídica internacional, comunitária e estatal, no que se refere ao estabelecimento de regras para a fixação da titularidade do genoma e estabilizar seu acesso e uso.

Para atingir esse objetivo que compõe a função jurídica regulatória, a Declaração, na parte final de seu artigo 2°, qualifica o genorna humano como objeto de relações jurídicas intersubjetivas, que, em virtude de sua natureza especial, o coloca dentre os bens fora do comércio. Com base nessa classificação, o genorna humano se torna um bem jurídico não apropriável individualmente, pois apenas em sentido simbólico é urna coisa, herança ou patrimônio comum da humanidade.

Também se enquadram na função regulatória da Declaração, os artigos 3° e 4°, os quais suscitam indagações e assumem caráter propositivo a respeito do futuro do genoma humano. Esses artigos articulam, ainda, questões sociais, políticas e científicas, todas focalizadas pelo ângulo da soberania estatal, da formulação de políticas públicas a respeito da saúde, nutrição e educação.

A variabilidade e a convivência dessas diversas racionalidades e funções jurídicas no texto da Declaração se tornam mais complexas a partir da leitura dos artigos subseqüentes, sendo importante destacar o conteúdo dos artigos 5° e 9o que cuidam, respectivamente, do "consentimento informado" e da "justa reparação" por intervenções sobre o genoma.

Inicialmente, é preciso mencionar que a tonalidade da regulação jurídica que se faz presente nesses artigos é de caráter individualista e racionalista, seguindo a orientação clássica do Direito liberal privado cuja preocupação fundamental, conforme já mencionado, consistia em dar segurança jurídica aos titulares de bens com o valor econômico, os quais para circularem no mercado dependem da permissão ou consentimento voluntário desses titulares.

Com esse perfil, ao tratarem dos elementos do corpo humano, a Declaração e outros textos jurídicos inclusive os brasileiros, como a Resolução CNS 196/96, ampliam a noção de autonomia privada do sujeito admitindo-a em relação ao corpo e seus elementos, inclusive, o genoma. Essa ampliação da autonomia privada vai-se expressar sob a forma jurídica do consentimento informado, que, em certa medida, traduz uma fórmula jurídica para apaziguar a nossa consciência ocidental diante dos riscos de desmaterialização e de extinção da própria humanidade.

Segundo esse modelo jurídico, a função regulatória das relações privadas opera com as noções de sujeito de direito, individualmente considerado, ao qual se atribui uma vontade livre e esclarecida. Sob essa ótica, o genoma deixa de ser contemplado apenas como um patrimônio simbólico da humanidade para ser regulado como um bem jurídico que, embora não seja passível de transmissão onerosa, integra a esfera jurídica titular, sujeito de direito, individualmente considerado e prescinde da autorização desse sujeito para ser transmitido, com efeitos jurídicos a outro.

Nesse mesmo plano de desenvolvimento de sua função regulatória, a Declaração prevê a justa reparação por danos decorrentes de intervenções que afetem o genoma e pressupõe, também, que qualquer intervenção sobre esse bem essencial dos indivíduos deva vir precedida do consentimento informado, cuja ausência, por si só, causa um dano (moral) suscetível de reparação, independente dos danos físico-biológicos (materiais) sofridos em decorrência da intervenção.

O artigo 4° estatui que "O genoma humano em seu estado natural não deve dar lugar a ganhos financeiros " e revela, com isso, que a classificação jurídica do genoma, como “patrimônio simbólico ou herança da humanidade”, por si só, não o retira do jogo do mercado, exigindo que neste artigo, por meio da função jurídica regulatória da Declaração, seja atribuída uma outra classificação do genoma que leva em consideração sua virtualidade econômica e sua titularidade jurídica. Vale dizer, que se o genoma não é transferível, onerosamente, em seu estado natural pelo sujeito pesquisado, pressupõe-se que o é, após a superação do seu estado natural, em virtude de intervenções da biotecnologia, por outros sujeitos.

Para a teoria jurídica liberal clássica, as coisas são bens irrestritamente apropriáveis pelos sujeitos. Mas nem todos os bens com valor jurídico são coisas. É essa racionalidade que se faz presente e organiza o tratamento jurídico do genoma no artigo 4°, pois, na qualidade de bem, o genoma vem adjetivado por meio da expressão estado natural, diferenciando-se das coisas, mas, se lhe for agregado o trabalho humano, a atividade científica, sofre uma alteração na sua qualificação jurídica e passa a ser coisa, objeto de relações jurídicas onerosas. Podemos dizer que para o Direito expresso no texto da Declaração, o genoma, objeto de relações jurídicas, tem duas naturezas, uma natureza natural, para reforçar o sentido da palavra, e uma natureza artificial.

O processo do trabalho científico, além de transformar o estado natural, promove uma desmaterialização da coisa, agrega-lhe um grande valor de mercado e, por isso, o Direito realiza tal distinção de modo que possa figurar como objeto de relações jurídicas onerosas.

O caráter gratuito ou não-oneroso dessa autorização, visando à intervenção de terceiros sobre o genoma humano em seu estado natural, não se estende, portanto, aos sujeitos que o detiverem após a intervenção científica, eis que o genoma apenas no seu estado natural repousa sobre o corpo ou organismo do sujeito titular (bem corpóreo), mas é a informação genética (bem incorpóreo) que lhe atribui valor prático e econômico. Assim, a vedação à transmissão onerosa é dirigida somente ao titular originário do genoma, silenciando a Declaração a respeito da onerosidade da transmissão dos dados e informações genéticas, já decifradas com as respectivas funções e aplicações.

