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INTERVENÇÃO, DESCOBERTA E DIGNIDADE HUMANA
Laymert Garcia dos Santos[1]

Talvez seja possível resumir minha intervenção num único enunciado, dizendo que ela trata, muito sumariamente, do modo como os limites éticos e jurídicos ao acesso e uso do genoma humano são burlados através da confusão entre inovação e descoberta e, por outro lado, de como a noção de dignidade humana, entendida como atributo da espécie e não do indivíduo, poderia se configurar como uma possível barreira jurídica para disciplinar o avanço aparentemente irresistível da biotecnologia e a correspondente transformação dos recursos genéticos humanos em commodities.

A dificuldade do problema em foco só pode ser concebida no âmbito da cultura tecnocientífica e de sua contrapartida, a chamada nova economia. Pretende-se assumir o controle sobre o ciberespaço e os recursos genéticos, e também, principalmente, sobre toda a dimensão virtual da realidade. Estamos entrando numa nova era na qual a crescente digitalização dos circuitos de produção, circulação e consumo favorece a reprogramação do trabalho, e na qual a decifração do código genético e os avanços da biotecnologia permitem, cada vez mais, a recombinação da vida. A ambição de reprogramar o trabalho e recombinar a vida tem estimulado o questionamento de tudo o que existe - até mesmo a evolução natural das espécies, inclusive a espécie humana parece ter chegado ao seu estágio terminal, enquanto o relógio da história é "zerado", já que somos instados a reconstruir o mundo sobre novas bases.

A tecnociência e o capital global não estão interessados nos recursos biológicos - plantas, animais e humanos. O que conta é o seu potencial para reconstruir o mundo. Sua atenção não se concentra em organismos e indivíduos, mas em componentes virtuais, porque potencial significa poder no processo de reprogramação e recombinação. Levando a instrumentalização ao extremo, tal estratégia considera tudo o que existe ou existiu como matéria-prima a ser processada por uma tecnologia que lhe agrega valor. Nesse sentido, a única "coisa " que conta na nova ordem é o que pode ser capturado da realidade e traduzido numa nova configuração. A única "coisa" que conta é a informação.

Gregory Bateson definiu informação como "a diferença que faz a diferença,"[2] na concepção de Gilbert Simondon,[3] o germe que opera a passagem da dimensão virtual da realidade para a sua dimensão atual, possibilitando a individuação tanto da matéria quanto dos seres vivos e do objeto técnico. Se mantivermos isso em mente e realizarmos que a questão do acesso ao genoma humano refere-se à informação genética e à informação digital, perceberemos que para a tecnociência e a nova economia o problema consiste em encontrar uma formulação jurídica que lhes permita assegurar o acesso e o controle da informação nos dois extremos, isto é, nos planos molecular e global. Só para lembrar: em escala internacional, tanto a questão da manipulação biotecnológica quanto a da criação de softwares foram resolvidas através da proteção das inovações pelo regime de propriedade intelectual, tal como podemos ler nos acordos Gatt- Trips, da Organização Mundial de Comércio.

Na era da informação, a inovação é entendida em termos de processamento e modulação de informações. A inovação ocorre no plano molecular, e consiste freqüentemente numa reconfiguração de componentes digitais e genéticos, mas também numa "tradução" dos conhecimentos tradicionais e modernos num novo paradigma. Por isso mesmo, TRIPS, ao proteger a inovação contemporânea, protege o valor informacional dos produtos e processos manipulados pela biotecnologia e pela tecnologia da informação; mas não pode proteger outros valores, como os valores de uso modernos e tradicionais, e nem os valores ontológicos, porque eles não cabem no sistema.

II

É preciso entender, antes de tudo, que a transformação operada corrói o referencial do humanismo moderno: o homem não é mais a medida de todas as coisas. A medida é a informação enquanto "diferença que faz a diferença". Mas se Simondon e Bateson a consideraram, com razão, de um ponto de vista qualitativo, para o capital global a informação passou a ser a medida quantitativa de todas as coisas. E assim, como o valor do homem foi reduzido pelo capitalismo ao valor do trabalho abstrato transferido para a mercadoria, agora o valor da informação passa pela mesma redução, através dos diferentes sistemas de propriedade intelectual. Abrem-se, assim, um horizonte e um campo de atuação insuspeitados para a apropriação capitalista: o plano molecular do finito ilimitado no qual, lembrando Deleuze, um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações.[4]

