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INTERVENÇÃO,
DESCOBERTA E DIGNIDADE HUMANA
Laymert Garcia dos Santos
Talvez
seja possível resumir minha intervenção
num único enunciado, dizendo que ela trata,
muito sumariamente, do modo como os limites éticos
e jurídicos ao acesso e uso do genoma humano
são burlados através da confusão
entre inovação e descoberta e, por outro
lado, de como a noção de dignidade humana,
entendida como atributo da espécie e não
do indivíduo, poderia se configurar como uma
possível barreira jurídica para disciplinar
o avanço aparentemente irresistível
da biotecnologia e a correspondente transformação
dos recursos genéticos humanos em commodities.
A
dificuldade do problema em foco só pode ser
concebida no âmbito da cultura tecnocientífica
e de sua contrapartida, a chamada nova economia. Pretende-se
assumir o controle sobre o ciberespaço e os
recursos genéticos, e também, principalmente,
sobre toda a dimensão virtual da realidade.
Estamos entrando numa nova era na qual a crescente
digitalização dos circuitos de produção,
circulação e consumo favorece a reprogramação
do trabalho, e na qual a decifração
do código genético e os avanços
da biotecnologia permitem, cada vez mais, a recombinação
da vida. A ambição de reprogramar o
trabalho e recombinar a vida tem estimulado o questionamento
de tudo o que existe - até mesmo a evolução
natural das espécies, inclusive a espécie
humana parece ter chegado ao seu estágio terminal,
enquanto o relógio da história é
"zerado", já que somos instados a
reconstruir o mundo sobre novas bases.
A
tecnociência e o capital global não estão
interessados nos recursos biológicos - plantas,
animais e humanos. O que conta é o seu potencial
para reconstruir o mundo. Sua atenção
não se concentra em organismos e indivíduos,
mas em componentes virtuais, porque potencial significa
poder no processo de reprogramação e
recombinação. Levando a instrumentalização
ao extremo, tal estratégia considera tudo o
que existe ou existiu como matéria-prima a
ser processada por uma tecnologia que lhe agrega valor.
Nesse sentido, a única "coisa " que
conta na nova ordem é o que pode ser capturado
da realidade e traduzido numa nova configuração.
A única "coisa" que conta é
a informação.
Gregory
Bateson definiu informação como "a
diferença que faz a diferença,"
na concepção de Gilbert Simondon, o
germe que opera a passagem da dimensão virtual
da realidade para a sua dimensão atual, possibilitando
a individuação tanto da matéria
quanto dos seres vivos e do objeto técnico.
Se mantivermos isso em mente e realizarmos que a questão
do acesso ao genoma humano refere-se à informação
genética e à informação
digital, perceberemos que para a tecnociência
e a nova economia o problema consiste em encontrar
uma formulação jurídica que lhes
permita assegurar o acesso e o controle da informação
nos dois extremos, isto é, nos planos molecular
e global. Só para lembrar: em escala internacional,
tanto a questão da manipulação
biotecnológica quanto a da criação
de softwares foram resolvidas através da proteção
das inovações pelo regime de propriedade
intelectual, tal como podemos ler nos acordos Gatt-
Trips, da Organização Mundial de Comércio.
Na
era da informação, a inovação
é entendida em termos de processamento e modulação
de informações. A inovação
ocorre no plano molecular, e consiste freqüentemente
numa reconfiguração de componentes digitais
e genéticos, mas também numa "tradução"
dos conhecimentos tradicionais e modernos num novo
paradigma. Por isso mesmo, TRIPS, ao proteger a inovação
contemporânea, protege o valor informacional
dos produtos e processos manipulados pela biotecnologia
e pela tecnologia da informação; mas
não pode proteger outros valores, como os valores
de uso modernos e tradicionais, e nem os valores ontológicos,
porque eles não cabem no sistema.
II
É
preciso entender, antes de tudo, que a transformação
operada corrói o referencial do humanismo moderno:
o homem não é mais a medida de todas
as coisas. A medida é a informação
enquanto "diferença que faz a diferença".
Mas se Simondon e Bateson a consideraram, com razão,
de um ponto de vista qualitativo, para o capital global
a informação passou a ser a medida quantitativa
de todas as coisas. E assim, como o valor do homem
foi reduzido pelo capitalismo ao valor do trabalho
abstrato transferido para a mercadoria, agora o valor
da informação passa pela mesma redução,
através dos diferentes sistemas de propriedade
intelectual. Abrem-se, assim, um horizonte e um campo
de atuação insuspeitados para a apropriação
capitalista: o plano molecular do finito ilimitado
no qual, lembrando Deleuze, um número finito
de componentes produz uma diversidade praticamente
ilimitada de combinações.
