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RECURSOS GENÉTICOS, TRABALHO E APROPRIAÇÃO
A. L. Figueira Barbosa[1]

"Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito Internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional. "

Convenção sobre a Diversidade Biológica, Artigo 3, Princípios.

Medida Provisória No 2.052, de 29 de junho de 2000:

"Regulamenta o inciso II do § 1° e o § 4"do art. 225 da Constituição, os arts. 1o. 8o, alínea ‘J', 10o, alínea 'c', 15o e 16o, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético [...].

“Art. 2o - A exploração do patrimônio genético existente no País somente será feita mediante autorização ou permissão da União e terá o seu uso, comercialização ou aproveitamento para quaisquer fins submetidos à fiscalização; nos termos e condições desta Medida Provisória.

Parágrafo único - É de propriedade da União o patrimônio genético existente em seus bens, bem como nos recursos naturais encontrados na plataforma continental e na zona econômica exclusiva.

Art. 7o - Além dos conceitos e das definições constantes da Convenção sobre a Diversidade Biológica, considera-se para fins desta Medida Provisória:

I - patrimônio genético: informação de origem genética, contida no todo ou em parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, em substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticada, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ, no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva;

(...)"

ANOTAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O TRABALHO

O trabalho é o ato que distingue o homem dos animais. Ambos se utilizam da natureza para viver, mas só os humanos a transformam. O trabalho humano é sempre útil, ainda que nem sempre produtivo. Quando produtivo, gera relações entre os próprios homens e entre estes, os meios e os objetos da produção; entretanto, estas relações mudam no transcorrer da História, construindo períodos e sociedades diferenciadas, devido às relações entre os produtores estabelecerem formas distintas e específicas de apropriação dos frutos do trabalho. Enfim, formas de propriedade social dominantes construindo de formações socioeconômicas diversas.

É necessário ressaltar que, em todos os momentos da História, houve e há trabalhos em que os produtores, e/ou os frutos de seus trabalhos, não entram em relações com outros produtores e, desta maneira, o objeto da análise não é uma forma de propriedade social, mas uma propriedade "exógena" à sociedade - propriedade privada, individual per se. Fora do locus econômico, esta não é, por definição, uma forma de propriedade social, não se devendo confundi-la com a propriedade privada gerada pelas relações entre os homens no processo de produção que criam as condições para esta forma de apropriação dos frutos do trabalho.

Nas origens da humanidade, nas sociedades comunais primitivas, ou ainda hoje em algumas comunidades isoladas, todos eram ou são produtores e proprietários comuns dos resultados do trabalho. Na Antigüidade, os homens tornaram-se donos dos homens, e ao senhor dos escravos pertenciam os frutos do trabalho; ou as guerras serviam ao saque e à transformação dos homens livres em escravos. No feudalismo, o senhor defendia seus súditos e servos da gleba da pilhagem dos bárbaros e, em troca, esses retribuíam entregando parte de suas produções - a meia, o terço, etc. O capitalismo proporcionou a liberdade de ir-e-vir aos produtores, mas concentrou os meios de produção em poucas mãos - dos capitalistas -, tornando a produção dominante destinada à troca. Neste século, os países socialistas construíram a apropriação pelo Estado.

Em princípio, trabalho e apropriação são os objetos de observação das chamadas ciências sociais. Mesmo que em nosso momento histórico ainda haja alguma crítica sobre o trabalho e a apropriação, é óbvio, pelo menos, haver desvios de ênfase. Em Economia, os chamados clássicos comandaram o pensamento até meados do século XIX concentrando suas preocupações na distribuição da riqueza e, por conseqüência, na apropriação - era a Economia Clássica -; mas, como os caminhos se tornaram perigosos, houve uma

mudança no enfoque, passando a formação de preços a dominar - é a Economia Neo-clássica. No campo do Direito, hoje, poucos notam as distinções entre uma propriedade pessoal e empresarial, embora ambas sejam privadas em nossa sociedade e, desta maneira, esvai-se a perspectiva crítica.

Os debates de anos passados recentes, após a Convenção sobre a Biodiversidade (Rio de janeiro, 1992), relacionados à regulação da entrada na circulação econômica dos recursos genéticos, excluídos os derivados de organismos humanos, trouxeram à cena várias questões relacionadas à propriedade dos recursos e dos produtos derivados e gerados do trabalho sobre eles. Por exemplo, alguns especialistas em propriedade intelectual sugeriram a proteção do conhecimento tradicional, existente nas populações indígenas ou nas chamadas comunidades locais, através desta forma de propriedade sobre mercadorias imateriais, considerando que ela é também uma propriedade coletiva. Todavia, ainda que a sociedade dos índios seja usualmente denominada de uma coletividade, a propriedade dominante é comunal e não guarda qualquer relação com a propriedade intelectual, esta coletiva e divisível, aquela indivisível[2] Daí se explica a disposição constitucional de nosso país afirmar serem as terras indígenas inalienáveis e indisponíveis (Constituição da República, art. 231, § 4°). Parece tolice, mas é importante ressaltar, para uns poucos menos críticos, não ser a propriedade indígena inalienável e indisponível determinada constitucionalmente, mas ser um mero reconhecimento de uma situação de facto e, assim, trata a nossa Carta Magna de tão só buscar a preservação de uma cultura sob ameaça constante da nossa sociedade.

