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NOSOTRAS: ÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO DAS CULTURAS DA AMÉRICA LATINA[1]
Fernanda Carneiro[2]

Situarei alguns aspectos das culturas na América Latina, no contexto contemporâneo dos poderes de intervenção na genética humana, buscando minha identidade brasileira, reconhecendo em nós a matriz nativa originária indígena, enriquecida pelo imperativo genético e cultural de africanos e europeus. Convivemos, portanto, com valores e mentalidades tradicionais e modernos, hegemônicos e contra-hegemônicos. Somos “nós” e o nosso “nós” maior é a América Latina – nosotros.

Inicio a reflexão a partir de uma questão antropológica que não deve ser descuidada por cientistas e políticos que se voltam para a elaboração ético-política quando se trata de pesquisa em genética.

“Dois milhões de índios ocupavam toda a costa atlântica brasileira em 1500. Ao longo destes 500 anos mudaram muito, como nós também mudamos, mas eles guardam duas coisas cujo conhecimento é essencial para nós: 1 - seu próprio ser biológico, seus genes, que levamos no corpo (. ..); e 2 - a sabedoria milenar de adaptação à floresta tropical. Sem esse saber seriamos outros. O que nos singulariza como cultura é o patrimônio de nomes das coisas da natureza que nos circunda, as dezenas de plantas domesticadas pelos índios que cultivamos em roças e as milhares de árvores frutíferas e de outros usos que eles nos ensinaram a aproveitar. Assim é que continuamos sendo índios nos corpos que temos e na cultura que nos ilumina e conduz” (Ribeiro, 1996:12) “...e assentamos nossa nação na província mais bela da Terra” (idem: 1997:18).

Assim é que algo indígena permanece em nós.

Temos características antropológicas notáveis como os “conteúdos de alegria” referidos por Darci Ribeiro que nos deixou também esse lembrete: “dos nossos componentes, o negro é o mais espiritual, o mais religioso, o de espírito mais elevado. Esse componente negro dá à civilização brasileira um sentido místico. E há, na herança indígena, uma ou duas coisas que vão marcar a futura civilização. A primeira coisa é a capacidade de convivência solidária (...). A outra coisa, é uma vontade de beleza que é veemente no índio (...). É o desejo de se imprimir nas coisas, como individualidade. Você vê isso, no Brasil, nas camadas pobres, em suas comunidades, há sempre alguém com sua vontade de beleza. Creio que tudo isso faz de nós um povo singular no mundo” (Ribeiro, 1997:19). “Contudo, a cultura hegemônica deste Brasil, ex-colônia portuguesa, escravagista, atualmente referido em documentos internacionais como país em desenvolvimento”, exibe dados e situações de um país dependente e consumidor de biotecnologias e de seus produtos, com o calamitoso índice de 300% da população excluída do aprendizado básico da cidadania, da educação e saúde públicas eficientes e dos benefícios oferecidos pela ciranda do mercado. Os estilos de desenvolvimento econômico, aplicados a alguns setores, com base tecnológica, não incluem em seus cálculos um desenvolvimento social - excluem a gente brasileira dos benefícios da economia. E essa gente, são homens e mulheres em situação desigual, também entre si, tanto mais visível quando se inclui o gênero (masculino ou feminino) como categoria de análise social. Em resumo, a era tecnológica não tem contribuído para o alcance da eqüidade e segurança quanto aos benefícios e riscos dos bens e serviços oferecidos pela modernidade e, no nosso tema, dos serviços de saúde.

Neste contexto, enfoquemos as responsabilidades da parcela instruída da sociedade que desenvolve pesquisas e elabora políticas públicas associadas à biotecnologia para a “saúde”. O setor biotecnológico é, sem dúvida, poderoso, não apenas pelo poder econômico que porta mas, também, pela importância dos problemas que promete solucionar –“tudo que serve à saúde deve ser feito como algo óbvio ou tem um caráter de grande urgência e legitimidade” (Beck, 1998:46).[3] Saúde é uma demanda diferente das outras.

