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INTRODUÇÃO

Este livro é uma contribuição ao debate ético-político buscando sinalizar limites para a intervenção humana na intimidade genética dos seres vivos. Enfrenta uma das tarefas mais difíceis e complexas que nossa civilização tecnológica impõe aos intelectuais e gestores das políticas públicas voltadas para a saúde humana.

O desenvolvimento biotecnológico, em fase de descobrir funções dos genes, pós-mapeamento e seqüenciamento, vem se sustentando por investimentos econômicos jamais vistos. A histórica desigualdade econômico-social entre países agrava-se e os efeitos ecológicos em futuro remoto tornam-se objeto de responsabilidade presente. O setor Saúde torna-se campo de alargamento dos poderes econômicos, de forma acelerada. Formular políticas públicas neste terreno é um exercício de liberdade, quando já a sentimos ameaçada pela dificuldade de reflexão e construção de pensamento, tarefas que exigem tempo, encontro, escuta, enfrentamento de interesses e razões contraditórias, e debate intelectual aberto.

Inserido na nova economia da bioinformação, o processo de conhecimento não produziu, simultaneamente, consensos éticos e científicos capazes de fundamentar uma base jurídica e políticas públicas estabilizadoras para inusitadas situações, ensaiadas ao longo da segunda metade do século XX. A produção científica e tecnológica chegou a estágios de conhecimento que não só possibilita a procriação humana sem sexualidade, mas rompe com dogmas científicos (reprodução a partir de células somáticas), éticos (reprodução in vitro de gêmeos; clonagem para reprodução de humanos inteiros; manipulação; congelamento e descartabilidade de embriões; virtualização do corpo humano) e econômicos (o monopólio da informação geradora do processo inventivo impossibilitando a "livre concorrência").

O Direito vê-se perplexo: novas práticas não encontram analogias em costumes e normas em vigor. Novos sujeitos e uma nova categoria de direitos clamam por base conceitual e consensos axiológicos - os direitos humanos coletivos quanto ao meio ambiente e ao próprio genoma humano. Nenhuma disciplina por si dá conta da desconcertante situação humana de orientar suas condutas quando a fonte material do conhecimento e da produção é o próprio corpo, com o risco de implicações existenciais e sociais constrangedoras e, não raro, perversas. Ciências Biológicas e Humanas balbuciam um diálogo. O Direito, especialmente, é chamado para a conversação coletiva para pensar essa nova geração de direitos e propor alternativas, sob pena de desconfigurar o real sentido da Justiça.

É preciso prever e admitir riscos, estabelecer limites e regulamentar as práticas para evitar perder o que deve permanecer a qualquer custo: a dignidade da pessoa e da espécie humana. Reconhece-se a necessidade da norma jurídica ser vinculada às éticas aplicadas no cotidiano das pesquisas e a políticas sociais efetivas, assim como toda cultura ética deve se enraizar numa pedagogia.

O direito à proteção do genoma humano, sob o manto constitucional, vigora, no Brasil, desde 1988, e há que ser reforçado pelas instituições públicas de ensino e pesquisa, através do pensamento crítico evitando realizações humanas irrefletidas.

Este momento histórico força a comunidade científica, comprometida com o bem público, a responder a esta realidade de forma também propositiva, e isso nos exige a formação de competências para fazê-lo criticamente.

Na década de 90, período da vertiginosa corrida para o mapeamento do genoma, a FIOCRUZ, através da Presidência/GESTEC, promoveu atividades relacionadas à elaboração de políticas públicas associadas. às inovações biotecnológicas. Em 1996, fomos convidados a participar de uma Audiência Pública sobre o Projeto de Lei 306-95, de autoria da Senadora Marina Silva, visando regulamentar o acesso aos recursos genéticos de plantas e animais, excluindo de seu escopo os humanos. Era a primeira iniciativa parlamentar de domesticação de normas internacionais de proteção à biodiversidade de plantas e animais e ao saber tradicional das populações locais. Tal oportunidade provocou- nos a questão: como proteger o acesso e uso das informações genéticas humanas? Reunimos pensadores e pesquisadores do Direito, Filosofia, Sociologia, Biomedicina, Biologia, Economia e uma edição das idéias ali trabalhadas foi publicada no livro Recursos Genéticos Humanos - limites ao acesso (FIOCRUZ, 1997), sob nossa organização.