No Direito brasileiro, a exemplo do que acontece em outros ordenamentos jurídicos ocidentais, a gratuidade aparece como um elemento de proteção ou de tutela à dignidade humana. Com essa finalidade, a gratuidade das diposições voluntárias, que dizem respeito a elementos do corpo humano, vem prevista no artigo 199, § 4°, da Constituição Federal. De qualquer modo, o questionamento sobre a eficácia de vedação à transmissão onerosa de elementos do corpo humano com efeitos jurídicos permanece, pois, conforme anteriormente notado, essa vedação atinge uma das pontas do processo, pois se dirige ao sujeito da pesquisa e ao doador, mas não regula as outras pontas do processo mais identificadas com a lógica do mercado.

A ciência, sustentada pelos interesses do mercado, está transformando, cada vez mais, a natureza, o corpo humano e as informações genéticas em objetos de pesquisa e de relações jurídicas, as quais se desenvolvem em sociedades em que a gratuidade e a doação não constituem a normalidade das relações sociais, e, por isso, exigem vedações jurídicas excepcionando determinados bens da esfera de circulação onerosa.

O rumoroso caso do Sr. John Moore levado à apreciação da Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte revela que a lógica da titularidade privada de bens sempre encontra fundamentações para justificar o poder privado de sujeitos sobre determinados bens, os quais não são apropriáveis por outros sujeitos, mesmo quando estes últimos possuem vínculos biológicos inegáveis com esses bens.

Simplificando o pensamento de Bernard Edelman, podemos dizer que a lógica do Direito privado abstrai as qualidades físicas e psicológicas dos seres humanos ao defini-los como sujeitos que detêm direitos sobre coisas. Em uma palavra, ou melhor, "Em duas palavras, o Direito Civil ignora o corpo do sujeito".[3]

A onerosidade dos produtos biotecnológicos, especialmente aqueles com finalidade terapêutica, tem sido apontada também como uma nova forma de exclusão e de discriminação social. Sua gratuidade vem sendo reivindicada como uma exigência de políticas públicas coerentes com a cooperação gratuita que é emprestada por todos os disponentes em favor da Ciência e com a pauta de valores e princípios vigentes nos Estados Democráticos de Direito estabelecido, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988. A regulação ao acesso de produtos biotecnológicos, para uso terapêutico, deve observar os valores e princípios constitucionais.

Ainda que superada a questão da gratuidade, os valores e princípios constitucionais devem pautar a aplicação do genoma humano em várias espécies de relações sociais. Os conflitos que vêm se delineando entre adquirentes e usuários de técnicas e produtos genéticos e terceiros, que sofrem interferências em sua esfera jurídica, em virtude da aplicação desse uso, já são bastante conhecidos e trabalhados pelo Direito. O uso da informação, das terapias e da engenharia genética, no âmbito das relações familiares trazem interferências que podem resultar na discriminação de sujeitos,[4] especialmente no âmbito das relações privadas de consumo e de trabalho.

Desse modo, para compreender a Declaração de forma crítica caberá, em primeiro plano, analisar os grandes grupos de posições políticas e teóricas que determinaram a formulação de instrumentos jurídicos internacionais sobre o genoma humano. Há que se examinar, também, a inserção de tais posições em um contexto político demarcado por grupos de países exportadores e importadores de biotecnologia. Há que se considerar, ainda, a posição de países que são, primordialmente, fornecedores de material genético básico para a pesquisa, como o Brasil, e de países como o Canadá, que desfrutam de posições especiais no contexto científico-econômico mundializado.

A interpretação judicial de conflitos de interesses dessa natureza, em países que ocupam a posição de exportadores de biotecnologia, permite, por outro lado, extrair critérios de decisão que tendam a se padronizar e se expandir como modelos jurídicos universais. Uma vez identificados esses critérios, cabe confrontá-los com as posições adotadas pela Declaração as quais também pretendem atingir a comunidade internacional.

A definição do genoma humano como herança simbólica ou patrimônio comum da humanidade abre, inegavelmente, uma brecha e impulsiona a revisão crítica de categorias do direito sobre as coisas (públicas, privadas ou comunitárias, materiais ou imateriais).

Por outro lado, o acompanhamento da gênese, desenvolvimento e efetiva aplicação da Declaração tornará visível se esse documento se inscreve como um novo modelo de regulação jurídica sobre a natureza, ou se apenas acrescenta elementos de complexidade na racionalidade moderna, a qual admite o poder jurídico do Homem sobre todas as coisas.

Em síntese, a leitura do texto da Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos permite, de um lado, vislumbrar tênues pontos de ruptura com a racionalidade das categorias jurídicas predominantes na modernidade e, de outro, apenas sinais de renovação do Direito clássico permitindo, por vezes, identificar a pura e simples manutenção da racionalidade dessas categorias.


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NOTAS

[1] Doutor em Direito das Relações Sociais e Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná

[2] Knoppers, Bartha Maria. Le génome humain: patrimoine commun de l’Humaninté? Québec: Fides, 1999,. P.29-31.

[3] Edelman, Bernard. La personne en danger. Paris: PUF, 1999, pp. 290-291.

[4] No Brasil, o Projeto de Lei no 149/97 do Senado Federal, tramitando na Câmara dos Deputados sob no 4.610/98, define os crimes resultantes da discriminação genética.