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NOVAS
TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS NO BRASIL: UM DEBATE À
ESPERA DE REGULAÇÃO
Marilena Corrêa
Debora Diniz
Quando
fui convidada para escrever este artigo, falando
sobre o Genoma Humano, confesso que, ao mesmo tempo
que me senti envaidecida, fiquei muito assustada
pois, na realidade, é um tema sobre o qual
tenho pouquíssimo conhecimento. No entanto,
adoro desafios e minha vida é repleta deles,
então por que não aceitar mais um?
Além do desafio, tenho um motivo muito especial,
que me liga diretamente a este tema: sou portadora
de uma doença genética chamada anemia
falciforme. Neste momento em que escrevo, meu hemacrócrito
está em 19%, o que, no meu caso, me causa
dores, mal-estares e baixa imunidade.
A
anemia falciforme é uma doença genética,
de caráter recessivo, cujo gene pode ser encontrado
em cerca de 6 a 10% da população brasileira.
A união de pessoas com esta mesma característica
genética, representa 25% de possibilidade de
gerarem filhos com a doença, contra 50% de
probabilidade dos filhos herdarem os traços
genéticos (híbridos, porém dominantes
quanto à normalidade da pessoa) e os 25% restantes
com a chance dos filhos nascerem sem qualquer vestígio
da doença. Doença hereditária
mais comum no Brasil, a anemia falciforme tem sua
origem desconhecida, mas, provavelmente, desenvolveu-se
na África, há milhões de anos,
devido a uma mutação genética.
Embora
haja uma grande incidência nas pessoas da raça
negra, muitas pessoas brancas, particularmente provenientes
do Mediterrâneo, apresentam a doença.
Ela é causada por uma anormalidade da hemoglobina
(glóbulos vermelhos), não é contagiosa,
porém, nós, falcêmicos, estamos
sujeitos a infecções diversas, necroses
assépticas, osteomielites, AVCs, meningites,
problemas renais, pneumonias, priapismos e tudo o
mais que o destino nos reservar. Temos tantas dores
que é difícil, para alguém sadio,
imaginar a intensidade que atingem - cabe apenas aos
"normais" a função de imaginar
o quanto deve ser difícil nos manter fortes
e o mais importante, vivos. Sofremos
ainda
com discriminações e com o descaso de
governantes, profissionais de saúde e da sociedade
e, mesmo tendo um número significativo de pessoas
com anemia falciforme, não conseguimos ser
ouvidas. Exaustos de esperar que alguém fizesse
alguma coisa por nós, resolvemos ir à
luta e nos representar; fundamos a nossa Associação.
A
AFARJ tem como objetivos criar condições
para uma assistência mais efetiva, fazer com
que os falcêmicos continuem os estudos mesmo
quando internados, conseguir remédios (em falta
nos hospitais) necessários ao tratamento, proporcionar
apoio psicológico, integrar o paciente à
sociedade, conseguir máquinas necessárias
ao tratamento e, até mesmo, cestas básicas,
voltadas para a necessidade alimentar de cada paciente
pois, geralmente, os pacientes são extremamente
carentes, lutar juntamente com os Conselhos Municipal,
Estadual e Federal de Saúde por um bom atendimento
nos hospitais, divulgar e informar a população
em geral, criar espaços e condições
para uma maior movimentação cultural
dos portadores e, principalmente, ter como prioridade
o direito do portador fazendo com que a Lei 3.161,
de 31 de dezembro de 1998, seja cumprida.2 Para isso,
contamos com o Decreto 25.573, de 16 de setembro de
1999, que regulamenta a Lei mencionada e institui
o Grupo de Trabalho de Anemia Falciforme.
Nasci
com 4,5 kg, com cabelo loirinho, saí da maternidade
perdendo peso e com uma febre inexplicável.
Tanto eu como meus irmãos nos tratamos com
um pediatra de renome, porém como sempre estava
doente e ele não sabia o que eu tinha, minha
mãe trocou de médico e isto, por diversas
vezes, inúmeros exames foram feitos e ninguém
conseguia diagnosticar o que eu tinha. Durante dez
meses, minha mãe conta, eu nem chorar chorava
mais, só gemia. Neste período, uma noite
minha mãe ficava comigo, outra, a babá.
Certa noite, quando minha babá estava comigo,
eu desfaleci e ela entrou no quarto de minha mãe
comigo no colo gritando: - “Christininha morreu!