O que é o ser humano? Ao se pensar a proteção da biodiversidade de plantas e animais, a fundamentação filosófica dos direitos humanos realça uma diferença e impõe acesso e manipulação da genética humana. O fórum ali reunido, sem caráter deliberativo, apontou quatro caminhos legislativos possíveis:
a) excluir o genoma humano do âmbito do PL 306-95 e exercer um controle social via Comitês de Ética em Pesquisa,
b) elaborar legislação especial,
c) reformar alguma legislação já existente, ou
d) indicar modificações e inserir salvaguardas e princípios ao acesso e uso do genoma humano no próprio texto do PL 306-95.

Quatro anos se passaram, muito acúmulo de trabalho, conversações e debates continuaram a ocorrer e a FIOCRUZ, chamada a emitir pareceres, notas técnicas e críticas sobre projetos de lei, documentos internacionais, em sua identidade articuladora, torna-se uma referência nacional para este tema. A GESTEC vem pautando suas discussões e assessoramento ministerial de forma a construir instrumentos jurídicos fortes e efetivos, em defesa da Saúde, do desenvolvimento de pesquisas e da soberania nacional. No nosso entender, responder sinceramente a essa demanda significa compartilhar o tempo da reflexão, articular-se social e institucionalmente. Acreditamos que o debate ético-político, com pessoas de setores diversos da sociedade civil, dos poderes públicos e da área acadêmica, propicia uma abertura àquilo que de outra maneira permaneceria fechado (e não deveria assim ser).

Em abril de 2000, novamente organizamos um encontro na FIOCRUZ, entre estudiosos de áreas acadêmicas heterogêneas e de instâncias do Poder Público na Oficina Genoma Humano: limites éticos e jurídicos de acesso e uso, a Oficina de Abril, que deu origem a este livro.

Em 29 de junho de 2000, o Projeto de Lei 306-95, gerador deste debate, ainda tramitava no Congresso Nacional quando o governo surpreendeu a sociedade com a emissão de Medida Provisória sobre o assunto, assinada por dois ministros das áreas do Meio Ambiente e Ciência e Tecnologia. Tal fato intensificou o debate sobre o processo decisório em questões de interesse nacional, ecológico e humanitário e vem gerando polêmica, até mesmo no interior dos órgãos públicos e instituições de pesquisas.

Um tema dessa complexidade não pode ser compreendido por apenas uma disciplina do conhecimento, assim como um gene dividido em suas funções não informa sobre o corpo íntegro. Assim, também, a fragmentação da estrutura do Estado no processo decisório gera sérios equívocos políticos, com prejuízos para a construção de referências conceituais, éticas e jurídicas capazes de inspirar políticas sociais efetivas e para afirmar, neste caso, o poder de negociação do País. Educação e Cultura, Saúde, Agricultura, Ciência e Tecnologia, proteção ao Meio Ambiente, Relações Exteriores e Justiça são divisões da estrutura administrativa do Estado que guardam conexões com o assunto, mas o tema diz respeito à Vida, ao Homem e à Terra e nem se esgota na esfera governamental ou parlamentar. O debate continua intenso.

A Medida Provisória, assim como os Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional, exclui de seu escopo os humanos. O acesso e uso do genoma humano continua, pois, sem regulamentação. E, nessa tarefa errante, esforçamo-nos para construção de uma cultura de reflexão pública, tornando visíveis as contradições e a complexidade do assunto, cumprindo com nossa responsabilidade pessoal e respondendo a um sentimento e à consciência de pertencimento ao gênero humano.

Este livro é um resultado do trabalho de uma rede de pensadores, em diálogo. Traz artigos de debatedores e expositores presentes à Oficina de Abril e, também, de outros autores convidados. Apresenta reflexões teóricas sobre questões clássicas e sobre fatos contemporâneos.