Os sujeitos da ciência e das políticas institucionais e nacionais, do Congresso Nacional ou do Executivo, independente da aparência e da posição social e/ou trajetória familiar e currículo acadêmico, são aprendizes da diversidade cultural e étnica brasileira e portam crenças tanto teóricas como ordinárias. Têm feições morenas, indígenas, miscigenadas, uma grande parte é branca e há uma pequena presença negra - um resultado da história das relações interétnicas na estrutura social brasileira. Mas, essa mesma parcela é marcada, especialmente, pela importação maciça de práticas sociais e de pensamentos etnocêntricos: o cientificismo e o tecnocratismo “são partes indissociáveis da concepção de mundo da Modernidade” onde subjaz uma fé no Bem das ciências e tecnologias modernas, como “perene capacidade autocorretiva do vetor cientifico-tecnológico diante de ‘efeitos externos’ indesejáveis” (Bartholo, 1992:22). Ou seja, tem-se a crença de que a tecnologia resolve os problemas criados pelas tecnologias.

Reconhecer nos dirigentes, lideranças políticas e gestores brasileiros uma identidade marcada por sistemas valorativos contraditórios é fugir do alheamento, da inocente irresponsabilidade e adquirir consciência econômica. Vejamos.

Os sujeitos que elaboram as políticas públicas no Brasil, são descendentes culturais dos povos que, na aventura do Novo Mundo, há quinhentos anos atrás, ou viviam processos de produção-consumo, modos de ser, de viver e conviver sustentados por um sistema comunal de propriedade e um sistema simbólico carregado de mitos, e/ou constituíram o sistema escravagista e patriarcal que dominou o País. São descendentes, portanto, de escravizados ou de escravagistas ou, posteriormente, de correntes migratórias atraídas por políticas de industrialização.

Descendentes de sujeitos de movimentos liberais e conservadores de todos os matizes, atuais dirigentes de todos os escalões conviveram com ou foram, também, protagonistas de movimentos culturais do século XX, carregados de utopias libertárias.

A atenção primeira de uma pessoa da elite brasileira, por exemplo, um(a) pesquisador(a), ao realizar obras do pensamento e desenvolver condutas biomédicas e/ou elaborar políticas, é reparar seus próprios preconceitos, crenças e influências culturais, e iniciar a avaliação ética de um ponto de partida moral: a desconfiança de si, admitindo seus próprios “bies”. Estarão sempre em jogo “os princípios axiológicos que permitem arbitrar o que é legal ou ilegal, legítimo ou ilegítimo, na interação entre os humanos” (Freire, 2000).[4]

A partir dessa posição moral, pensemos agora nos interesses que os sujeitos da produção biotecnológica, no exterior ou no Brasil, têm sobre a população brasileira.

II

Os indígenas representam um interesse particular para a tecnociência hoje, mais particularmente à genética humana e à genética clínica, nos projetos de mapeamento, seqüenciamento e patenteamento de invenções daí derivadas, por serem populações geneticamente homogêneas. Da mesma forma, nossa população fortemente miscigenada interessa aos estudos da genética humana e, ainda, aos experimentos clínicos com pacientes virgens de tratamento. A sabedoria prática dos povos indígenas, povos da floresta, descendentes de quilombos (uma população de difícil definição), é também hoje cobiçada e atingida pela indústria biotecnológica e pesquisas tecnocientíficas. Essa sabedoria é um dos começos do caminho de uma pesada produção de bens econômicos da indústria de alimentos e de medicamentos.

Primeira pergunta: há interesses indígenas e brasileiros nessas pesquisas? Como exercer o diálogo interétnico ou entre países e/ ou centros de pesquisa, como estabelecer um consentimento e um acordo legítimos no desenvolvimento das pesquisas científicas?[5] Qual a responsabilidade do Estado brasileiro?

A proteção da biodiversidade e do saber tradicional destes povos vem sendo uma vertente complicada para a Ética e para o Direito que visam a proteção do bem comum e a definição clara das responsabilidades civis e públicas. Há uma discussão interna no País em torno desses interesses e uma grande crise conceitual para compreender as conseqüências na vida social das inovações bio-tecnológicas que estendem o poder humano de intervenção, apropriação e produção sobre as espécies. Há riscos biológicos previsíveis e ignorados. Há interesses monopólicos arriscados em se tratando de alimentos e medicamentos.

O Brasil tem uma biodiversidade tamanha que o coloca como parte poderosa nas negociações sobre o acesso e uso da biodiversidade. Quanto ao patrimônio genético humano, a discussão sobre o estatuto jurídico das informações genéticas e direitos de acesso vai além da definição dos direitos individuais, mobilizando atores sociais que defendem direitos coletivos, nacionais e a dignidade da espécie humana.

