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A
DIGNIDADE DA PESSOA VIVENDO COM DOENÇAS GENÉTICAS:
UM DEPOIMENTO
Glória Christina Barbosa
Quando
fui convidada para escrever este artigo, falando
sobre o Genoma Humano, confesso que, ao mesmo
tempo que me senti envaidecida, fiquei muito assustada
pois, na realidade, é um tema sobre o qual
tenho pouquíssimo conhecimento. No entanto,
adoro desafios e minha vida é repleta deles,
então por que não aceitar mais um?
Além do desafio, tenho um motivo muito
especial, que me liga diretamente a este tema:
sou portadora de uma doença genética
chamada anemia falciforme. Neste momento em que
escrevo, meu hemacrócrito está em
19%, o que, no meu caso, me causa dores, mal-estares
e baixa imunidade.
A
anemia falciforme é uma doença genética,
de caráter recessivo, cujo gene pode ser
encontrado em cerca de 6 a 10% da população
brasileira. A união de pessoas com esta mesma
característica genética, representa
25% de possibilidade de gerarem filhos com a doença,
contra 50% de probabilidade dos filhos herdarem
os traços genéticos (híbridos,
porém dominantes quanto à normalidade
da pessoa) e os 25% restantes com a chance dos filhos
nascerem sem qualquer vestígio da doença.
Doença hereditária mais comum no Brasil,
a anemia falciforme tem sua origem desconhecida,
mas, provavelmente, desenvolveu-se na África,
há milhões de anos, devido a uma mutação
genética.
Embora
haja uma grande incidência nas pessoas da
raça negra, muitas pessoas brancas, particularmente
provenientes do Mediterrâneo, apresentam a
doença. Ela é causada por uma anormalidade
da hemoglobina (glóbulos vermelhos), não
é contagiosa, porém, nós, falcêmicos,
estamos sujeitos a infecções diversas,
necroses assépticas, osteomielites, AVCs,
meningites, problemas renais, pneumonias, priapismos
e tudo o mais que o destino nos reservar. Temos
tantas dores que é difícil, para alguém
sadio, imaginar a intensidade que atingem - cabe
apenas aos "normais" a função
de imaginar o quanto deve ser difícil nos
manter fortes e o mais importante, vivos. Sofremos
ainda
com discriminações e com o descaso
de governantes, profissionais de saúde e
da sociedade e, mesmo tendo um número significativo
de pessoas com anemia falciforme, não conseguimos
ser ouvidas. Exaustos de esperar que alguém
fizesse alguma coisa por nós, resolvemos
ir à luta e nos representar; fundamos a nossa
Associação.
A
AFARJ tem como objetivos criar condições
para uma assistência mais efetiva, fazer com
que os falcêmicos continuem os estudos mesmo
quando internados, conseguir remédios (em
falta nos hospitais) necessários ao tratamento,
proporcionar apoio psicológico, integrar
o paciente à sociedade, conseguir máquinas
necessárias ao tratamento e, até mesmo,
cestas básicas, voltadas para a necessidade
alimentar de cada paciente pois, geralmente, os
pacientes são extremamente carentes, lutar
juntamente com os Conselhos Municipal, Estadual
e Federal de Saúde por um bom atendimento
nos hospitais, divulgar e informar a população
em geral, criar espaços e condições
para uma maior movimentação cultural
dos portadores e, principalmente, ter como prioridade
o direito do portador fazendo com que a Lei 3.161,
de 31 de dezembro de 1998, seja cumprida. Para isso, contamos
com o Decreto 25.573, de 16 de setembro de 1999,
que regulamenta a Lei mencionada e institui o Grupo
de Trabalho de Anemia Falciforme.
Nasci
com 4,5 kg, com cabelo loirinho, saí da maternidade
perdendo peso e com uma febre inexplicável.
Tanto eu como meus irmãos nos tratamos com
um pediatra de renome, porém como sempre
estava doente e ele não sabia o que eu tinha,
minha mãe trocou de médico e isto,
por diversas vezes, inúmeros exames foram
feitos e ninguém conseguia diagnosticar o
que eu tinha. Durante dez meses, minha mãe
conta, eu nem chorar chorava mais, só gemia.
Neste período, uma noite minha mãe
ficava comigo, outra, a babá. Certa noite,
quando minha babá estava comigo, eu desfaleci
e ela entrou no quarto de minha mãe comigo
no colo gritando: - “Christininha morreu!