Nossa pretensão é dar voz a estudiosos de diferentes matizes e linhas de argumentação. A diversidade de pontos de vista é notável. Vão-se tecendo pensa- mentos e, ora vislumbram-se convergências, ora discordâncias. Afinidades teóricas são muitas em meio a diferenças. O resultado é uma riqueza de proposições. As posições morais e construções conceituais em cada artigo são próprias de cada autor. O formato e ênfase de cada texto foram escolhas de estilo pessoal. Construir referenciais concentuais comuns é um processo árduo, mas fascinante, quando o diálogo intelectual acontece. Assim, pensamos ir consolidando idéias-subsídios para a elaboração de políticas públicas.

Alguns convidados, por motivos particulares, não puderam enviar (ou completar) seus artigos a tempo da edição, havendo, portanto, lacunas lamentáveis como a de Carlos Frederlco Marés Filho, Dirceu Greco, Gisela Alencar, Marcio Fabri e Maria Celeste Cordeiro dos Santos. Com exceção de Marés Filho, que não estava presente à Oficina de Abril, todos têm idéias sinalizadas no texto-resultado da Oficina, publicado neste livro na Parte 1. Lamentamos não saborear a abordagem que cada um poderia nos apresentar enriquecendo ainda mais a discussão. Compreendemos este fato como um compromisso para outras edições futuras, pois o debate não pode parar e a experiência específica de cada um destes, e de tantos outros que se dedicam ao assunto, é contribuição indispensável para o sentido de uma obra de criação coletiva e que ora toma-se aberta às interpretações no domínio público. Este livro será distribuído aos interessados neste tema e aos que manifestarem o desejo de participar do debate.

A seguir apresentamos o corpo deste livro.

Na Parte I, Oficina de Abril; reeditamos o artigo, Genoma Humano: limites ao acesso e uso de Gen-tes, de nossa autoria, alinhavando vozes coletivas presentes à oficina e que foi debatido no Grupo de Trabalho "Ética, Políticas Públicas e Direito Ambiental" (e impresso nos Anais) do II Seminário Saúde & Ambiente no Processo de Desenvolvimento, da FIOCRUZ, em julho de 2000. Da discussão neste grupo de trabalho, derivou um Documento Final publicado no Apêndice desta edição.

Se nosso centro de atenção é a saúde e a dignidade, a Parte 2, Ética, Ciência e Sociedade, destaca, inicialmente, a voz e a presença de quem mais pragmática e diretamente se interessa pelos resultados terapêuticos do conheci- mento científico genômico: uma pessoa que vive com urna doença genética. Glória Christina Barbosa, em A dignidade da pessoa vivendo com doença genética: um depoimento, vivifica, em um tom testemunhal e militante, questões emergentes destes novos sujeitos da política, em outros tempos condenados ao silêncio e à mera condição de objetos de pesquisa. A seguir, Roberto S. Bartholo Jr., em Eclipse, nos faz recordar ensinamentos de tradições teológicas sobre a ambivalência da liberdade humana que a contemporaneidade instrumentalizadora nos impõe esquecer. Laymert Garcia dos Santos brinda-nos com sua exuberância intelectual em Invenção, descoberta e dignidade humana e, memorando nossa capacidade radical de pensar grande, instiga- nos a encontrar idéias íntegras para resistir à desumanização de uma era virtual. Três pesquisadores do campo biotecnológico mostram, em seguida, a abrangência de questões que emergem do interior do próprio ethos científico: Wim Degrave, em O Poder e as responsabilidades do conhecimento cientifico, Juan Clinton Llerena Jr., em A Genética Médica nas interfaces da ciência, ética e sociedade e, Mario Toscano de Brito Filho, em Questões científicas para a reflexão ética.