III

Um projeto de lei (no 306-95), da Senadora Marina Silva, desde 1995 vinha tramitando no Congresso Nacional, propondo elaborar medidas de proteção das informações e acesso aos recursos genéticos de plantas e animais (excluindo os humanos), enraizado nos acordos da Convenção da Diversidade Biológica (1992) e na Constituição Federal (art. 225). Segundo a senadora proponente, nascida numa comunidade de seringueiros, historiadora, representante de interesses ligados ao meio ambiente, à terra e aos povos da floresta, o projeto de lei visava “garantir que os habitantes da floresta fossem remunerados pelo seu conhecimento sobre os medicamentos e ervas da Amazônia. Sabemos que, muitas vezes, a indústria farmacêutica inicia sua pesquisa sobre medicamentos baseando-se nas informações fornecidas pelos habitantes da floresta, que possuem um vasto conhecimento sobre plantas medicinais. Os pesquisadores de indústria acabam por patentear e comercializar suas invenções sem que as comunidades da floresta recebam qualquer tipo de retorno financeiro” (Silva, M, 2000: 117).

No mesmo ano da apresentação dessa proposta (1995), um outro projeto de lei, de autoria do Senador Marco Maciel, discutido com setores da comunidade científica e gerando a Lei 8.975/95, regula as práticas associadas ao uso da engenharia genética e à produção, manejo e descarte de organismos geneticamente modificados (ogm). O projeto aprovado (hoje conhecido como Lei de Biossegurança), foi elaborado sem intenção de regulamentar o acesso à bio-diversidade genética, etapa indispensável do processo de conhecer. Diferente da intenção do projeto da Senadora Marina Silva: que visava proteger interesses e direitos coletivos, no momento do acesso ao bem da natureza e ao saber empírico já acumulado pelas culturas locais. Interesses diferentes, processos decisórios diferentes - desigualdades de poder?

Cinco anos se passaram de debate na sociedade civil do projeto de lei “de acesso” e do seu substitutivo (Senador Osmar Dias), dando origem, à discussão sobre acesso e proteção ao genoma humano,[6] razão de ser deste livro. Aprovado no Senado, não foi, contudo, à discussão final na Câmara dos Deputados.

Por que o desinteresse do Congresso Nacional em legislar uma proteção legal, desde o acesso até o uso da biodiversidade com fins industriais e no sentido defendido por organizações indígenas e representantes dos povos da floresta? Quando o governo brasileiro lança uma Medida Provisória (MP no 2.052/2000) sobre a matéria, sem nenhuma justificativa emergencial para usar este instrumento, uma outra pergunta surge: que interesses estão sendo defendidos nessa Medida Provisória? Com a palavra, juristas e políticos.[7]

Há desacordos sobre seu conteúdo entre intelectuais, juristas, políticos, organizações civis de direito ambiental, cientistas... e no interior do próprio governo. Uma Medida Provisória é um instrumento sem segurança jurídica, pois pode ser modificada de 30 em 30 dias, a cada reedição e, por não oferecer sanções penais, pode-se dizer que práticas de acesso e uso de informações genéticas não estão ainda corretamente regulamentadas no Brasil. Eis aí uma questão para a responsabilidade dos intelectuais, pesquisadores e gestores de políticas públicas no arbítrio do que é legal e legítimo.

IV

Na ausência de leis adequadas para proteger o acesso e o uso do genoma humano no Brasil, o papel de controle social a partir da parcela “instruída” - o intelectual comprometido com a melhoria de seu lugar e sua gente - estende-se à prática da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)[8] onde a genética humana é um tema especial. Tocados pelo desafio de assumir novas atitudes perante o progresso científico e tecnológico, tomam-se espaços importantes para o debate ético-político.

Os comitês de ética em pesquisa julgam e avaliam fatos do cotidiano da pesquisa científica encenando “de modo ímpar a tensão moderna, de cunho jurídico, entre fatos e valores” (Estellita-Lins, 1999:68).[9] Ao debater e deliberar sobre a eticidade de um projeto de pesquisa, ali transcorrem relações, procedimentos, normas regulamentadoras e valores morais inseridos no todo social. “Os CEPs correm o risco de ficarem fracionados entre a aplicação e o exercício de um conjunto de regras, um corpus normativo (que bem ou mal, de um modo ou de outro, está contido e contemplado na Resolução CNS 196/96) e um horizonte de decisões, de interesses, de conflitos, de confrontos, extremamente complexos (...). A questão de um consenso passa a ser nodal na ética da pesquisa cientifica. Nunca fomos tão universais sob o conceito de vida e, paradoxalmente, tão singulares sob o de seres humanos” (Idém, 68).

