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MEDIDA
DESCABIDA
Marina Silva
Este
artigo faz parte do debate que a FIOCRUZ vem promovendo
no campo da proteção jurídica
aos bens genéticos humanos. Como parlamentar
interessada nos assuntos relativos à defesa
da biodiversidade, apresento uma modesta contribuição,
relembrando a história recente que temos
acompanhado no campo da proteção aos
recursos genéticos provenientes de plantas
e animais, bem como ao direito das comunidades sobre
o seu conhecimento tradicional.
Em
junho de 2000, o governo baixou a Medida Provisória
(MP) 2.052, regulamentando o acesso ao patrimônio
genético no país, excluindo o humano.
Como as demais MPs, essa também vem sendo reeditada
pelo Governo Federal, a cada trinta dias, sem que de fato
tenhamos um instrumento legal efetivo. Os antecedentes
deste fato e encaminhamentos governamentais posteriores
colocam em suspeita os interesses representados na
sustentação dessa conduta. Revelam ainda
um elo importante numa cadeia de omissões e
negligências que compõem a atuação
do governo nesse assunto, ainda que no escalão
técnico encontremos algumas exceções.
Trata-se de uma área que prima pela aplicação
do princípio da responsabilidade, pois envolve
questões de importância estratégica
para o Brasil e para a Humanidade e deveria ser tratada
como oportunidade ímpar de construção
de um poder legítimo de negociação
econômica e de afirmação da dignidade
do país. Essa é mais uma Medida Provisória
descabida. Por quê?
Vejamos.
Há pelo menos cinco anos, o governo vem sendo
alertado para a necessidade de uma lei que regulamente
o acesso aos nossos recursos genéticos e biológicos.
Desde a Rio-92, com a aprovação da Convenção
da Biodiversidade, o tema tem tido extensa repercussão,
porque dele derivam qualidade de vida diferenciada
para populações, possibilidades novas
de desenvolvimento econômico e científico
e de fortalecimento da política externa do
Brasil. Países como o nosso saíram da
Rio-92 em situação potencialmente privilegiada,
por serem considerados detentores de megadiversidade.
Isso suporia uma estratégia nacional que transformasse
esse trunfo em cacife político nas negociações
internacionais, começando por uma regulação
interna exemplar para o acesso e uso sustentável
da biodiversidade. Mas nada aconteceu na área
governamental após 92.
Na
campanha presidencial de 94, a biodiversidade como
recurso estratégico já era destacada
no programa do meu partido no capítulo sobre
as bases ecológicas para o desenvolvimento. No ano seguinte,
apresentei o projeto de lei sobre o acesso aos recursos
genéticos, cujo substitutivo do Senador Osmar
Dias foi aprovado por unanimidade na Comissão
de Assuntos Sociais do Senado, em 1998. A tramitação
deste projeto de lei contou com a realização
de diversas audiências públicas das quais
participaram lideranças populares e indígenas,
ONGs, cientistas e até membros do próprio
governo. O debate acordou o governo para o assunto
e a tendência era de apoiar um controle social
mais aberto sobre o acesso à biodiversidade,
fruto do modelo que a oposição conduziu,
sempre mobilizando a participação de
todos os setores envolvidos, uma garantia de atendimento
do interesse público nacional. Porém,
a conduta do governo e de seus representantes na Câmara
restringiu-se, por um longo tempo, a manobras regimentais,
revelando, a nosso ver, um temor de ter que aplaudir
a primazia histórica da iniciativa por parte
da oposição.
Prova
disso é que dois meses após a aprovação
do projeto pelo Senado, o Executivo apresentou o seu
próprio projeto na Câmara dos Deputados,
deixando uma série de dispositivos acordados
nas audiências para regulamentação
posterior, sem a participação do Congresso
e da sociedade civil. Entre as omissões da
proposta, destaco a proteção do saber
tradicional da população brasileira
e criação de uma Comissão Nacional
sobre Recursos Genéticos, com participação
paritária de órgãos governamentais
e representações da sociedade civil.
Com esta proposta do governo, ao lado de outros dois
projetos (dos deputados Jacques Wagner e Silas Câmara),
o projeto do Senado permaneceu dois anos estacionado
na Câmara dos Deputados. O Regimento da Casa
recomenda a criação de uma comissão
especial, mas a liderança governista não
indicava seus integrantes inviabilizando sua formação,
o debate e a aprovação, no mínimo,
de um texto negociado.
Enquanto
isso, nos bastidores, o governo montava o seu próprio
caminho, desconsiderando todo o processo participativo
que poderia ser estendido à tramitação
na Câmara. Discordar de conteúdos legislativos
significa enriquecer o debate político aberto
e não emitir medidas provisórias. O
ato de legislar, neste assunto, deveria emergir de
negociações mais amplas envolvendo a
comunidade científica, as organizações
sociais e o Congresso Nacional. Por não ser
auto-aplicável, essa medida provisória
necessita de regulamentação, que não
pode ser levada a efeito em função da
provisoriedade do instrumento. Ou seja, mais uma vez
o governo interrompeu o debate sem dar uma solução
satisfatória, como se quisesse dizer, simplesmente,
que é ele o “dono da bola” .Isso
sem falar no conteúdo da MP, contestada até
por Ações de Inconstitucionalidade.