Quando
a nova economia e a tecnociência empreendem
a conquista do plano da informação,
começam a se apagar as fronteiras que separam
o inorgânico do ser vivo e do objeto tecnológico,
mas num sentido perverso. Como observa Catherine Labrusse-Riou,
o reconhecimento jurídico do direito das pessoas
está sendo posto em xeque por quatro tipos
de dificuldades:
·
dificuldade de distinguir as pessoas das coisas (caso
do embrião in vitro ou congelado e do comatoso
ou de quem está em estado vegetativo, que confunde
as fronteiras e as representações da
vida e da morte);
· dificuldade de distinguir os sexos (fenômeno
do transexualismo, que confunde as fronteiras entre
homens e mulheres, provocando a indiferenciação
sexual);
· dificuldade de distinguir o homem do animal
(caso dos experimentos biotecnológicos que
misturam genes humanos e de animais, criando seres
híbridos);
· e, finalmente, dificuldade de distinguir
o Homem da máquina (caso da inteligência
artificial).
Tais
dificuldades apontam para um problema de fundo, já
abordado pelo escritor inglês C.S. Lewis em
1943, em The Abolition of Man. Desdobrando a tendência
de domínio progressivo da natureza na escala
da trajetória da espécie humana, Lewis
imaginou um momento em que a natureza se renderia
quando seu último bastião, a própria
natureza humana, tivesse sido conquistado. "Então,
a batalha terá sido vencida. Teremos 'tomado
o fio da vida das mãos de Cloto e doravante
seremos livres para fazer com que nossa espécie
seja o que quisermos. Com certeza, a batalha terá
sido vencida. Mas, justamente, quem terá sido
o vencedor?”
Lewis
pensa que os vencedores não serão os
homens, ou melhor, serão homens que não
serão mais humanos. Para ele, a conquista da
natureza humana seria realizada por uma geração-chave
do futuro, aquela que, por um lado, teria se emancipado
da tradição e reduzido, ao mínimo,
o poder de seus predecessores, e por outro, exerceria
o máximo de poder sobre a posteridade porque
poderia dispor de sua descendência como quisesse,
através da eugenia e de uma educação
planejada e executada cientificamente. Porém,
como tal poder não seria igualmente compartilhado
por todos os homens dessa geração, algumas
centenas deles decidiriam o destino de bilhões
de outros: seriam os condicionadores decidindo o destino
dos condicionados. Ora, se os condicionadores viessem
a ter esse poder exorbitante e essa responsabilidade
imensa, teriam de decidir que tipo de consciência
gostariam de produzir na espécie. Lewis, então,
se interroga: o que aconteceria se eles se perguntassem
se devem ou não incutir nela a consciência
de sua própria preservação? Mas
em vez de resposta, a indagação suscita
outra pergunta: por que a espécie deveria ser
preservada?
A
questão se colocaria porque, sabendo muito
bem como se produz o sentimento em prol da posteridade,
os condicionadores teriam de decidir se ele deve continuar.
Entretanto, considera Lewis, por mais que procurassem
um motivo ou fundamento para fazê-lo, seria
impossível achá-lo. Isso significa que
quando a questão da preservação
ou não da espécie se colocasse como
opção, o jogo já teria terminado,
por não haver mais valor humano algum a preservar.
É que, na realidade, condicionadores e condicionados
já não seriam mais humanos: os primeiros
porque "são homens que sacrificaram sua
própria parcela de humanidade tradicional para
se dedicarem à tarefa de decidir o que doravante
a ‘Hunanidade’ significará”,
os segundos porque, em vez de homens, são artefatos.
Assim, “ficou evidente que a derradeira conquista
do Homem foi abolição do Homem”.
Lewis
assinala que, com maior ou menor conhecimento de causa,
quase todos os homens, em todos os países,
estão trabalhando para produzir "o mundo
da pós-humanidade", um mundo em ruptura
com a natureza humana e com a cultura que lhe é
correspondente. Cinqüenta anos depois da publicação
de seu texto fica evidente que o advento de um mundo
pós-humano não só está
muito máximo do que o escritor pôde imaginar,
como se constrói por métodos muito mais
radicais do que o condicionamento, uma vez que a manipulação
genética poderá reprogramar e recombinar
a vida humana. A questão da preservação
da espécie humana, ou de seu desaparecimento,
deixa, então, de ser uma especulação,
tomando-se um problema do nosso tempo.
III
A
Declaração Universal do Genoma Humano
e dos Direitos Humanos, da Unesco, tem 25 artigos.