Convive-se no ethos científico e político com a mentalidade dos pesquisadores, patrocinadores, participantes de usuários (sujeitos da pesquisa) onde a relação entre ética e pesquisa é problemática. A Ética é vista por muitos como obstáculo ao processo de conhecimento.[10] Raramente é vista como parte intrinseca da excelência de um pesquisador virtuoso, atento para o conteúdo valorativo do ethos científico e os paradoxos que emergem de seus procedimentos, quais sejam:

(a) buscam-se certezas utilizando saberes cheios de incertezas - o não saber é inerente às práticas de busca do conhecimento;
(b) fazem-se generalizações sobre sujeitos portadores de singularidades;
(c) adota-se o método reducionista fragmentando-se o indivisível: a pessoa;
(d) quando treinados para a neutralidade, os atores da ciência ignoram sua natureza como sujeitos morais;
(e) projetos de pesquisa enfocam a esfera micro, mas há efeitos incontroláveis a médio e longo prazo e referentes a outras esferas (ecológicas, políticas, econômicas);
(f) procuram-se funções biológicas das informações genéticas sabendo-se dos limites desse saber, pois a relação com o mundo é fundamental para a expressão dos genes;
(g) age-se num mundo diversificado quanto a valores morais, sendo intransferível a dimensão pessoal da responsabilidade (...).

O que se toma realidade no laboratório ou na bioinformatização tem o quê a ver com o mundo vivido?

A experiência do limite é o mais instigante desafio colocado à comunidade científica e política neste tema em questão, pois uma abstração jamais experienciada nos é exigida:

· as biotecnologias impuseram à medicina uma transição da intervenção no corpo e seus órgãos para o genoma humano genérico, reduzindo a pessoa a um código informatizado, distante do sujeito doente e, os seres vivos - vegetal, animal e humano - tornam-se matéria e código bioquímicos abertos à possibilidade de criação de híbridos;
· a intimidade genética humana torna-se disponível desde a concepção e fase embrionária permitindo o acesso à subjetividade, na pretensão de determinar o destino biológico das pessoas;
· a mudança da concepção de risco torna imprevisíveis as mutações num futuro remoto.

Divididos em si mesmo por valores morais contraditórios e inseridos em contextos sociais e institucionais, os(as) pesquisadores(as) posicionam-se. Querendo ou não, a valoração dos feitos científicos é não somente filosófica, mas, também, social e fornece argumentos para negócios econômicos e políticos (Beck, 1998:50). Não há Ética sem o sujeito da ciência e a elaboração moral é tarefa dos cientistas e pesquisadores da biologia e biomedicina.

V

Pesquisadores e membros dos comitês de ética têm o poder e o dever de contribuir para a reconstrução da dignidade da pessoa no mundo e da dignidade das pesquisas e normas do País, praticando uma bioética pública. E, como intelectuais, instigando a reflexão ética e as idéias generosas. Fazer de nossas heranças culturais heterogêneas, contraditórias e paradoxais um bem, requer a escuta das gerações futuras, a análise de fatos e valores e a resposta sincera sobre a eticidade do método científico, visto também como prática social da pesquisa.

A presença de pesquisadores da saúde pública e de representantes de interesses locais/universais na elaboração de políticas dirigidas ao acesso e uso de genomas é uma necessidade. É preciso elaborar perguntas certas para o exercício da responsabilidade pública e para impedir a posse e a comercialização indevidas de bens que deveriam ser indivisíveis e/ou não-apropriáveis, evitando que as obras de pesquisadores brasileiros e latinos fiquem desprotegi- das e entregues... a quem? Não há justificativa ética para esquecer nossas origens e nossa inserção na economia, nem para negligenciar o futuro da Terra e das espécies como objeto de nossa responsabilidade. Um “outro” nos diz algo e nos toca porque está também em nós - povos da América Latina, populações excluídas, gerações futuras. A Humanidade em nós.

O pensamento ético dos cientistas e pesquisadores atentos à moralidade dos atos científicos e à desigualdade de poder na economia biotecnológica, entre países e entre instituições, pode ser capaz de orientar as decisões econômicas e de estabelecer limites às intervenções que têm inevitavelmente riscos ecológicos e existenciais. É muito comum encontrar entre nós pessoas indignadas. Porém, um escritor brasileiro, corajosamente, nos lembra da inconseqüência dos melhores sentimentos.

