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A GENÉTICA MÉDICA NAS INTERFACES DA CIÊNCIA, ÉTICA E SOCIEDADE
Juan Clinton Llerena Jr.
[1]

A Genética Médica contemporânea contempla uma série de atividades clínicas envolvendo atitudes e propedêuticas médicas voltadas para o diagnóstico, tratamento, assistência e prevenção das doenças .genéticas.[2] Mais recentemente, a Genética Médica tem atuado de forma relevante na orientação de indivíduos sadios submetidos a testes genéticos preditivos. Neste sentido, a Genética Psicossocial[3] tem emergido como uma nova disciplina científica no acompanhamento de tais indivíduos, investigados através dos testes genéticos moleculares.

As estratégias de prevenção das malformações congênitas, retardo mental e doenças genéticas podem ocorrer em três planos distintos da atuação médica: primária, secundária e terciária, entendendo-se como prevenção primária as medidas que evitem sua ocorrência. Tais anomalias congênitas afetam 1 a cada 10 ou 20 crianças que nascem e, não obstante a sua freqüência, 50% destas poderiam ser prevenidas através de medidas simples. A essência das medidas recomendadas é ter filhos em idades propícias, vacinar-se contra a rubéola, atender às consultas pré-natais, não tomar medicamentos desnecessários, não beber álcool, não fumar, alimentar-se adequadamente e inteirar-se sobre os riscos do trabalho.[4]

A prevenção secundária, por sua vez, lida com propedêuticas médicas no sentido de identificar malformações congênitas ou doenças genéticas em gestações já em curso.[5] Para que a prevenção secundária obtenha o resultado desejado há de se admitir a opção do casal em não continuar a gravidez diante das anomalias detectadas.

A prevenção terciária lida com a minimização das complicações associadas às malformações congênitas e doenças genéticas desde o período fetal até a vida adulta.[6] O Quadro I (em anexo) resume as atividades de um geneticista clínico e sua propedêutica nas diferentes etapas da vida de um indivíduo.

A medicina preditiva introduziu uma quarta forma de prevenção à doença, especialmente para as doenças neurodegenerativas [7]e o câncer[8]. Trata-se do estudo genético de indivíduos sadios com a finalidade de identificar genes mutados que predisponham a determinadas doenças de instalação na vida adulta. O Quadro II (em anexo) resume algumas doenças que atualmente podem ser investiga das de forma preditiva através das técnicas da genética molecular. Os agregados familiares são os que fundamentalmente se beneficiam desta prática clínica.

Entre os primeiros passos para a instalação de programas preventivos de saúde devemos levar em consideração as diversidades da estrutura socioeconômica e religiosa da população. O conhecimento do senso comum com respeito à saúde, as tradições de ordem social e religiosa e as expectativas sociais dos indivíduos e da comunidade devem ser acessadas de forma bem-definida. É aconselhável, também, urna efetiva avaliação do tipo de atendimento médico que está ao alcance da maioria dos cidadãos e qual tipo de problema de saúde pública os aflige (anemia falciforme, síndrome de down, fibrose cística, câncer de mama, entre outros).

Os objetivos de tais programas de prevenção devem levar em consideração que os mesmos não devem ser implantados de forma a impor determinados testes genéticos ou decisões reprodutivas à clientela. Deve-se reconhecer que dentro de um mesmo país existem diversidades cultural e de opinião a respeito de uma série de temas relativos à genética. Tais temas incluem questões voltadas à reprodução humana e à construção cultural - individual ou comunitária - com relação aos "menos capazes". Recente estudo da Organização Mundial de Saúde, conjuntamente ao World Alliance of Organizations for the Prevention of Birth Defects,[9] reiteram tais princípios éticos na implantação de serviços para a assistência e prevenção das malformações congênitas e doenças genéticas, principalmente em países em desenvolvimento.