A Christininha morreu!" minha Mãe me levou
a um pronto-socorro onde fui reanimada. Lá
fiz mais exames, entre eles, um que ninguém
havia ainda pedido. Segundo o médico, só
por desencargo de consciência, pois eu não
apresentava nenhuma característica das pessoas
que tinham aquela doença.
No
dia seguinte, minha mãe atende à campainha.
O médico que me atendera no pronto-socorro
veio pessoalmente informar que, infelizmente, eu tinha
a doença que ele achava impossível e
que uma equipe médica estava a minha espera
para que eu fosse atendida imediatamente. Caso nós
não tivéssemos dinheiro, ele pagaria
e depois meus pais o ressarciriam. Aos 10 (dez) meses
fiz minha primeira transfusão e nem posso dizer
quantas fiz até hoje. Ele me indicou um hematologista,
que perguntou à minha mãe se tínhamos
direito a algum hospital. Mamãe falou que sim,
o Hospital dos Servidores do Estado (HSE), mas que
nunca havia ido lá, e ele respondeu: -"Mas
enquanto ela viver; a senhora nunca mais sairá
dele e, com esta doença, rico fica pobre e
pobre morre. "Falou ainda que não tinha
certeza se eu completaria 1 (um) ano, pois meu coração
estava muito comprometido.
Minha
mãe saiu de lá em frangalhos: sou a
única filha mulher e a caçula, o sonho
da vida dela e estava prestes a morrer. Andou o dia
inteiro. Chegando em casa, contou a meu pai que falou
que, se era de dinheiro que eu precisava para viver
mais tempo, ele voltaria a estudar e... se formou
em advocacia. Decidiram que eu seria criada como uma
criança normal, claro que com as minhas limitações,
e o estudo - principalmente para minha mãe
- era fundamental pois, segundo ela, "doente
e burra era muita desgraça junta ".
Em
minha família, nunca houve nenhum caso de anemia
falciforme. Eu fui a primeira e a única até
hoje.
O
diagnóstico demorado se deve a isto e ao fato
de, naquele tempo, acharem que só negros eram
portadores da mesma. As pessoas estão cometendo
este erro quando divulgam a doença e isto,
além de trazer um grande malefício às
pessoas da raça negra, comprometendo seus empregos,
ainda faz com que corramos o risco de termos um número
muito grande de crianças brancas morrendo antes
de conseguirem ser diagnosticadas.
Esta
é uma das minhas preocupações,
temos de ver que estamos falando de seres humanos,
independente de serem brancos, negros, amarelos ou
cor de abóbora, isto é o que menos importa.
Hoje
aos 39 anos, quase tudo que descrevi sobre as crises
da anemia falciforme eu já sofri e um pouquinho
mais. Aos dezoito anos já tinha sido internada
cerca de 180 vezes no (HSE), onde me trato até
hoje e, embora tenha uns 10 prontuários (atualmente
tenho um número muito maior de internações
que os citados aos 18 anos de idade), graças
a meus pais e dezenas de amigos, consegui graduar-me
em bacharel de Direito. Ocupo também o cargo
de primeira secretária da AFARJ e faço
parte do Comitê de Ética em Pesquisa
da FIOCRUZ e do HSE.
Agora
posso expor melhor a minha opinião sobre o
Genoma Humano. O fascínio que este tema exerce
sobre as pessoas, às vezes me assusta, pois
tenho medo dos métodos empregados, e dos fins
a que serão aplicados. Sem dúvida alguma,
gostaria muito que descobrissem a cura da anemia falciforme,
assim como as demais doenças hereditárias
e as adquiridas que hoje ainda são incuráveis.
Quando, aos 20 anos, fiz a minha primeira exsanguíneotransfusão,
que é a troca do sangue, meu hematologista,
na ocasião era o Michel Tenembaum, disse que
minha salvação estava na engenharia
genética e que torcia para que eu tivesse força,
pois chegaria a ver a cura da anemia falciforme e
de outras doenças incuráveis. Acho que
ele tem razão e, mesmo não estando tão
bem assim, tenho quase certeza de que verei isto.
Vamos tirar o "quase".
Uma
coisa me preocupa: será que esta cura também
vem para mim ou só para crianças que
estão com os órgãos vitais comprometidos?
Ou apenas para as que ainda vão nascer? Espero
que as pesquisas consigam salvar as crianças
com esta patologia ou com outras de igualou pior gravidade.