Cito-o: “somos bons em indignação, somos muito bons na retórica da inconformidade. O movimento abolicionista é um exemplo disto, e uma espécie de protótipo para todos os anos de retórica inútil que viriam depois. Deu belos discursos e até alguns bons poemas, o que não impediu que o Brasil fosse o último país do mundo a abolir a escravatura, ou que o trabalho escravo continuasse aqui até hoje, sob formas mais ou menos disfarçadas” (Veríssimo, 2000:21). O autor lembra-nos que o compromisso com a mudança e com a justiça se for teórico, apenas nos ajuda a conviver com a injustiça. E para conviver com a injustiça, no Brasil, ele diz, há um método certeiro: “o da desconversa”.

É preciso ter coragem de promover rupturas éticas e reorientar caminhos políticos de interesses nacionais e coletivos, em última instância, humanitários. Estar atento às virtudes éticas nas condições atuais do nosso saber científico, jurídico e político é evitar a inércia do alheamento e, também, frear a tendência à pressa, que impede a profundidade do conhecer.[11]

VI

Enfoquemos agora o interesse das pesquisas genéticas nas populações indígenas e o contexto das normas.

As normas e diretrizes regulamentadoras para pesquisas envolvendo seres humanos (Resolução CNS 196/96) formam um conjunto de regras bem intencionadas, amplamente discutidas em alguns setores da sociedade. Seriam contudo regras etnocêntricas? Que acordos intersubjetivos e interétnicos expressam? Se as consideramos expressão de uma conversação entre cientistas, médicos, profissionais de saúde e pesquisadores da saúde, lideranças indígenas, movimentos negros e grupos vulneráveis portadores de doenças, etc. expressarão um consenso? Até que ponto é expressão de uma relação assimétrica?

Nas normas brasileiras, Populações Indígenas é um tema especial. Toda e qualquer pesquisa que envolva essas populações deve ser analisada e acompanhada pela Comissão Nacional. Há, no Ministério da Saúde, uma Comissão Intersetorial de Saúde do índio que funciona como consultora. Dela participam lideranças indígenas e interlocutores.

Em 9 de agosto de 2000, o governo brasileiro, através do Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Saúde anunciou um conjunto de normas para pesquisas envolvendo seres humanos referida à área temática especial “populações indígenas” reconhecendo “o direito de parlicipação dos índios nas decisões que os afetem” (Resolução no303/00, Preâmbulo). Vinte dias depois, demonstrando pouca disposição para o diálogo parlamentar, o governo anuncia a Medida Provisória (comentada no item anterior) sobre acesso a recursos genéticos de plantas e animais. representantes dos interesses indígenas participaram em que na elaboração dessa medida?

A relação inter-humana estabelecida, desde o momento da elaboração de políticas públicas e de normas éticas na prática científica será sempre uma relação assimétrica. A responsabilidade moral de viabilizar o diálogo está nas mãos da comunidade científica que desenvolve a pesquisa e da comunidade política que elabora normas e propõe processos de acompanhamento participativo ou não. Os documentos jurídicos permitem ou interditam as práticas, porém “o fato de normas não serem observadas é parte integrante da realidade social e deve, muito pelo contrário, ser incluído nos cálculos” (Beck, 1998:44).

O lugar dos pesquisadores neste processo é especial. É no cotidiano das pesquisas que as relações inter-humanas acontecem e destacaremos aqui a responsabilidade intransferível da equipe de pesquisa científica.

O protocolo da pesquisa científica pode ser um momento de reflexão da equipe a ser validado por um terceiro - o comitê de ética em pesquisa, por exemplo - mas, são os pesquisadores que vão viver de fato a relação de respeito e reverência à alteridade, à proteção de um outro - pessoa, comunidade ou geração futura –“que possui estrutura diversa do meu set; mas toca o presente e o meu ser” (Susin, 1984:178).[12] É o(a) pesquisador(a) principal e sua equipe que vão viver o diálogo. Ou praticar o abuso e o alheamento. Eis aí um problema entre comunidades e comitês de ética em pesquisa, comunidade tecnocientífica e indígenas: a noção de abuso de poder. Pode-se invadir de forma desestruturante uma ordem cultural e tal fato está posto no horizonte da cultura científica. Nessa relação a justiça se consuma.
Descrevo aqui uma citação literal de Laymert Garcia dos Santos (1996:90-91):