Por
outro lado, com base nas mudanças legais de
iniciativa governamental para reforma do Estado, criou-se
a Organização Social Bioamazônia
que, ao abrigo do PROBEM (Programa de Biologia Molecular
da Amazônia), pôs-se a campo para negociar
a biodiversidade brasileira, sem que houvesse um conjunto
mínimo de regras legais e de controle social
para isso.
Assim,
em maio de 2000, a Bioamazônia e a multinacional
farmacêutica suíça Novartis assinaram
um contrato para dar a esta empresa acesso a material
genético da Amazônia. Além de
não obedecer a seu próprio regulamento,
deixando de consultar seu Conselho Administrativo,
a Bioamazônia sequer comunicou ao Ministério
do Meio Ambiente, que tem, em seu contrato de gestão,
o papel de supervisor. Esse ministério, juntamente
com outros setores do próprio governo apenas
souberam dos termos do contrato pela imprensa.
Em
junho, o próprio Ministro do Meio Ambiente,
José Sarney Filho, declarou publicamente que
o contrato Bioamazônia-Novartis não tinha
valor legal. Em resposta, o governo entendeu que o
assunto não era de competência parlamentar
e o postergou até a edição da
MP, no final de junho. Assim, autoritariamente, impôs
ao país, de maneira tecnicamente inaceitável,
uma base “legal” que permanece vulnerável.
Na
verdade, esse contrato corresponde, de certa forma,
a equívocos que o governo vem cometendo nessa
área. Um deles pode-se constatar ao associarmos
a MP com a PEC (Projeto de Emenda Constitucional).
É evidente que o governo quer estabelecer a
propriedade da “informação genética”
no âmbito da União, de maneira a facilitar
a privatização de nosso patrimônio
genético. Ou seja, é mais uma área
sujeita à política do fazer dinheiro
a curto prazo.
Acontece
que biodiversidade é riqueza inestimável
para o país, muito além do estreito
horizonte monetarista. Além da importância
cultural que a relaciona com a diversidade e a autonomia
do país é uma possibilidade concreta
de alterar positivamente a relação de
poder entre Brasil e os países produtores de
biotecnologias.
Ao
ter que romper esse contrato com a Novartis, o governo
expõe a confusão que tem caracterizado
a sua atuação e, até mesmo do
ponto de vista dos grupos econômicos interessados,
deixa dúvidas sobre sua capacidade em administrar
esse imenso patrimônio.
A
primeira pergunta que se poderia fazer é por
que o açodamento de urna MP, se há anos
o debate no parlamento praticamente não vem
contando com a participação ativa do
governo?
Além
de ser uma medida autoritária, exibe um governo
que comporta-se como macaco em loja de louças,
ao sabor dos interesses rnal explicados que pululam
e competem entre si nos bastidores oficiais. Só
que a louça, de verdade, somos nós,
a sociedade brasileira; é o país, que
está sendo feito em cacos num período
de inusitado desgoverno.
A
MP e o contrato Bioamazônia-Novartis repercutiram
bastante e geraram reações duras, como
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC
e de entidades sociais que enviaram carta de protesto
à Presidência da República, além
de protestos de parlamentares e organizações
indígenas, artigos críticos nos principais
jornais do país e três Ações
Diretas de Inconstitucionalidade (ADIN), impetradas
pelo PC do B e o PT, a CONTAG e a OAB.
Além
de tudo isso, a inaptidão ética do governo
fica evidente quando se quer esvaziar uma iniciativa
legislativa do Congresso e ao mesmo tempo eliminar
dela dispositivos incômodos. O Executivo copia
e reapresenta projetos de lei de parlamentares, tendo
o trabalho apenas de escoimar o texto daquilo que
não lhe interessa. Agiu assim em diversos outros
casos. É como se o Executivo sofresse de uma
espécie de “síndrome da autoria”,
que o leva compulsivamente à prática
de uma “legispirataria”. Existe uma polêmica
entre o projeto do Senado e o projeto do governo que,
na verdade, tem-se constituído mais num instrumento
de fazer política contra o projeto do Senado
do que numa disputa de mérito entre os textos.
No
caso da regulamentação do acesso à
biodiversidade, pode-se mesmo dizer que o governo
“surtou” na sua síndrome. “Legispirataria”
quando apresentou em 1998 um projeto de lei desfigurando
o projeto que eu apresentara antes, e “legispirateou”
agora com a sua MP 2.052.
Biodiversidade
é assunto estratégico. Deve ser discutido
com a sociedade para que se estabeleçam modelos
sustentáveis de uso e conservação,
em benefício de toda a nação.
É fundamental para todos nós, da Amazônia
e do Brasil, termos a aprovação de uma
lei de acesso aos nossos recursos genéticos
que seja, acima de tudo, sustentável e que
respeite os saberes associados a esses recursos, que
são os saberes das populações
tradicionais, e que se busque uma forma de haver partilha
de benefício, inclusive através da internalização
de conhecimento e de tecnologia.
Desde
criança vi a biopirataria acontecer sob meus
olhos, quando levavam sementes de nossas seringueiras
trocadas por bombom e rapadura. Não entendia
muito bem o que estavam fazendo... Agora, não
entendo por que o Brasil ainda não tem instrumentos
legais e uma política adequada para incentivar
o desenvolvimento tecnológico e proteger o
patrimônio genético e as nossas comunidades.
* * * * * * *
NOTAS
Senadora da República
e autora do Projeto de lei 306-95 que regulamenta
o acesso à biodiversidade no Brasil.
Até a data da impressão
deste livro.
Programa Lula-94.