A Parte 3 constitue-se de artigos que abordam a Ética e Processos Decisórios, no contexto das mediações biotecnológicas. O tema da procriação humana é apresentado aqui, com acento bioético feminista, em artigo de Marilena Corrêa e Debora Diniz - Novas tecnologias reprodutivas no Brasil: um debate à espera de regulação, revelando a ausência de controle social sobre o poder técnico dessas práticas médicas que alcançam a vida embrionária e ameaçam o exercício da autonomia das mulheres "voluntárias". Fernanda Carneiro, em Nosotras: ética e políticas públicas no contexto das culturas da América Latina, parte de uma questão antropológica e propõe, como ponto de partida moral para a elaboração de políticas "includentes", a atenção crítica a valores de nossas culturas originárias. O filósofo André Rangel Rios problematiza, em Bioética e processos de decisão, a primazia da discussão sobre políticas sociais para a questão da Saúde no Brasil. Fermin Roland Schramm apresenta Algumas controvérsias semânticas e morais acerca do acesso e do uso do genoma humano e Halina Grynberg, em O Consentimento esclarecido: implicações na ética do sujeito da ciência, propõe a ética como campo do diálogo entre a Psicanálise e as Ciências Biomédicas, valorizando a dimensão subjetiva na errância dos procedimentos científicos. David Hathaway, em Frente de batalha expressa a finalidade de uma militância: a luta pela participação democrática na elaboração das leis e na contenção dos abusos do poder econômico.

Na Parte 4, apresentamos O Debate Jurídico, modestamente, inovador. José Antônio Peres Gediel, comprovando sua vocação para a transmissão do saber, apresenta o artigo Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos: revisitação crítica dos instrumentos jurídicos, propiciando a leitores de qualquer especialidade, uma iniciação ao debate das questões básicas da discussão jurídica contemporânea sobre limites à intervenção nos corpos. A jovem jurista Adriana Diaféria sinaliza um caminho conceitual singular, acolhido na Oficina de Abril como uma das mais importantes contribuições - Princípios estruturadores do direito à proteção do patrimônio genético humano e as informações genéticas contidas no genoma humano como bens de interesses difusos. Salvador Bergel, jurista portenho, apresenta-nos, de forma didática, A situação limite do sistema de patentes: em defesa da dignidade das invenções humanas no campo da biotecnologia, sustentando argumentos éticos para o não-patenteamento de genes e suas seqüências.

Finalizando nosso livro, publicamos dois artigos na Parte 5, Normas Provisórias. A Senadora Marina Silva, em Medida descabida, pronuncia-se sobre o apressado documento jurídico emitido pelo governo no contexto da anulação de um contrato lesivo a interesses nacionais, envolvendo uma Organização Social e uma empresa multinacional, e A. L. Figueira Barbosa, economista, especialista em Propriedade Intelectual, em Recursos genéticos, trabalho e apropriação - dialoga com o Direito, apontando possíveis equívocos conceituais daquela Medida quando se refere, por exemplo, ao estatuto jurídico do patrimônio genético.

Se para muitos, Humanidade é palavra sem sentido, para outros, onde nós nos incluímos, é o que nos permite reconhecer o sentimento de dignidade em mim e no outro, um sentimento de pertencimento a um mesmo gênero -humano. Também não tememos a palavra essencial. Para nós, dignidade é essência da humanidade e ela há de ser expressa não apenas em declarações, normas ou discursos, mas, também, no cotidiano das relações inter-humanas, nas pesquisas e instituições que jamais poderão ser substituídas por relações virtuais. Conversemos entre nós, pondo-nos em risco pelo encontro e não pela manipulação de informações que nos leva ao obscurantismo. O importante é o que visamos: fortalecer o compromisso com a defesa do que é nosso, do que não deve ser apoderado, confirmando uma vocação para o debate intelectual aberto e para a elaboração de políticas sociais justas, ou seja, reconhecidas como coisa comum, que deve estar confiada à nossa guarda, tendo cada um sua especial tarefa. Sentimo-nos honradas em apresentar a vocês essa obra, cumprindo uma parte que nos cabe - promover encontros e propiciar a abertura.

Maria Celeste Emerick
Coordenadora da Gestão Tecnológica/GESTEC-FIOCRUZ Organizadora

Fernanda Carneiro
Assessora da Presidêncial/GESTEC-FIOCRUZ Organizadora