“Em recente evento em Buenos Aires, estava um senador indígena dizendo: ‘No Senado da Colômbia, estamos fazendo todo um movimento para obter de volta mais de mil amostras de tecidos que foram extraídos de populações indígenas da Colômbia sem conhecimento e sem informação prévia. Queremos que eles venham aqui e tragam de volta todas essas amostras depositadas no National Institutes of Health. Mas, quando eles começaram o processo, não sabiam algo que agora já sabem: mesmo que as amostram venham para as aldeias e eles tenham de decidir o que fazer com esse material genético, se enterram, destroem, etc., já sabem que esse material pode ter sido clonado e jamais vão ter a garantia sobre o material que está vindo. Porque primeiro, não saberão se esse material é deles mesmo, segundo que, mesmo que seja, não saberão se esse material já está perenizado, como vimos aqui ser o objetivo do Projeto da Diversidade do Genoma Humano que, na minha opinião, está simplesmente criando um banco ex situ de genes de populações tradicionais (...).”[13]

Eis um problema criado pela prática tecnocientífica sem sustentação ética. Como exercer a justiça? Em que uma resolução ministerial poderá influenciar?

Laymert nos alerta ainda para algo que vai além da questão de obtenção de um consentimento: “as populações tradicionais se souberem quais são as implicações de perenização das suas células, jamais vão aceitar a coleta do seu material genético, porque para muitas dessas populações, a perenização significa que o espírito não tem mais sossego, nunca mais. Para essas populações a morte tem todo um processo completamente diferente do nosso”. É a finitude no horizonte da ética indígena. A coleta do material biológico, com a finalidade da perenização da célula em bancos, dessa forma, é inaceitável sob a ética indígena. O que dizer então dos embriões congelados, etc., etc.? Que estranheza essas práticas também nos causa?

Será a pesquisa genética humana e clínica necessária a estes povos? Ou eles são considerados apenas uma poderosa fonte da informação para este tipo de pesquisa enquanto, para eles, o suporte de sua ancestralidade é a transmissão oral e os rituais religiosos?

Os índios convivem num ethos que é obra de uma cultura onde riqueza simbólica passa de geração a geração. A Ética, compreendida como norma, visa assegurar essa transmissão em nosso tempo. Um tempo axiologicamente estruturado. Naquelas culturas, o fato natural inspira a lei. Na nossa cultura moderna a lei - no caso brasileiro, a Resolução CNS 196/96 - antecede o fato qualificando eticamente o agir. A cultura tradicional dá primazia ao futuro vinculado ao passado e, as éticas modernas, em conflito com aquela, dá primazia ao fazer técnico, pretensamente desenraizado de valores. Como estabelecer e viver um ethos comum? Como fazer emergir uma norma justa?

Qual o bem simbólico do qual todos - índios e não-índios, descendentes genéticos ou herdeiros culturais - participamos? Como assegurar um ethos na pesquisa onde a pessoa de cada índio e sua comunidade se realizam, se experimentam e comprovam sua independência e força de vida sem cisão radical com seus valores ancestrais e sem alheamento das questões contemporâneas?

Assim, nossa tarefa é também conviver com uma angústia de nosso tempo. É uma situação e um problema. Uma angústia que não deve nos paralisar, nem apenas nos inspirar normas. Há que exercermos a crítica sempre.

Nesse diálogo, somos bárbaros: balbuciamos, soletramos e quando escrevemos o fazemos em nossa própria linguagem. A Resolução é uma expressão de nossos melhores sentimentos... mas há incoerências na norma. Poderia não haver? A Resolução fala em “necessidades do indivíduo”, “manutenção do ben estar”, “saúde coletiva”, “tecnologias próprias”, “respeito à visão de mundo”, “crenças religiosas”, “filosofias peculiares”... E em seu item 2.4 diz:

“Qualquer pesquisa envolvendo a pessoa do índio ou sua comunidade deve ter a concordância da comunidade alvo da pesquisa que pode[14] ser obtida por intermédio das respectivas organizações indígenas ou conselhos locais, sem prejuízo do concentimento individual (grifos nossos), que em comum acordo com as referidas comunidades designarão o interlocutor para o contato entre pesquisador e a comunidade.”

A norma estaria trazendo em seu texto sinais de uma imposição moral? Parece não haver espaço para negativas: “qualquer pesquisa deve ter a concordância”... (grifo da autora).

Mudanças paradigmáticas do tradicional para o moderno aparecem no texto: “Sem prejuízo do consentimento individual.” No contexto cultural indígena, estaria o direito individual de consentir - o centro da matriz ideológica moderna – deixando margem ao risco do consentimento indevido, pois informações chaves podem ser transmitidas por um indivíduo sobre o patrimônio comum do povo indígena (brasileiro), seu saber tradicional, cuja gestão é da comunidade através de seus líderes?

