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DOCUMENTO FINAL
Grupo de Trabalho Ética, Direito Ambiental e Políticas Públicas do Seminário Saúde e Ambiente no Processo de Desenvolvimento FIOCRUZ /2000
 

Tema: Genoma Humano: limites éticos e jurídicos
Coordenação: Maria Celeste Emerick e Fernanda Carneiro.
Participantes: Adriana Diaféria, Ana Cláudia Bento Graf, Antônio Luiz Figueira Ba1bosa, Bruno Mac Cord, Camila Argôlo Godinho, Fernanda Carneiro, Gisele Unhares Corrêa, Glauber Araújo de Aguiar, José Antônio Peres Gediel, Maria Celeste Emerick, Marilena Corrêa, Mario Jorge Gatti, Mônica Mulser Parada Toscano, Raquel Guerra Carrapatoso, Sílvio Valle, Sirley Lopes, Wi1liam Cristóvão Leiroz.
Objetivo: exercitar o pensamento teórico esboçando caminhos conceituais e posições éticas para diferenciação do tratamento jurídico para proteção da dignidade e integridade do genoma humano - patrimônio simbólico da humanidade.
Metodologia: Comentários gerais sobre o texto-referência: Genoma Humano: acesso e uso de gen-tes (Fernanda Carneiro, Maria Celeste Emerick, Marcos Rocha) e a Medida Provisória, de 2052/2000, que dispõe sobre patrimônio genético, excluindo de seu escopo o genoma humano.

I

Desde 1995, um projeto de lei sobre acesso e uso de recursos genéticos no Brasil (PL 306-95), de autoria da Senadora Marina Silva, é apresentado à sociedade. A FIOCRUZ foi chamada a participar de Audiência Pública no Congresso Nacional onde levantou a questão da exclusão do Genoma Humano do projeto colocando, desde então, ao debate público, a necessidade de definir a proteção jurídica do patrimônio genético humano, objeto de pesa- dos investimentos em pesquisas.

Em 1996, a Presidência da FIOCRUZ, através da Coordenação de Gestão Tecnológica/GESTEC, organizou um debate interdisciplinar convidando especialistas, estudiosos da filosofia, antropologia, teologia, direito, biomedicina e biotecnologia, organizações não-governamentais, consultores do Executivo e Legislativo com seus resultados reunidos no livro" Recursos Genéticos Humanos - limites ao acesso" (Emerick, M. Celeste. e Carneiro, Fernanda, FIOCRUZ/1997).

A formação do Grupo de Trabalho Ética, Direito Ambiental e Políticas Públicas, visando este Seminário Saúde & Ambiente no Processo de Desenvolvimento, representou uma oportunidade de dar continuidade ao debate visando indicar caminhos conceituais para a proteção regulamentar do genoma humano. Até este momento, o projeto de lei relativo a plantas e animais, a despeito do interesse que levantou entre setores preocupados com a proteção da biodiversidade brasileira, se deparava com um desinteresse no caminho de sua tramitação legislativa, impedindo o coroamento de um processo de elaboração de uma lei justa.
Fomos surpreendidos em 29/06/2000 com a divulgação de uma Medida Provisória (nO 2052/2000), dispondo sobre "a proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e à transferência tecnológica para sua conservação e utilização ". Em seu art. 3°, a MP define: "Não se aplica ao todo ou parte de seres humanos inclusive seus componentes genéticos. "

Este fato político nacional, somado à divulgação dos primeiros resultados do Projeto Genoma Humano pelo consórcio internacional que o empreende, mostra-nos a urgência de se fortalecer um processo democrático de mobilização de saberes e interesses nacionais comprometidos com a responsabilidade na proteção jurídica do genoma humano - patrimônio simbólico da humanidade. Confirma, também, a pertinência deste tema entre pesquisadores de áreas afins do campo de conhecimento da Saúde & Ambiente, impondo-nos a necessidade de um posicionamento deste grupo de trabalho que a seguir descrevemos.

