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MEDIDA DESCABIDA
Marina Silva[1]

Este artigo faz parte do debate que a FIOCRUZ vem promovendo no campo da proteção jurídica aos bens genéticos humanos. Como parlamentar interessada nos assuntos relativos à defesa da biodiversidade, apresento uma modesta contribuição, relembrando a história recente que temos acompanhado no campo da proteção aos recursos genéticos provenientes de plantas e animais, bem como ao direito das comunidades sobre o seu conhecimento tradicional.

Em junho de 2000, o governo baixou a Medida Provisória (MP) 2.052, regulamentando o acesso ao patrimônio genético no país, excluindo o humano. Como as demais MPs, essa também vem sendo reeditada pelo Governo Federal, a cada trinta dias,[2] sem que de fato tenhamos um instrumento legal efetivo. Os antecedentes deste fato e encaminhamentos governamentais posteriores colocam em suspeita os interesses representados na sustentação dessa conduta. Revelam ainda um elo importante numa cadeia de omissões e negligências que compõem a atuação do governo nesse assunto, ainda que no escalão técnico encontremos algumas exceções. Trata-se de uma área que prima pela aplicação do princípio da responsabilidade, pois envolve questões de importância estratégica para o Brasil e para a Humanidade e deveria ser tratada como oportunidade ímpar de construção de um poder legítimo de negociação econômica e de afirmação da dignidade do país. Essa é mais uma Medida Provisória descabida. Por quê?

Vejamos. Há pelo menos cinco anos, o governo vem sendo alertado para a necessidade de uma lei que regulamente o acesso aos nossos recursos genéticos e biológicos. Desde a Rio-92, com a aprovação da Convenção da Biodiversidade, o tema tem tido extensa repercussão, porque dele derivam qualidade de vida diferenciada para populações, possibilidades novas de desenvolvimento econômico e científico e de fortalecimento da política externa do Brasil. Países como o nosso saíram da Rio-92 em situação potencialmente privilegiada, por serem considerados detentores de megadiversidade. Isso suporia uma estratégia nacional que transformasse esse trunfo em cacife político nas negociações internacionais, começando por uma regulação interna exemplar para o acesso e uso sustentável da biodiversidade. Mas nada aconteceu na área governamental após 92.

Na campanha presidencial de 94, a biodiversidade como recurso estratégico já era destacada no programa do meu partido no capítulo sobre as bases ecológicas para o desenvolvimento.[3] No ano seguinte, apresentei o projeto de lei sobre o acesso aos recursos genéticos, cujo substitutivo do Senador Osmar Dias foi aprovado por unanimidade na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, em 1998. A tramitação deste projeto de lei contou com a realização de diversas audiências públicas das quais participaram lideranças populares e indígenas, ONGs, cientistas e até membros do próprio governo. O debate acordou o governo para o assunto e a tendência era de apoiar um controle social mais aberto sobre o acesso à biodiversidade, fruto do modelo que a oposição conduziu, sempre mobilizando a participação de todos os setores envolvidos, uma garantia de atendimento do interesse público nacional. Porém, a conduta do governo e de seus representantes na Câmara restringiu-se, por um longo tempo, a manobras regimentais, revelando, a nosso ver, um temor de ter que aplaudir a primazia histórica da iniciativa por parte da oposição.

Prova disso é que dois meses após a aprovação do projeto pelo Senado, o Executivo apresentou o seu próprio projeto na Câmara dos Deputados, deixando uma série de dispositivos acordados nas audiências para regulamentação posterior, sem a participação do Congresso e da sociedade civil. Entre as omissões da proposta, destaco a proteção do saber tradicional da população brasileira e criação de uma Comissão Nacional sobre Recursos Genéticos, com participação paritária de órgãos governamentais e representações da sociedade civil. Com esta proposta do governo, ao lado de outros dois projetos (dos deputados Jacques Wagner e Silas Câmara), o projeto do Senado permaneceu dois anos estacionado na Câmara dos Deputados. O Regimento da Casa recomenda a criação de uma comissão especial, mas a liderança governista não indicava seus integrantes inviabilizando sua formação, o debate e a aprovação, no mínimo, de um texto negociado.

Enquanto isso, nos bastidores, o governo montava o seu próprio caminho, desconsiderando todo o processo participativo que poderia ser estendido à tramitação na Câmara. Discordar de conteúdos legislativos significa enriquecer o debate político aberto e não emitir medidas provisórias. O ato de legislar, neste assunto, deveria emergir de negociações mais amplas envolvendo a comunidade científica, as organizações sociais e o Congresso Nacional. Por não ser auto-aplicável, essa medida provisória necessita de regulamentação, que não pode ser levada a efeito em função da provisoriedade do instrumento. Ou seja, mais uma vez o governo interrompeu o debate sem dar uma solução satisfatória, como se quisesse dizer, simplesmente, que é ele o “dono da bola” .Isso sem falar no conteúdo da MP, contestada até por Ações de Inconstitucionalidade.