A Christininha morreu!" minha Mãe me
levou a um pronto-socorro onde fui reanimada. Lá
fiz mais exames, entre eles, um que ninguém
havia ainda pedido. Segundo o médico, só
por desencargo de consciência, pois eu não
apresentava nenhuma característica das pessoas
que tinham aquela doença.
No
dia seguinte, minha mãe atende à campainha.
O médico que me atendera no pronto-socorro
veio pessoalmente informar que, infelizmente, eu
tinha a doença que ele achava impossível
e que uma equipe médica estava a minha espera
para que eu fosse atendida imediatamente. Caso nós
não tivéssemos dinheiro, ele pagaria
e depois meus pais o ressarciriam. Aos 10 (dez)
meses fiz minha primeira transfusão e nem
posso dizer quantas fiz até hoje. Ele me
indicou um hematologista, que perguntou à
minha mãe se tínhamos direito a algum
hospital. Mamãe falou que sim, o Hospital
dos Servidores do Estado (HSE), mas que nunca havia
ido lá, e ele respondeu: -"Mas enquanto
ela viver; a senhora nunca mais sairá dele
e, com esta doença, rico fica pobre e pobre
morre. "Falou ainda que não tinha certeza
se eu completaria 1 (um) ano, pois meu coração
estava muito comprometido.
Minha
mãe saiu de lá em frangalhos: sou
a única filha mulher e a caçula, o
sonho da vida dela e estava prestes a morrer. Andou
o dia inteiro. Chegando em casa, contou a meu pai
que falou que, se era de dinheiro que eu precisava
para viver mais tempo, ele voltaria a estudar e...
se formou em advocacia. Decidiram que eu seria criada
como uma criança normal, claro que com as
minhas limitações, e o estudo - principalmente
para minha mãe - era fundamental pois, segundo
ela, "doente e burra era muita desgraça
junta ".
Em
minha família, nunca houve nenhum caso de
anemia falciforme. Eu fui a primeira e a única
até hoje.
O
diagnóstico demorado se deve a isto e ao
fato de, naquele tempo, acharem que só negros
eram portadores da mesma. As pessoas estão
cometendo este erro quando divulgam a doença
e isto, além de trazer um grande malefício
às pessoas da raça negra, comprometendo
seus empregos, ainda faz com que corramos o risco
de termos um número muito grande de crianças
brancas morrendo antes de conseguirem ser diagnosticadas.
Esta
é uma das minhas preocupações,
temos de ver que estamos falando de seres humanos,
independente de serem brancos, negros, amarelos
ou cor de abóbora, isto é o que menos
importa.
Hoje
aos 39 anos, quase tudo que descrevi sobre as crises
da anemia falciforme eu já sofri e um pouquinho
mais. Aos dezoito anos já tinha sido internada
cerca de 180 vezes no (HSE), onde me trato até
hoje e, embora tenha uns 10 prontuários (atualmente
tenho um número muito maior de internações
que os citados aos 18 anos de idade), graças
a meus pais e dezenas de amigos, consegui graduar-me
em bacharel de Direito. Ocupo também o cargo
de primeira secretária da AFARJ e faço
parte do Comitê de Ética em Pesquisa
da FIOCRUZ e do HSE.
Agora
posso expor melhor a minha opinião sobre
o Genoma Humano. O fascínio que este tema
exerce sobre as pessoas, às vezes me assusta,
pois tenho medo dos métodos empregados, e
dos fins a que serão aplicados. Sem dúvida
alguma, gostaria muito que descobrissem a cura da
anemia falciforme, assim como as demais doenças
hereditárias e as adquiridas que hoje ainda
são incuráveis. Quando, aos 20 anos,
fiz a minha primeira exsanguíneotransfusão,
que é a troca do sangue, meu hematologista,
na ocasião era o Michel Tenembaum, disse
que minha salvação estava na engenharia
genética e que torcia para que eu tivesse
força, pois chegaria a ver a cura da anemia
falciforme e de outras doenças incuráveis.
Acho que ele tem razão e, mesmo não
estando tão bem assim, tenho quase certeza
de que verei isto. Vamos tirar o "quase".
Uma
coisa me preocupa: será que esta cura também
vem para mim ou só para crianças que
estão com os órgãos vitais
comprometidos? Ou apenas para as que ainda vão
nascer? Espero que as pesquisas consigam salvar
as crianças com esta patologia ou com outras
de igualou pior gravidade. Se, para nós adultos,
descobrirem uma maneira de atenuar nosso sofrimento,
já me dou por satisfeita. Eu aprendi a conviver
com minha doença.