Consentir é ser capaz de responsabilidade (Buber, 1982). A liberdade do consentimento deve ser compreendida, também, como capacidade plena de não consentir, da recusa baseada em vínculos de valorização e dignidade.

Roberto Cardoso Oliveira se detém nas dificuldades concretas da efetivação plenamente democrática e ética do diálogo interétnico e lembra a condição óbvia de que o pressuposto básico da conduta ética é a disposição de dialogar.

A economia comunal, a comunidade e lideranças indígenas são realidades concretas e legítimas, os objetivos e objetos das pesquisas são diversificados e imprevisíveis. Sempre haverá ininteligibilidades na relação sujeito da ciência e sujeitos da pesquisa, indígenas ou não... E se finalidades e métodos forem compreendidos... tantas vezes não serão consentidos... No caso indígena, algum “indivíduo” pode desobedecer à regra grupal e passar alguma informação para o pesquisador sem a reflexão ou consciência sobre a transgressão - suporte das grandes mudanças éticas... Vivemos um tempo em que já se questiona a hipervalorização do direito individual como ameaça ao que deve permanecer como propriedade comum.

Esbocei aqui a vulnerabilidade de um instrumento jurídico, repito, inspirado pelos melhores sentimentos de solidariedade. Há interesses não só diferentes mas, por vezes, antagônicos entre as pessoas envolvidas nos processos de investigação e normatização.
O avanço técnico não está produzindo um sinergismo capaz de avançar a igualdade e a liberdade.[16] Pesquisas não são rituais encantados, e mundos alternativos existem. Podemos pensar e agir sem cair nas malhas da burocracia ou do abuso do poder. Podemos pensar com nossos olhos brasileiros e latinos, viver situações dialógicas, exercer o senso crítico, permanentemente, educando e resistindo à propaganda biotecnológica que nos dita um monte contínuo: contribuir para o progresso da ciência é contribuir para uma igualdade futura.

Buarque de Holanda (2000:113) nos convida a romper os círculos econômicos, acadêmicos, ideológicos, sociais e da linguagem que sustentam o processo de apartação biológica “que se construirá pelo avanço de uma biotecnologia a serviço exclusivo da parcela rica, da construção de subespécies e do rompimento da unidade da Humanidade”,

Que exista uma Humanidade!

Este é o imperativo categórico proposto por Hans Jonas.

Se subordinarmos os valores técnicos aos valores éticos e estéticos de nossas culturas, onde a comunidade científica deve se incluir, evitaremos ser uma espécie de terceiro mundo entre a sociedade real e o mundo desenvolvido das biotecnologias a que muitos de nós imaginam (e desejam) pertencer.

A cultura da América Latina tem muitas faces, muitos mitos!... O que deve permanecer a qualquer custo? A convivência entre valores/idéias individualistas e o seu contrário impõe-se em nossa América do Sul. A que novas formas, costumes e normas pode dar origem?.

Comunidades indígenas se organizam politicamente e isso é sinal de vida futura, de reações ao individualismo excessivo. É sinal de afirmação da perspectiva intercultural.

Poder sem contrapoder não existe por mais desigual que ele seja (Tonas, 1994). É preciso ter coragem e sinceridade nas ações públicas “includentes”. políticas públicas justas e decisivas são construídas com liberdade, e clareza sobre o quê e como não consentir.

Os produtores de biotecnologia não têm estes dilemas éticos que invadem nossas reflexões sobre a Ciências da Saúde. Nosso pensamento é diverso. Velhas palavras Chumanismo, democracia, justiça) e as novas também, como bioética, carecem de significados claros e dizem respeito à defesa do bem comum. Incorporemos a Natureza como parte do próprio projeto humano e que a convivencialidade, solidariedade e beleza, valores culturais de origem negra e indígena, enraizados nas culturas brasileiras, estejam na ação e em tudo o que a gen-te imprime no mundo, em defesa da dignidade do gênero humano.

Buenos Aires, 2 de setembro de 2000.


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REFERÊNCIAS

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BECK, Ulrich. Sobre a incompreendida falta de experiência da genética humana e as conseqüências sociais do não saber relativo. In Ética e Genética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

BUBER, Martin. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Ed. Respectiva AS, 1982.

DEGRAVE. Wim. O poder e a responsabilidade da Ciência. In A Moraltdade dos Atos Científicos, CARNEIRO F. (org.), Rio de Janeiro: VPPqE/FIOCRUZ. 1999).