II

Com o pensamento aquecido pelas palavras do Mestre Milton Santos, inidamos o trabalho lembrando que a moral é o fundamento da política e, no que se refere à política de proteção à diversidade da vida, há que se trabalhar idéias generosas, movidos pelo desejo e pretensão de melhorar, o país e nosso lugar. Este Seminário é uma oportunidade de exercitar este compromisso com o debate intelectual, visando a ampliá-lo entre os profissionais que trabalham o tema da saúde associado ao processo de desenvolvimento. Falar de ética é falar de limites colocados ao poder humano de transformação. A Ética, nada mais é do que a morada de homens e mulheres. Essa vocação para o saber fazer é um atributo próprio ao ser humano: transformar e construir sua morada, sua "ambiência". Deste poder para o saber fazer deriva sua responsabilidade. Nessa morada, algo já estava feito quando aqui chegamos. A História da humanidade é uma história de transformação dos lugares onde habitamos, segundo costumes e normas, também construídas em luta, conflitos e alianças entre grupos sociais, países, regiões. Somos naturalmente produtores de culturas diversificadas. Há que se colocar limites ao saber fazer.

Na contemporaneidade, o mundo transformado por homens e mulheres engendrou um Conhecimento fragmentado em disciplinas, um Direito voltado para a proteção da Propriedade, fragmentado em códigos e doutrinas, um Mercado orientado pela negociação e lucro, numa lógica de contratos e de exclusão social. O saber fazer transformou-se em tecnociência e se prepara nos jogos de poder para apropriar-se do corpo e da reprodução e alteração das espécies - última fronteira de extensão do mercado. O poder de transformação humano alcançou a intimidade genética dos seres vivos e prepara-se para tomar nossas informações genéticas bens de interesse econômico. O controle da reprodução da vida e das espécies é o objeto de disputa das empresas de biotecnologia. A junção da biologia com a informática potencializa o domínio da exploração econômica. O capital precisa de regras e leis de proteção das propriedades dos novos bens em disputa - nosso corpo e a diversidade viva da Terra.

As leis da escravidão que legitimavam a posse de pessoas ficaram para trás.
A complexidade ganha dimensões virtuais em meio a poderes inusitados. Seremos meios por que motivos e para que fins? As leis existentes comprovam uma nítida dominância dos interesses do capital. Nos jogos do poder dominante, a saúde é o pseudo valor proclamado pela promessa dos interlocutores das empresas de colocar fim às doenças. A isso respondemos: "saúde é valor ético". Às leis provisórias, elaboradas em gabinetes, fora do âmbito do debate democrático e inconstitucional, dizemos: "políticas públicas devem ter sentido". Não devem ser instrumento para facilitar a expropriação do que deve ser resguardado da apropriação privada. Não nos reconhecemos nessa prática de medida provisória, ignorando o exercício democrático de debater um projeto de lei apresentado ao público desde 1995, buscando evitar a apropriação privada da biodiversidade de plantas e animais e do saber tradicional dos povos da floresta. Reconhecemos ser necessária uma proteção para enfrentar e resistir à fragmentação e apropriação do corpo em informações genéticas virtualizadas. Informações genéticas de plantas, animais e humanos não são bens sobre os quais recai o poder absoluto do controle e da circulação como mercadoria. Resistindo ao reducionismo biológico e à ameaça de fazer da genética humana um campo de exploração há que firmar-mo-nos no conceito de pessoa, plena de dignidade. Este é o âmago das idéias generosas que devemos enraizar em nosso lugar de morada e ação como pessoas, profissionais e brasileiros. É com o desejo de expressar a humanidade em nós que devemos nos defender do risco que nos ameaça como espécie e como sociedade. A apropriação privada das informações genéticas é um saque à nossa herança como humanidade e, sua manipulação in vivo, um risco biológico de conseqüências incontroláveis e ignoradas pelo saber técnico contemporâneo. O futuro torna-se objeto de nossa responsabilidade. Processo de desenvolvi- mento é opção cultural. Convidamos a todos os presentes que participem deste debate, em seus lugares, como pessoas plenas em sua dignidade e responsabilidade, para pensarmos como espécie e como atores sociais neste assunto que nos diz respeito, incluindo-o também nas pautas da Saúde Pública e de toda comunidade científica e áreas afins, definindo seus interesses específicos e independentes, resistindo ao reducionismo biológico, moral e político capaz de massificar as mentes e nos levar a pensarmos-nos como coisas. Somos capazes de simbolizar, e com este poder afirmamos. Pessoa não é coisa e estamos conversados.


Rio de janeiro, 13 de julho de 2000.