Quando a nova economia e a tecnociência empreendem a conquista do plano da informação, começam a se apagar as fronteiras que separam o inorgânico do ser vivo e do objeto tecnológico, mas num sentido perverso. Como observa Catherine Labrusse-Riou, o reconhecimento jurídico do direito das pessoas está sendo posto em xeque por quatro tipos de dificuldades:

· dificuldade de distinguir as pessoas das coisas (caso do embrião in vitro ou congelado e do comatoso ou de quem está em estado vegetativo, que confunde as fronteiras e as representações da vida e da morte);
· dificuldade de distinguir os sexos (fenômeno do transexualismo, que confunde as fronteiras entre homens e mulheres, provocando a indiferenciação sexual);
· dificuldade de distinguir o homem do animal (caso dos experimentos biotecnológicos que misturam genes humanos e de animais, criando seres híbridos);
· e, finalmente, dificuldade de distinguir o Homem da máquina (caso da inteligência artificial).[5]

Tais dificuldades apontam para um problema de fundo, já abordado pelo escritor inglês C.S. Lewis em 1943, em The Abolition of Man. Desdobrando a tendência de domínio progressivo da natureza na escala da trajetória da espécie humana, Lewis imaginou um momento em que a natureza se renderia quando seu último bastião, a própria natureza humana, tivesse sido conquistado. "Então, a batalha terá sido vencida. Teremos 'tomado o fio da vida das mãos de Cloto e doravante seremos livres para fazer com que nossa espécie seja o que quisermos. Com certeza, a batalha terá sido vencida. Mas, justamente, quem terá sido o vencedor?”[6]

Lewis pensa que os vencedores não serão os homens, ou melhor, serão homens que não serão mais humanos. Para ele, a conquista da natureza humana seria realizada por uma geração-chave do futuro, aquela que, por um lado, teria se emancipado da tradição e reduzido, ao mínimo, o poder de seus predecessores, e por outro, exerceria o máximo de poder sobre a posteridade porque poderia dispor de sua descendência como quisesse, através da eugenia e de uma educação planejada e executada cientificamente. Porém, como tal poder não seria igualmente compartilhado por todos os homens dessa geração, algumas centenas deles decidiriam o destino de bilhões de outros: seriam os condicionadores decidindo o destino dos condicionados. Ora, se os condicionadores viessem a ter esse poder exorbitante e essa responsabilidade imensa, teriam de decidir que tipo de consciência gostariam de produzir na espécie. Lewis, então, se interroga: o que aconteceria se eles se perguntassem se devem ou não incutir nela a consciência de sua própria preservação? Mas em vez de resposta, a indagação suscita outra pergunta: por que a espécie deveria ser preservada?

A questão se colocaria porque, sabendo muito bem como se produz o sentimento em prol da posteridade, os condicionadores teriam de decidir se ele deve continuar. Entretanto, considera Lewis, por mais que procurassem um motivo ou fundamento para fazê-lo, seria impossível achá-lo. Isso significa que quando a questão da preservação ou não da espécie se colocasse como opção, o jogo já teria terminado, por não haver mais valor humano algum a preservar. É que, na realidade, condicionadores e condicionados já não seriam mais humanos: os primeiros porque "são homens que sacrificaram sua própria parcela de humanidade tradicional para se dedicarem à tarefa de decidir o que doravante a ‘Hunanidade’ significará”,[7] os segundos porque, em vez de homens, são artefatos. Assim, “ficou evidente que a derradeira conquista do Homem foi abolição do Homem”.[8]

Lewis assinala que, com maior ou menor conhecimento de causa, quase todos os homens, em todos os países, estão trabalhando para produzir "o mundo da pós-humanidade", um mundo em ruptura com a natureza humana e com a cultura que lhe é correspondente. Cinqüenta anos depois da publicação de seu texto fica evidente que o advento de um mundo pós-humano não só está muito máximo do que o escritor pôde imaginar, como se constrói por métodos muito mais radicais do que o condicionamento, uma vez que a manipulação genética poderá reprogramar e recombinar a vida humana. A questão da preservação da espécie humana, ou de seu desaparecimento, deixa, então, de ser uma especulação, tomando-se um problema do nosso tempo.