Em nove deles, há a expressão "dignidade".
Como se esta fosse um valor-chave quando se trata
de genoma humano. Mas, imediatamente, surge a pergunta:
é possível preservar a dignidade humana
e, ao mesmo tempo, inscrever o genoma humano no regime
de propriedade intelectual, que progressivamente transforma
a informação genética em commodity?
o
art. 4 da Declaração afirma: "O
genoma humano em seu estado natural não pode
dar lugar a benefícios pecuniários.”
O enunciado lembra o do art. 27.3 do TRIPS, que proíbe
o patenteamento de seres biológicos, pois ambos
parecem proteger a vida contra a apropriação
e comercialização. Mas, atenção:
apenas a vida não-modificada.
Foi
preciso um longo caminho para se chegar a esta distinção
entre vida apropriável e vida não-apropriável.
Como escreve Bernard Edelman, em La personne en danger:
“A intrusão do ser vivo no campo da patente
a partir dos anos 30 é uma revolução
jurídica. E para se entender direito tal revolução,
é preciso destacar um duplo fenômeno:
o da modificação profunda do papel da
patente e as condições jurídicas
que se forjaram para que o ser vivo fosse patenteável.”
Não
cabe aqui explorar o longo percurso percorrido por
essa revolução, que começa com
uma proteção jurídica específica
para as plantas em 1930, nos Estados Unidos, em 1980
abarca os microorganismos, estende-se aos animais
no final da mesma década e, finalmente, chega
ao Homem, com o caso Moore. Interessa, porém,
sublinhar que, para o jurista, nessa evolução
dois episódios são extremamente importantes:
1) o Plant Act de 1930, no qual o Congresso americano
reconhece que as plantas melhoradas são artificiais,
isto é, que a distinção pertinente
não é mais entre as coisas vivas e as
inanimadas, mas entre os produtos da natureza (vivos
ou não) e as invenções do Homem;
2) o patenteamento do primeiro microorganismo engenheirado
(a decisão Diamond x Chakrabarty): a Suprema
Corte dos Estados Unidos deveria julgar se uma bactéria
geneticamente manipulada para consumir petróleo
em águas marinhas podia ou não ser considerada
uma invenção, posto que não existia
como tal na natureza.
A
questão era, no mínimo, controversa.
Key Dismukes, por exemplo, argumenta que não
se trata de invenção. Segundo ele, Chakrabarty
não criou uma nova forma de vida, simplesmente
interferiu em processos normais através dos
quais, linhagens de bactérias trocam informações
genéticas para produzir uma nova linhagem com
um padrão metabólico alterado. Em suma,
o que fez foi modulação de processos
biológicos.
Se
do ponto de vista biológico não se pode
qualificar a bactéria de Chakrabarty como invenção,
como pôde a Suprema Corte considerá-la
assim? No artigo Vers une approche juridique du vivant,
B. Edelman examina o caso. Juridicamente, diz ele,
a questão era saber se o artigo 101 da lei
de patentes americana aplicava-se ao microorganismo.
Tal artigo dispõe que quem inventa ou descobre
qualquer procedimento, máquina, produtos manufaturados
ou composição de matéria nova
e útil, ou qualquer melhoria nova e útil
que dele decorra, poderá obter uma patente.
Seria, então, a bactéria um produto
manufaturado ou uma composição de matéria?
Em
casos precedentes a Corte já havia definido
o produto manufaturado como "artigos de uso tirados
de matérias-primas de modo a Ihes dar novas
formas, qualidades, propriedades ou combinações,
seja através do trabalho humano ou do trabalho
de uma máquina "; por sua vez, a composição
de matéria era definida como "qualquer
composição de duas ou mais substâncias
e (. ..) qualquer produto complexo, sejam eles o resultado
de uma combinação química ou
de uma composição mecânica, que
se trate de gases, líquidos, pós ou
sólidos".
Comentando
tais definições, Edelman faz duas observações:
"Por um lado, a ausência total da noção
de ser vivo, por outro a presença implícita
de um modelo industrial senão do ser vivo,
pelo menos da atividade inventiva do Homem, seja ela
uma transformação da matéria
- entendida no sentido econômico de matéria-prima
- ou uma composição diferente da matéria,
entendida num sentido químico ou mecânico.
Ora, a Corte aplicou esse modelo industrial ao ser
vivo. A demanda dos dois pesquisadores, diz ela, "não
se reporta a 'um fenômeno natural desconhecido,
mas a um produto fabricado ou uma composição
de matéria que não existe naturalmente
- um produto da atividade humana que tem um nome,
um caráter e um uso específicos (...).