Se, para nós adultos, descobrirem uma maneira
de atenuar nosso sofrimento, já me dou por
satisfeita. Eu aprendi a conviver com minha doença.
Imagino
que o grande objetivo da descoberta do Genoma Humano
seja dar uma melhor condição de vida
às pessoas portadoras de doenças incuráveis
adquiridas e, principalmente, às geneticamente
transmissíveis e não, excluir o cidadão.
Por enquanto, a descoberta do DNA associado à
doença apenas dá o conhecimento de que
a criança pode vir a nascer com determinada
doença. Ainda não se tem a cura.
Venho
mais uma vez, mencionar a minha preocupação
com a exclusão do ser humano depois que o Genoma
estiver todo decifrado, pois receio pelo emprego das
pessoas no futuro, imaginando que possa ser pedido
um exame de DNA no momento da admissão. Caso
se constate que esta pessoa tenha disponibilidade
de desenvolver determinada doença ela pode
vir a ser excluída do mercado de trabalho,
assim como dos planos de saúde. O fato de a
pessoa não ser obrigada a fazer o exame de
DNA não a protege de absolutamente nada, pois
sua recusa pode levar o empregador a lhe negar o emprego,
o mesmo acontecendo com os planos de saúde.
Seria necessário proibir este exame para admissão
no emprego.
Me
preocupa também, a volta da mentalidade de
Hitler, a defesa da criação de uma raça
pura. Claro que queremos o ser humano livre de doenças,
porém, não concordo com a criação
de uma raça, seja ela branca, negra ou amarela,
nem de seres totalmente "laboratoriais";
a evolução do ser por manipulação.
O pior é saber que podemos chegar ao ponto
de pessoas menos favorecidas, tanto física,
econômica quanto intelectualmente, passarem
a ser cobaias de outros seres da mesma espécie,
isto é, um ser humano cobaia para outro ser
humano, que se aproveita justamente destas limitações.
A
princípio, acredito que as intenções
sejam as melhores possíveis, mas tenho muito
receio do que pode ser feito no futuro com tamanho
conhecimento. Por este motivo, temos que pensar bem
na formulação de nossa legislação,
para que não deixemos nenhuma brecha para um
uso indevido do Genoma, não esquecendo nunca
da ética com a pessoa a ser pesquisada e com
a própria natureza.
Não
podemos esquecer dos nossos interesses, isto é,
da preservação da nossa fauna, da flora
e do meio ambiente, controlando quem, como e o quê
será pesquisado, tanto pelos estrangeiros,
como pelos nossos pesquisadores. E, no caso das pesquisas
feitas por estrangeiros se é dada preferência
sempre aos projetos que venham gerar mais benefício
ao nosso País, assim como, treinamento do nosso
pessoal, transferindo seus conhecimentos para nós
e beneficiando instituições públicas
envolvidas, em caso de apropriação comercial.
É
preciso que se saiba que tanto nos leitos de nossos
hospitais, como perambulando por todo o País,
e pelo mundo, existem milhares de pessoas contando
com a descoberta do DNA, pessoas aflitas, assim como
eu, precisando de uma solução rápida
para nossos problemas. Porém, acredito que
estas pessoas, ou a maioria delas, pensem como eu:
não adianta o Genoma ser totalmente decifrado
se não temos leis que assegurem o futuro da
humanidade, que não sejam apenas postas no
papel para, no final, serem aplicadas de qualquer
forma, ou dando o famoso "jeitinho". Por
se tratar de um assunto tão sério envolvendo
os Direitos Humanos, a decisão não pode
ser unilateral, pois envolve toda a humanidade. Talvez
esta decisão deva ser coletiva, mundial, societária,
vinda de cada parlamento. Penso que a ética
é uma forma que temos para lutarmos contra
o autoritarismo.
*
* * * * * *
REFERÊNCIAS
EMERICK,
Maria Celeste e CARNEIRO, Fernanda. Recursos Genéticos
Humanos: Limites ao Acesso. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,
1997.
GARRAFA,
Volnei. Declaração de Helsinque - Fundamentalismo
Econômico e Controle Social Texto copiado, 2000.
NOTAS
Diretora da Associação
dos Falcêmicos e Talacêmicos do Rio de
Janeiro (AFARJ) e representante dos Usuários
no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
da FIOCRUZ.
Lei 3161, 30/1211998, ALERJ,
“institui o Programa de Acompanhamento e Assistência
Integral às pessoas portadoras do traço
falciforme e com anemia falciforme no Estado do Rio
de Janeiro”.