Apesar das marcantes diferenças existentes entre países, inclusive entre esta- dos, assim como entre diferentes correntes bioéticas, podemos considerar como consensuais cinco princípios básicos na condução da implementação dos programas de assistência e prevenção, visando proteger a clientela: autonomia, privacidade, justiça, qualidade e eqüidade.

Por autonomia entende-se como uma decisão voluntária de submeter-se ao teste genético através de um termo de consentimento consciente, livre e esclarecido. A orientação médica deverá ser informativa e não-diretiva, baseada em riscos de ocorrência ou recorrência preestabelecidos nos programas de aconselhamento genético, sendo que a qualquer momento o consulente poderá retirar-se do programa proposto ou não requerer o resultado do exame ao final da pesquisa.

Por privacidade entende-se como o direito de assegurar ao cliente a confidencialidade das informações obtidas e preservá-las do alcance de terceiros, como pessoas ou familiares, instituições públicas ou instituições privadas. Há também, nestas circunstâncias, necessidade da preservação do anonimato, principalmente ao indivíduo portador de uma malformação congênita compatível com a vida e detectado pelos programas de rastreamento pré-natal.

Por justiça entende-se a preservação dos direitos daqueles juridicamente incapazes. Estamos aqui nos casos de diagnóstico intra-útero, assegurando desde o período pré - - natal os direitos do feto, caso os pais, responsáveis únicos pela gestação, considerarem que a diversidade da espécie humana deva ser respeitada ao nascimento.

Por qualidade entende-se como a existência de processos contínuos de auto-avaliação e avaliação externa dos serviços genéticos mantendo-se um padrão de excelência quanto à especificidade e sensibilidade dos exames em questão.

E, por fim, por eqüidade entende-se como sendo o direito ao acesso aos exames genéticos independente da origem racial, geográfica ou da classe econômica das pessoas.

A prevenção no contexto das doenças genéticas levam a inevitáveis discussões polêmicas sobre o diagnóstico pré-natal, interrupção seletiva de gestações, perda dos direitos civis pela interdição, esterilização e a engenharia genética. Num plano mais amplo de discussão, também questiona-se a discriminação com relação à cobertura dos planos de saúde.

No Brasil, a grande maioria de serviços genéticos está vinculada a instituições de ensino ou de pesquisa; contudo, há uma demanda a serviços médicos privados.[10] Existem hoje no Brasil cerca de 33 serviços de Genética Médica distribuídos nas principais cidades urbanas do país [RS(4), SC(I), PR(2), SP(16), RJ (3), MG (2), DF (1), AL (1), PE (2), CE (1)] e, cerca de 35.000 famílias foram atendidas no ano de 1995, visando orientação genética. A maioria das propedêuticas e exames listados nos Quadros I e II (em anexo), em via de regra, deve nortear- se a partir dos princípios bioéticos acima listados.

ERA DO GENOMA HUMANO

Não podemos deixar de ressaltar que a Genética Médica foi a grande inspiradora do projeto Genoma Humano e a aplicação médica das informações obtidas a partir do seqüenciamento do genoma tem sido uma realidade na prática da Genética Médica contemporânea no Brasil. O enorme impacto médico e social que tais doenças genéticas trazem aos afetados, às suas famílias e à sociedade, poderão, no final, justificar todo o empenho para tal magnitude de projeto científico globalizado.

Contudo, a comercialização do genoma gerou uma indústria genômica voltada para a descoberta e patente dos genes, suas variações e funções, além das proteínas correspondentes. A descrição final do genoma, através do ordenamento de pares de bases - semelhante à tabela periódica dos elementos na química ou o alfabeto para a escrita - é, apenas, uma introdução para o seu completo conhecimento. Uma vez completa a seqüência do genoma, esta estará disponível ao público, sem ônus, cedida pela companhia de biotecnologia Celera e pelo Projeto Genoma Humano do National Institute of Health (USA). O valor comercial desta seqüência de DNA estará capitalizada a partir das novas informações e descobertas que se somarão ao completo seqüenciamento.