O receptor da patente produziu uma nova bactéria,
com características notavelmente diferentes
de todas aquelas que se pode encontrar na natureza,
e que tem potencialmente uma utilidade evidente. Sua
descoberta não decorre de uma obra da natureza,
mas dele mesmo'. Em suma, assim a Corte aplicou ao
ser vivo um modelo industrial através da distinção
produtos da natureza/atividade inventiva do homem.
Doravante o ser vivo pode ser considerado como um
meio e, por sua vez, produzir a relação
vida natural/vida artificial”.
O
comentário de Edelman é importante porque
mostra como a especificidade da vida precisa ser ignorada
e a pertinência do modelo jurídico que
rege a propriedade industrial subsumida para que o
patenteamento possa se dar. Mais ainda: ao esclarecer
como o modelo jurídico do ser vivo vem calcar-se
no modelo industrial, o jurista deixa ver de que maneira
este ser torna-se um meio e não um fim, e de
que modo a atividade inventiva do homem, entendida
como transformação da matéria
ou composição diferente da matéria,
obedece exclusivamente a considerações
de recorte econômico e tecnológico. Se
no plano molecular o ser vivo torna-se um meio que
o homem utiliza para a sua atividade transformadora,
e se isto se encontra sancionado pelo direito, a vida
perde seu valor imanente, passando a ter valor socialmente
apenas quando a ela for incorporado o trabalho tecnocientífico.
Assim,
a decisão do caso Chakrabarty representa efetivamente
um momento - chave - e não só no campo
jurídico. A partir dali, a vida toma-se um
patrimônio genético suscetível
de apropriação, e como tal, a última
enclosure, na perspicaz análise de Jeremy Rifkin.
Pois como indaga Leon Kass: "Em termos de princípio,
qual é o limite a este início da extensão
do campo da apropriação privada e do
domínio sobre a natureza viva (. ..)? O princípio
usado no caso Chakrabarty afirma que não há
nada na natureza de um ser; nem mesmo no próprio
patenteador humano, que o torne imune ao patenteamento”.
A
extensão do modelo industrial ao ser vivo e
a transformação deste em meio agravaram-se
bastante desde o caso Chakrabarty , no bojo da controvérsia
cada vez maior sobre a diferença entre invenção
e descoberta. A questão desperta enorme interesse
e atiça a disputa entre os laboratórios
de biotecnologia que defendem o patenteamento da informação
genética tout court e os que pretendem patenteá-la
embutida num processo ou produto industrial específico.
Disputa que, aliás, agora se desdobra, no âmbito
dos projetos de seqüenciamento do genoma humano,
nas divergências sobre a necessidade de se ter
o gene completo e conhecer sua função,
antes de patenteá-lo, ou se é recomendável
pedir patentes para pedaços de genes.
Fica
evidente então, que a vida humana, em seu plano
mais ínfimo, não escapa da tendência
à apropriação e que o próprio
deslocamento do objeto da disputa já indica
o quanto a descoberta no campo da biologia molecular
vem sendo cada vez mais considerada uma invenção.
Finalmente, é preciso lembrar que até
mesmo em termos conceituais vai ficar difícil
fazer a distinção, à medida que
a fusão da informática com a biologia
for se consolidando. Basta lembrar como a bioinformática
considera o ser vivo - por um lado, enquanto texto,
informação digital; por outro, enquanto
vida, informação genética, como
se o ser vivo fosse uma linguagem que se expressa
tanto no plano abstrato, plano dos signos, quanto
no plano concreto, plano da matéria viva. Nesse
sentido, a leitura do código genético
passa a ser mais do que uma simples descoberta: a
invenção de um dispositivo de decifração
que corresponde ao texto da vida passa a ser reivindicada
como um direito sobre a própria vida.
IV
A
conquista da natureza humana e a possibilidade de
apropriação da vida humana em sua dimensão
molecular ameaçam a integridade do homem. Mas
em que nível? Pode o conceito de dignidade,
tão evocado pela Declaração Universal
do Genoma Humano e os Direitos Humanos, esclarecer
o que está em jogo e, principalmente, apontar
o que se deve proteger? Num texto de 1997, Bernard
Edelman pensa que sim. Mas para tanto é preciso,
primeiro, reconhecer que se trata de um conceito novo
no campo do Direito e, segundo, trabalhar pelo estabelecimento
de seu espaço jurídico. Nesse sentido,
Edelman propõe que se explicite a sua "novidade
radical": a dignidade designa não o ser
do Homem mas a humanidade do Homem - ela é
que está sendo ameaçada.