III

A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, da Unesco, tem 25 artigos. Em nove deles, há a expressão "dignidade". Como se esta fosse um valor-chave quando se trata de genoma humano. Mas, imediatamente, surge a pergunta: é possível preservar a dignidade humana e, ao mesmo tempo, inscrever o genoma humano no regime de propriedade intelectual, que progressivamente transforma a informação genética em commodity?

o art. 4 da Declaração afirma: "O genoma humano em seu estado natural não pode dar lugar a benefícios pecuniários.” O enunciado lembra o do art. 27.3 do TRIPS, que proíbe o patenteamento de seres biológicos, pois ambos parecem proteger a vida contra a apropriação e comercialização. Mas, atenção: apenas a vida não-modificada.

Foi preciso um longo caminho para se chegar a esta distinção entre vida apropriável e vida não-apropriável. Como escreve Bernard Edelman, em La personne en danger: “A intrusão do ser vivo no campo da patente a partir dos anos 30 é uma revolução jurídica. E para se entender direito tal revolução, é preciso destacar um duplo fenômeno: o da modificação profunda do papel da patente e as condições jurídicas que se forjaram para que o ser vivo fosse patenteável.”[9]

Não cabe aqui explorar o longo percurso percorrido por essa revolução, que começa com uma proteção jurídica específica para as plantas em 1930, nos Estados Unidos, em 1980 abarca os microorganismos, estende-se aos animais no final da mesma década e, finalmente, chega ao Homem, com o caso Moore. Interessa, porém, sublinhar que, para o jurista, nessa evolução dois episódios são extremamente importantes: 1) o Plant Act de 1930, no qual o Congresso americano reconhece que as plantas melhoradas são artificiais, isto é, que a distinção pertinente não é mais entre as coisas vivas e as inanimadas, mas entre os produtos da natureza (vivos ou não) e as invenções do Homem; 2) o patenteamento do primeiro microorganismo engenheirado (a decisão Diamond x Chakrabarty): a Suprema Corte dos Estados Unidos deveria julgar se uma bactéria geneticamente manipulada para consumir petróleo em águas marinhas podia ou não ser considerada uma invenção, posto que não existia como tal na natureza.

A questão era, no mínimo, controversa. Key Dismukes, por exemplo, argumenta que não se trata de invenção. Segundo ele, Chakrabarty não criou uma nova forma de vida, simplesmente interferiu em processos normais através dos quais, linhagens de bactérias trocam informações genéticas para produzir uma nova linhagem com um padrão metabólico alterado. Em suma, o que fez foi modulação de processos biológicos.

Se do ponto de vista biológico não se pode qualificar a bactéria de Chakrabarty como invenção, como pôde a Suprema Corte considerá-la assim? No artigo Vers une approche juridique du vivant, B. Edelman examina o caso. Juridicamente, diz ele, a questão era saber se o artigo 101 da lei de patentes americana aplicava-se ao microorganismo. Tal artigo dispõe que quem inventa ou descobre qualquer procedimento, máquina, produtos manufaturados ou composição de matéria nova e útil, ou qualquer melhoria nova e útil que dele decorra, poderá obter uma patente. Seria, então, a bactéria um produto manufaturado ou uma composição de matéria?

Em casos precedentes a Corte já havia definido o produto manufaturado como "artigos de uso tirados de matérias-primas de modo a Ihes dar novas formas, qualidades, propriedades ou combinações, seja através do trabalho humano ou do trabalho de uma máquina "; por sua vez, a composição de matéria era definida como "qualquer composição de duas ou mais substâncias e (. ..) qualquer produto complexo, sejam eles o resultado de uma combinação química ou de uma composição mecânica, que se trate de gases, líquidos, pós ou sólidos".

Comentando tais definições, Edelman faz duas observações: "Por um lado, a ausência total da noção de ser vivo, por outro a presença implícita de um modelo industrial senão do ser vivo, pelo menos da atividade inventiva do Homem, seja ela uma transformação da matéria - entendida no sentido econômico de matéria-prima - ou uma composição diferente da matéria, entendida num sentido químico ou mecânico. Ora, a Corte aplicou esse modelo industrial ao ser vivo. A demanda dos dois pesquisadores, diz ela, "não se reporta a 'um fenômeno natural desconhecido, mas a um produto fabricado ou uma composição de matéria que não existe naturalmente - um produto da atividade humana que tem um nome, um caráter e um uso específicos (...). O receptor da patente produziu uma nova bactéria, com características notavelmente diferentes de todas aquelas que se pode encontrar na natureza, e que tem potencialmente uma utilidade evidente. Sua descoberta não decorre de uma obra da natureza, mas dele mesmo'. Em suma, assim a Corte aplicou ao ser vivo um modelo industrial através da distinção produtos da natureza/atividade inventiva do homem. Doravante o ser vivo pode ser considerado como um meio e, por sua vez, produzir a relação vida natural/vida artificial”.[10]