Por outro lado, com base nas mudanças legais de iniciativa governamental para reforma do Estado, criou-se a Organização Social Bioamazônia que, ao abrigo do PROBEM (Programa de Biologia Molecular da Amazônia), pôs-se a campo para negociar a biodiversidade brasileira, sem que houvesse um conjunto mínimo de regras legais e de controle social para isso.

Assim, em maio de 2000, a Bioamazônia e a multinacional farmacêutica suíça Novartis assinaram um contrato para dar a esta empresa acesso a material genético da Amazônia. Além de não obedecer a seu próprio regulamento, deixando de consultar seu Conselho Administrativo, a Bioamazônia sequer comunicou ao Ministério do Meio Ambiente, que tem, em seu contrato de gestão, o papel de supervisor. Esse ministério, juntamente com outros setores do próprio governo apenas souberam dos termos do contrato pela imprensa.

Em junho, o próprio Ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, declarou publicamente que o contrato Bioamazônia-Novartis não tinha valor legal. Em resposta, o governo entendeu que o assunto não era de competência parlamentar e o postergou até a edição da MP, no final de junho. Assim, autoritariamente, impôs ao país, de maneira tecnicamente inaceitável, uma base “legal” que permanece vulnerável.

Na verdade, esse contrato corresponde, de certa forma, a equívocos que o governo vem cometendo nessa área. Um deles pode-se constatar ao associarmos a MP com a PEC (Projeto de Emenda Constitucional). É evidente que o governo quer estabelecer a propriedade da “informação genética” no âmbito da União, de maneira a facilitar a privatização de nosso patrimônio genético. Ou seja, é mais uma área sujeita à política do fazer dinheiro a curto prazo.

Acontece que biodiversidade é riqueza inestimável para o país, muito além do estreito horizonte monetarista. Além da importância cultural que a relaciona com a diversidade e a autonomia do país é uma possibilidade concreta de alterar positivamente a relação de poder entre Brasil e os países produtores de biotecnologias.

Ao ter que romper esse contrato com a Novartis, o governo expõe a confusão que tem caracterizado a sua atuação e, até mesmo do ponto de vista dos grupos econômicos interessados, deixa dúvidas sobre sua capacidade em administrar esse imenso patrimônio.

A primeira pergunta que se poderia fazer é por que o açodamento de urna MP, se há anos o debate no parlamento praticamente não vem contando com a participação ativa do governo?

Além de ser uma medida autoritária, exibe um governo que comporta-se como macaco em loja de louças, ao sabor dos interesses rnal explicados que pululam e competem entre si nos bastidores oficiais. Só que a louça, de verdade, somos nós, a sociedade brasileira; é o país, que está sendo feito em cacos num período de inusitado desgoverno.

A MP e o contrato Bioamazônia-Novartis repercutiram bastante e geraram reações duras, como da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC e de entidades sociais que enviaram carta de protesto à Presidência da República, além de protestos de parlamentares e organizações indígenas, artigos críticos nos principais jornais do país e três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIN), impetradas pelo PC do B e o PT, a CONTAG e a OAB.

Além de tudo isso, a inaptidão ética do governo fica evidente quando se quer esvaziar uma iniciativa legislativa do Congresso e ao mesmo tempo eliminar dela dispositivos incômodos. O Executivo copia e reapresenta projetos de lei de parlamentares, tendo o trabalho apenas de escoimar o texto daquilo que não lhe interessa. Agiu assim em diversos outros casos. É como se o Executivo sofresse de uma espécie de “síndrome da autoria”, que o leva compulsivamente à prática de uma “legispirataria”. Existe uma polêmica entre o projeto do Senado e o projeto do governo que, na verdade, tem-se constituído mais num instrumento de fazer política contra o projeto do Senado do que numa disputa de mérito entre os textos.

No caso da regulamentação do acesso à biodiversidade, pode-se mesmo dizer que o governo “surtou” na sua síndrome. “Legispirataria” quando apresentou em 1998 um projeto de lei desfigurando o projeto que eu apresentara antes, e “legispirateou” agora com a sua MP 2.052.

Biodiversidade é assunto estratégico. Deve ser discutido com a sociedade para que se estabeleçam modelos sustentáveis de uso e conservação, em benefício de toda a nação. É fundamental para todos nós, da Amazônia e do Brasil, termos a aprovação de uma lei de acesso aos nossos recursos genéticos que seja, acima de tudo, sustentável e que respeite os saberes associados a esses recursos, que são os saberes das populações tradicionais, e que se busque uma forma de haver partilha de benefício, inclusive através da internalização de conhecimento e de tecnologia.

Desde criança vi a biopirataria acontecer sob meus olhos, quando levavam sementes de nossas seringueiras trocadas por bombom e rapadura. Não entendia muito bem o que estavam fazendo... Agora, não entendo por que o Brasil ainda não tem instrumentos legais e uma política adequada para incentivar o desenvolvimento tecnológico e proteger o patrimônio genético e as nossas comunidades.


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NOTAS

[1] Senadora da República e autora do Projeto de lei 306-95 que regulamenta o acesso à biodiversidade no Brasil.

[2] Até a data da impressão deste livro.

[3] Programa Lula-94.