Para
entender a especificidade jurídica da "novidade
radical" é preciso distinguir a filosofia
dos direitos humanos da filosofia da dignidade. "Todos
sabem ", escreve Edelman, "que os direitos
humanos visam, substancialmente, a defesa do indivíduo
contra a arbitrariedade do poder e, em primeiro lugar;
do Estado. O Homem sempre corre o risco de perder
sua liberdade e por isso ela deve ser protegida, isto
é, juridicamente organizada. A liberdade surge,
portanto, como o conceito fundamental dos direitos
humanos, liberdade 'política’ (...)
Mas o conceito de dignidade situa-se num plano inteiramente
diferente. Ele não designa mais - nem menos
- a essência do Homem que os direitos humanos:
ele a significa de outra maneira”.
Edelman
considera que o modo como a dignidade apreende a essência
do homem consiste no lugar que ela confere à
humanidade. Os direitos humanos, diz ele, giram em
torno do Homem como na física de Ptolomeu os
astros giram em torno da Terra. Mas se a humanidade
ocupar o lugar central, se substituirmos o homem por
ela, tudo muda: "Enquanto o Homem dos direitos
humanos representa, juridicamente, o indivíduo
universal em sua liberdade universal, e põe
portanto em cena um processo de identificação,
a humanidade não permite tal modo de representação.
Ela se apresenta como a reunião simbólica
de todos os homens no que eles têm em comum,
a saber sua qualidade de seres humanos. Em outras
palavras, ela é o que permite o reconhecimento
de um pertencimento a um mesmo ‘gênero’:
o gênero humano.”
A
dignidade é a qualidade desse pertencimento
- explica Edelman. "Se todos os seres humanos
compõem a humanidade, é porque todos
têm essa mesma qualidade de dignidade no 'plano'
da humanidade; dizemos que são todos humanos
e dignos de sê-Io. Colocada no centro de uma
ordem jurídica a humanidade, em vez de ordenar
uma identificação, instrui um reconhecimento.
Em duas palavras, se a liberdade é a essência
dos direitos humanos, a dignidade é a essência
da humanidade. "
A
humanidade não se situa, assim, no plano dos
direitos humanos, mas no plano de um direito natural
supranacional; por conseqüência, o mesmo
se dá com a dignidade. Ora, no paradigma da
humanidade, a dignidade está “fora do
comércio", como o corpo e os embriões
humanos. O indivíduo não pode dispor
de sua dignidade, não pode aliená-la
nem renunciar a ela, porque não pode se excluir
da humanidade. Assim, conclui Edelman, "o Homem
não é livre para renunciar à
sua qualidade de Homem".
A
reflexão jurídica de Edelman dá
bem a dimensão coletiva da questão que
nos preocupa. O conceito de dignidade é supra-individual
e remete ao gênero humano, ou à espécie.
Mas
não são só os juristas que estão
inquietos com o assunto. Os artistas também
estão falando do desaparecimento do humano.
O poeta Heiner Muller, por exemplo, quando clama por
"uma nova consciência da espécie"
pensa em termos de todos ou ninguém.
* * * * * * *
NOTAS
Professor
do Departamento de Sociologia da UNICAMP; membro do
Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da USP.
Bateson, G. Men are Grass,
in Thompson, w. I. (ed.) Gata - a way of knowing:
political implications of the new biology, pp. 40-41.
Simondon, G. L’individu
et sa génèse physico-biologique. Paris:
PUF: 1964.
p. 250. ver também L'individuation psychique
et collective. Paris: Aubier, 1989.
Deleuze, G. Foucault, Paris,
Minuit, 1986, pp. 139-140.
Labrusse-Riou, C. La Vérité
dans le Droit des Personnes, in Edelman, B. et Hermitte,
M-A. L'Homme, la Nature et le Droit. Paris: Christian
Bourgois, 1988. pp. 159-198.
Lewis, C.S. The Abolition
of Man. London: Fount-Harper and Collins 1978, p.
37.
Idem, p. 36.
Idern, p. 40.
Edelman, B. La Personne
en Danger. Paris: PUF, 1999, p. 311.
Idem, pp. 286-287.
Rifkin, J. op. cit., pp.
38 a 44.
Citado por Rifkin, J.
op. cit., p 44.
Edelman, B. La Personne
en Danger, op. cit. , pp. 507-508.
Idem, p. 508.
Ibidem, pp. 508-509.
Ibid., p. 509.
Ibid., pp. 512-513.
Lettre au metteur en scène
de la première représentation de philoctète
en Bulgarie au Théâtre Dramatique de
Sofia, in H. Müller, Fautes d’impression.
Paris: l’Arche, 1991, p.34. trad. De J. L. Besson
e B. Sobel.