As oportunidades financeiras em busca de novas estratégias comerciais, utilizando as informações obtidas a partir do projeto Genoma Humano e voltadas à cura e/ou tratamento das doenças genéticas são uma realidade.[11] Quatro modelos básicos de empresas emergiram da indústria genômica e estão resumidos no Quadro III. (em anexo) Destas diferentes oportunidades financeiras, hoje, há um parque farmacêutico estimado em US$ 300 bilhões de dólares em investimentos com um crescimento previsto para 2020 na ordem de US$ 3 trilhões de dólares.

Diante do exposto, fica evidente a crescente responsabilidade bioética de setores estratégicos no Brasil voltados à Genética, como gestores de políticas públicas de saúde, às instituições de pesquisa, às agências de fomento, o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) junto aos CEPs locais, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a mídia e a comunidade civil para que a transferência de conhecimento e tecnologia da mais alta sofisticação genética seja amplamente abrangente no país de forma a atender os cincos princípios éticos na assistência e prevenção das doenças genéticas já citados: autonomia, privacidade, justiça, qualidade e equidade.


* * * * * * *

Quadro I

Formas de Intervenção e Propedêutica na Genética Médica

1 Fertilização in vitro e diagnóstico genético molecular ou citogenético (FISH) em célula única.
2 métodos invasivos, implicando em testes com risco de perda fetal pela mãe.
3 A Constituição brasileira não permite aborto, exceto em casos de estupro e risco materno. Casos de jurisprudência para malformações congênitas letais (ex. anencefalia) já foram concedidos em diversos estados brasileiros.
4 Os protocolos de pesquisa em terapia gênica estão disponíveis para determinadas doenças genéticas (anemia de Fanconi, fibrose cística, entre outras).

Quadro II

Exemplos de Testes Genéticos Preditivos Disponíveis na Prática Médica

1 Por definição, aplicado em indivíduos sadios, insentos de doenças até o momento do exame.

Quadro III

Oportunidades de Receita Comercial na Indústria Genômica


NOTAS

[1] Médico, Geneticista Clínico, Departamento de Genética Médica do Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ, Membro do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do IFF/FIOCRUZ.

[2] Rose, P. e Lucassen, A. Practical genetics for primary care. Oxford General Practice Series, Oxford University Press. (1999)

[3] Harper, P. (1993) -Psychosocial genetics: an emerging scientific discipline. J. Med Genet 30:537.

[4] E. Castilla, Lopez-Camelo, E Paz, I Orioli - Em: Prevención Primaria de los Defectos Congénitos, Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ. 1996.

[5] O diagnóstico genético pré-implantação começa a ser oferecido em clínicas privadas no Brasil. Os diagnósticos molecular e citogenético (FISH) estão sendo realizados em células únicas provenientes da fertilização in vitro e blastômeros pré-iplantação. É a forma mais precoce de prevenção secundária.

[6] Wilson, G. e Cooley, W. Preventive management of chindren with congenital anomalies and syndromes. Cambridge University Press, 2000.

[7] Rose, P. e Lucassen, A. (1999) - Em: Practical genetics for primary care. Oxford General Practice Series. Oxford University Press.

[8] Schrag, D. Kuntz, K. Garber, J. e Weeks, J. Life expectancy gains from cancer prevention strategies for women with breast cancer and BRCA1 or BRCA2 mutations. JAMA 283(5):617-624, 2000.

[9] V. Penchanszadeh, A. Christianson, R. Giugliane, v. Boulyjenkov, e M. Katz. Services for the prevention and management of genetic disorders and birth defects in developing countries. Community Genet 2:196-201, 1999.

[10] Brunoni, D. Estado atual do desenvolvimento dos serviços de genética médica no Brasil. Brazilian Journa/ of Genetics, 1997; Suplemento 20(1):11-231997.

[11] Morgan Stanley Dean Witter Healthcare: Biotechnology The Genomic Era: A Primer. Industry Report, 2000.