Imagino
que o grande objetivo da descoberta do Genoma Humano
seja dar uma melhor condição de vida
às pessoas portadoras de doenças incuráveis
adquiridas e, principalmente, às geneticamente
transmissíveis e não, excluir o cidadão.
Por enquanto, a descoberta do DNA associado à
doença apenas dá o conhecimento de
que a criança pode vir a nascer com determinada
doença. Ainda não se tem a cura.
Venho
mais uma vez, mencionar a minha preocupação
com a exclusão do ser humano depois que o
Genoma estiver todo decifrado, pois receio pelo
emprego das pessoas no futuro, imaginando que possa
ser pedido um exame de DNA no momento da admissão.
Caso se constate que esta pessoa tenha disponibilidade
de desenvolver determinada doença ela pode
vir a ser excluída do mercado de trabalho,
assim como dos planos de saúde. O fato de
a pessoa não ser obrigada a fazer o exame
de DNA não a protege de absolutamente nada,
pois sua recusa pode levar o empregador a lhe negar
o emprego, o mesmo acontecendo com os planos de
saúde. Seria necessário proibir este
exame para admissão no emprego.
Me
preocupa também, a volta da mentalidade de
Hitler, a defesa da criação de uma
raça pura. Claro que queremos o ser humano
livre de doenças, porém, não
concordo com a criação de uma raça,
seja ela branca, negra ou amarela, nem de seres
totalmente "laboratoriais"; a evolução
do ser por manipulação. O pior é
saber que podemos chegar ao ponto de pessoas menos
favorecidas, tanto física, econômica
quanto intelectualmente, passarem a ser cobaias
de outros seres da mesma espécie, isto é,
um ser humano cobaia para outro ser humano, que
se aproveita justamente destas limitações.
A
princípio, acredito que as intenções
sejam as melhores possíveis, mas tenho muito
receio do que pode ser feito no futuro com tamanho
conhecimento. Por este motivo, temos que pensar
bem na formulação de nossa legislação,
para que não deixemos nenhuma brecha para
um uso indevido do Genoma, não esquecendo
nunca da ética com a pessoa a ser pesquisada
e com a própria natureza.
Não
podemos esquecer dos nossos interesses, isto é,
da preservação da nossa fauna, da
flora e do meio ambiente, controlando quem, como
e o quê será pesquisado, tanto pelos
estrangeiros, como pelos nossos pesquisadores. E,
no caso das pesquisas feitas por estrangeiros se
é dada preferência sempre aos projetos
que venham gerar mais benefício ao nosso
País, assim como, treinamento do nosso pessoal,
transferindo seus conhecimentos para nós
e beneficiando instituições públicas
envolvidas, em caso de apropriação
comercial.
É
preciso que se saiba que tanto nos leitos de nossos
hospitais, como perambulando por todo o País,
e pelo mundo, existem milhares de pessoas contando
com a descoberta do DNA, pessoas aflitas, assim
como eu, precisando de uma solução
rápida para nossos problemas. Porém,
acredito que estas pessoas, ou a maioria delas,
pensem como eu: não adianta o Genoma ser
totalmente decifrado se não temos leis que
assegurem o futuro da humanidade, que não
sejam apenas postas no papel para, no final, serem
aplicadas de qualquer forma, ou dando o famoso "jeitinho".
Por se tratar de um assunto tão sério
envolvendo os Direitos Humanos, a decisão
não pode ser unilateral, pois envolve toda
a humanidade. Talvez esta decisão deva ser
coletiva, mundial, societária, vinda de cada
parlamento. Penso que a ética é uma
forma que temos para lutarmos contra o autoritarismo.
*
* * * * * *
REFERÊNCIAS
EMERICK,
Maria Celeste e CARNEIRO, Fernanda. Recursos Genéticos
Humanos: Limites ao Acesso. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,
1997.
GARRAFA,
Volnei. Declaração de Helsinque -
Fundamentalismo Econômico e Controle Social
Texto copiado, 2000.
NOTAS
Diretora da Associação
dos Falcêmicos e Talacêmicos do Rio
de Janeiro (AFARJ) e representante dos Usuários
no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da FIOCRUZ.
Lei 3161, 30/1211998, ALERJ,
“institui o Programa de Acompanhamento e Assistência
Integral às pessoas portadoras do traço
falciforme e com anemia falciforme no Estado do
Rio de Janeiro”.