O comentário de Edelman é importante porque mostra como a especificidade da vida precisa ser ignorada e a pertinência do modelo jurídico que rege a propriedade industrial subsumida para que o patenteamento possa se dar. Mais ainda: ao esclarecer como o modelo jurídico do ser vivo vem calcar-se no modelo industrial, o jurista deixa ver de que maneira este ser torna-se um meio e não um fim, e de que modo a atividade inventiva do homem, entendida como transformação da matéria ou composição diferente da matéria, obedece exclusivamente a considerações de recorte econômico e tecnológico. Se no plano molecular o ser vivo torna-se um meio que o homem utiliza para a sua atividade transformadora, e se isto se encontra sancionado pelo direito, a vida perde seu valor imanente, passando a ter valor socialmente apenas quando a ela for incorporado o trabalho tecnocientífico.

Assim, a decisão do caso Chakrabarty representa efetivamente um momento - chave - e não só no campo jurídico. A partir dali, a vida toma-se um patrimônio genético suscetível de apropriação, e como tal, a última enclosure, na perspicaz análise de Jeremy Rifkin.[11] Pois como indaga Leon Kass: "Em termos de princípio, qual é o limite a este início da extensão do campo da apropriação privada e do domínio sobre a natureza viva (. ..)? O princípio usado no caso Chakrabarty afirma que não há nada na natureza de um ser; nem mesmo no próprio patenteador humano, que o torne imune ao patenteamento”.[12]

A extensão do modelo industrial ao ser vivo e a transformação deste em meio agravaram-se bastante desde o caso Chakrabarty , no bojo da controvérsia cada vez maior sobre a diferença entre invenção e descoberta. A questão desperta enorme interesse e atiça a disputa entre os laboratórios de biotecnologia que defendem o patenteamento da informação genética tout court e os que pretendem patenteá-la embutida num processo ou produto industrial específico. Disputa que, aliás, agora se desdobra, no âmbito dos projetos de seqüenciamento do genoma humano, nas divergências sobre a necessidade de se ter o gene completo e conhecer sua função, antes de patenteá-lo, ou se é recomendável pedir patentes para pedaços de genes.

Fica evidente então, que a vida humana, em seu plano mais ínfimo, não escapa da tendência à apropriação e que o próprio deslocamento do objeto da disputa já indica o quanto a descoberta no campo da biologia molecular vem sendo cada vez mais considerada uma invenção. Finalmente, é preciso lembrar que até mesmo em termos conceituais vai ficar difícil fazer a distinção, à medida que a fusão da informática com a biologia for se consolidando. Basta lembrar como a bioinformática considera o ser vivo - por um lado, enquanto texto, informação digital; por outro, enquanto vida, informação genética, como se o ser vivo fosse uma linguagem que se expressa tanto no plano abstrato, plano dos signos, quanto no plano concreto, plano da matéria viva. Nesse sentido, a leitura do código genético passa a ser mais do que uma simples descoberta: a invenção de um dispositivo de decifração que corresponde ao texto da vida passa a ser reivindicada como um direito sobre a própria vida.

IV

A conquista da natureza humana e a possibilidade de apropriação da vida humana em sua dimensão molecular ameaçam a integridade do homem. Mas em que nível? Pode o conceito de dignidade, tão evocado pela Declaração Universal do Genoma Humano e os Direitos Humanos, esclarecer o que está em jogo e, principalmente, apontar o que se deve proteger? Num texto de 1997, Bernard Edelman pensa que sim. Mas para tanto é preciso, primeiro, reconhecer que se trata de um conceito novo no campo do Direito e, segundo, trabalhar pelo estabelecimento de seu espaço jurídico. Nesse sentido, Edelman propõe que se explicite a sua "novidade radical": a dignidade designa não o ser do Homem mas a humanidade do Homem - ela é que está sendo ameaçada.