EMERICK, M Celeste e CARNEIRO, Fernanda, (org.). Recursos Genéticos Humanos, limites ao acesso. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1997.

ESTELLITA-LINS, Carlos Eduardo. A vida no Comitê e seus paradoxos. In A Moralidade dos Atos Científicos- questões emergentes dos Comitês de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos, Carneiro, Femanda (org.), Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 1999.

JONAS, Hans. El principio de Ia Responsabilidad. Barcelona: Herder, 1995.

FRElRE, Jurandir, A Ética Democrática e seus Inimigos - o lado privado da violência pública In O Desafio Ético. Rio de Janeiro. Garamond, 2000.

LIMA VAZ, Henrique. Ética e Cultura. Petrópolis: Editora Loyola, 1992.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Ação indigenista, eticidade e o diálolo interétnico. Brasília: SBPC/mimeo. 2000.

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RIBEIRO, Darci. Diárlos Índios. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

_______________ Invenção do Brasil. Museu Aberto do Descobrimento/Fundação Quadrilátero do Descobrimento, Ministério da Cultura/FNC, 1997.

SILVA, Marina. Moinhos e gigantes In O Livro da Saúde das Mulheres Negras -Nossos Passos Vêm de Longe. Rio de Janeiro, Pallas/Criola, 2000.

SUSIN, Luiz Carlos. O Homem Messiânico -Uma Introdução ao Pensamento de Emmanuel Levinas. Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1984.

VERÍSSIMO, L.F. O Poder do Nada. In O Desafio Ético. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.


NOTAS

[1] Inspirado na apresentação oral da autora na Reunión de Comites de Etica en Salud, Bio-Sur, Buenos Aires/setembro, 2000, sob o título Comites de Etica frente a las culturas de America Latina - realidad y problemas.

[2] Consultora da Coordenação de Gestão Tecnológica da Fundação Oswaldo Cruz, Secretária Geral do Comitê de Ética em Pesquisa da fIOCRUZ.

[3] Ulrich Beck Sobre a incompreendida falta de experiência da genética humana e as conseqüências sociais do não saber relativo. In Ética e Genética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

[4] Jurandir Freire. A Ética Democrática e seus Inimigos - o lado privado da violência pública. In O Desafio Ético, Rio de Janeiro:Garamond, 2000.

[5] V. Roberto Cardoso de Oliveira. Acão indígenista, eticidade e o diálogo interétnico. Brasília: SBPC/mimeo, 2000.

[6] V. Recursos Genéticos Humanos -limites ao acesso. Emerick & Carneiro, Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997.

[7] V. artigo da Senadora Marina Silva e A L. Figueira Barbosa, nesta coletânia.

[8] "Instituídos corno obrigatoriedade das Instituições de Pesquisas, pela Resolução CNS 196/96 do Ministério da Saúde.

[9] V. Estellita-Lins, Carlos Eduardo. A vida no Comitê e seus paradoxos. In A Mora/idade dos Atos Científicos- questões emergentes dos Comitês de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos, Carneiro, Fernanda (org.), Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1999.

[10] Em recente evento nacional reunindo profissionais de pesquisas clínicas, vários palestrantes, apresentavam os Comitês de Ética como um dos obstáculos ao desenvolvimento das pesquisas clínicas, representando, a nosso ver, uma mentalidade corrente no meio médico internacional que propõe o relaxamento de critérios éticos nos projetos de pesquisas biomédicas em países subdesenvolvidos (V. Carta de Brasília, 1999, CFW/ANIS) e tenta desqualificar valores éticos sub-jacentes à ação dos comitês de ética como normas apenas burocratizantes.

[11] V. Wim Degrave. O poder e a responsabilidade da Ciência In A Moralidade das Atos Científicos, Carneiro F. (org.), Rio de Janeiro: VPPqE/FIOCRUZ. 1999). Reeditado nessa coletânea.

[12] Susin, Luiz Carlos. O Homem Messiânico - Uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lèvinas. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1984.

[13] "In Recursos Genéticos Humanos Limites ao Acesso (Emerick, M. Celeste e Carneiro, Fernanda Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996:90-91)

[14] Poder é diferente de dever (nota da autora).

op. cit.

[15] Buarque, Cristovam. O Desafio Ético. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.

Idem

[16] Jonas, Hans. El Principio de Responsabilidad - ensayo de una ética para la civilización tecnológica. Herder. 1995.