Para entender a especificidade jurídica da "novidade radical" é preciso distinguir a filosofia dos direitos humanos da filosofia da dignidade. "Todos sabem ", escreve Edelman, "que os direitos humanos visam, substancialmente, a defesa do indivíduo contra a arbitrariedade do poder e, em primeiro lugar; do Estado. O Homem sempre corre o risco de perder sua liberdade e por isso ela deve ser protegida, isto é, juridicamente organizada. A liberdade surge, portanto, como o conceito fundamental dos direitos humanos, liberdade 'política’[13] (...) Mas o conceito de dignidade situa-se num plano inteiramente diferente. Ele não designa mais - nem menos - a essência do Homem que os direitos humanos: ele a significa de outra maneira”.[14]

Edelman considera que o modo como a dignidade apreende a essência do homem consiste no lugar que ela confere à humanidade. Os direitos humanos, diz ele, giram em torno do Homem como na física de Ptolomeu os astros giram em torno da Terra. Mas se a humanidade ocupar o lugar central, se substituirmos o homem por ela, tudo muda: "Enquanto o Homem dos direitos humanos representa, juridicamente, o indivíduo universal em sua liberdade universal, e põe portanto em cena um processo de identificação, a humanidade não permite tal modo de representação. Ela se apresenta como a reunião simbólica de todos os homens no que eles têm em comum, a saber sua qualidade de seres humanos. Em outras palavras, ela é o que permite o reconhecimento de um pertencimento a um mesmo ‘gênero’: o gênero humano.”[15]

A dignidade é a qualidade desse pertencimento - explica Edelman. "Se todos os seres humanos compõem a humanidade, é porque todos têm essa mesma qualidade de dignidade no 'plano' da humanidade; dizemos que são todos humanos e dignos de sê-Io. Colocada no centro de uma ordem jurídica a humanidade, em vez de ordenar uma identificação, instrui um reconhecimento. Em duas palavras, se a liberdade é a essência dos direitos humanos, a dignidade é a essência da humanidade. "[16]

A humanidade não se situa, assim, no plano dos direitos humanos, mas no plano de um direito natural supranacional; por conseqüência, o mesmo se dá com a dignidade. Ora, no paradigma da humanidade, a dignidade está “fora do comércio", como o corpo e os embriões humanos. O indivíduo não pode dispor de sua dignidade, não pode aliená-la nem renunciar a ela, porque não pode se excluir da humanidade. Assim, conclui Edelman, "o Homem não é livre para renunciar à sua qualidade de Homem".[17]

A reflexão jurídica de Edelman dá bem a dimensão coletiva da questão que nos preocupa. O conceito de dignidade é supra-individual e remete ao gênero humano, ou à espécie.

Mas não são só os juristas que estão inquietos com o assunto. Os artistas também estão falando do desaparecimento do humano. O poeta Heiner Muller, por exemplo, quando clama por "uma nova consciência da espécie" pensa em termos de todos ou ninguém.[18]


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NOTAS

[1] Professor do Departamento de Sociologia da UNICAMP; membro do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da USP.

[2] Bateson, G. Men are Grass, in Thompson, w. I. (ed.) Gata - a way of knowing: political implications of the new biology, pp. 40-41.

[3] Simondon, G. L’individu et sa génèse physico-biologique. Paris: PUF: 1964.
p. 250. ver também L'individuation psychique et collective. Paris: Aubier, 1989.

[4] Deleuze, G. Foucault, Paris, Minuit, 1986, pp. 139-140.

[5] Labrusse-Riou, C. La Vérité dans le Droit des Personnes, in Edelman, B. et Hermitte, M-A. L'Homme, la Nature et le Droit. Paris: Christian Bourgois, 1988. pp. 159-198.

[6] Lewis, C.S. The Abolition of Man. London: Fount-Harper and Collins 1978, p. 37.

[7] Idem, p. 36.

[8] Idern, p. 40.

[9] Edelman, B. La Personne en Danger. Paris: PUF, 1999, p. 311.

[10] Idem, pp. 286-287.

[11] Rifkin, J. op. cit., pp. 38 a 44.

[12] Citado por Rifkin, J. op. cit., p 44.

[13] Edelman, B. La Personne en Danger, op. cit. , pp. 507-508.

[14] Idem, p. 508.

[15] Ibidem, pp. 508-509.

[16] Ibid., p. 509.

[17] Ibid., pp. 512-513.

[18] Lettre au metteur en scène de la première représentation de philoctète en Bulgarie au Théâtre Dramatique de Sofia, in H. Müller, Fautes d’impression. Paris: l’Arche, 1991, p.34. trad. De J. L. Besson e B. Sobel.