Neste ambiente, há que se considerar nem sempre ser determinante a propriedade privada nas economias capitalistas, ainda que sempre dominante. Por exemplo, no intuito de haver um controle sobre os recursos de um país, é possível se definir alguns destes recursos como propriedade do Estado. É o caso, por exemplo, dos recursos minerais em nosso país.

SOBRE A PROPRIEDADE E A APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS MINERAIS

É sobre certos pilares que está alicerçada a ordem econômica de uma sociedade, e sobre tais fundamentos se estabelecem as relações entre os homens, refletidas pelo arcabouço jurídico, tendo por origem a Carta Magna. Em nosso país, a Constituição expõe os princípios gerais da atividade econômica em seu artigo 170:

“Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa tem por .fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
[...]."

O texto é cristalino. Após o caput definir os fundamentos, relaciona os princípios necessários à preservação destes alicerces. Em relação aos fundamentos, cabe ressaltar a importância do trabalho inserido no âmbito da livre iniciativa, leia-se do capitalismo. Quanto aos princípios, primeiro houve a preocupação com a soberania nacional, condição sine qua non para a própria preservação da nação e, por conseqüência, dos demais princípios, seguindo-se a determinação da propriedade privada como dominância das relações sociais, sem que tal não exclua que eventuais atividades econômicas sejam exercidas pelo Estado, ainda que sob certas premissas (art. 173) e, indubitável, sem que haja desobediência à propriedade privada como princípio. Daí porque o terceiro inciso especifique a função social da propriedade como delimitadora dos direitos e definidora das obrigações da própria propriedade privada.

Por razões de soberania nacional e com base na função social da propriedade, a Carta Magna abre algumas exceções à propriedade privada, verbi gratia, conforme se depreende do disposto em seu artigo 176:

“Art. 176- As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do 5%, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. "

No caso, deixar de reconhecer a propriedade privada é uma exceção que justifica a regra. Exceções são possíveis, mas há que se ter certas precauções, em especial com relação aos fundamentos da sociedade que a Constituição se preocupa em reproduzir em seu artigo 170, já citado. No caso dos recursos minerais, o legislador considerou haver razões para ser criada uma exceção, porém, sem transgredir os fundamentos sociais. Ao se conferir a propriedade, a União não visou se apropriar dos frutos da exploração das jazidas, isto é, do trabalho da exploração, mas tão só se definir como o poder concedente da pesquisa e da lavra desses recursos minerais. E, para fins de concessão, a União está limitada em seu poder que deve atender sempre ao "interesse nacional" e este ato só poderá ser efetivado em favor de "brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e tenha a sua sede e administração no País" (art. 176, § 1°). Mas, apesar de justificável a propriedade da União, houve por bem o legislador, ao retirar a propriedade de seu titular, não derrogar todos os seus direitos derivados de sua propriedade sobre o solo, daí assegurando-lhe a "participação [...] nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei" (art. 176, § 2°) .

Considerações sucintas são oportunas. Os recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica não eram e nem são per se fruto do trabalho humano, mas dádivas da natureza. Portanto, são "propriedades" decorrentes da apropriação privada do solo, na maioria das vezes, com total desconhecimento daquilo contido no subsolo. Considerar esses recursos como propriedade da União, portanto, não ofende um princípio de origem de respeito aos resulta- dos do trabalho de quem o realiza.

Todavia, por razões idênticas ou assemelhadas,[3] a exploração dos recursos minerais têm, também, um trato diferenciado em nossa Carta Magna. Assim, a atividade de exploração nem sempre pode ser exercida pelo setor privado, constituindo-se monopólio da União (art. 177), dentre outras, a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos (inc. 1), a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro (inc. II), a importação e exportação dos produtos e derivados básicos de petróleo produzido no País (inc. III), o transporte marítimo de petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem (inc. IV), a pesquisa e a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados (inc. V).

Portanto, a mera declaração dos recursos minerais serem patrimônio da União (art. 176) não implica o exercício da exploração pelo Estado e, por conseqüência, da apropriação dos frutos do trabalho a ser exercido por seus funcionários, remunerados para tal finalidade. Daí porque, por interesse nacional, o legislador teve que criar, mais uma vez, uma exceção, definindo a exploração do petróleo desde a pesquisa, a prospecção, o refino, o comércio exterior como monopólio da União, cuja disposição foi recém-alterada,[4] enquanto os minerais nucleares permanecem sem modificação.

Em suma, os recursos minerais no território brasileiro são de propriedade da União, e, além disto, à exceção dos minerais nucleares, a Constituição outorga o monopólio de exploração desses recursos à União que, no momento, poderá transferir estas atividades às empresas privadas. Portanto, os recursos minerais continuam a ser propriedade da União, mas qualquer trabalho sobre os mesmos podem ser realizados pela iniciativa privada e, por conseqüência, os resultados pertencem a quem o realizou e não à União. No intuito de manter a racionalidade sistêmica, a propriedade sobre os bens da natureza pertence ao País, mas a intervenção do trabalho humano sobre estes bens é um monopólio da União.

SOBRE A PROPRIEDADE E A APROPRIAÇÃO DOS RECURSOS GENÉTICOS

A pirataria sobre os recursos genéticos do país é antiga - o pau-brasil, a borracha e tantos outros exemplos - sempre mereceu a nossa reprovação, com maiores ou menores sucessos. A luta de Monteiro Lobato em defesa do petróleo, culminando com a criação da Petrobras nos anos 50, é uma história heróica, demonstrando os potenciais de sucesso de lutas congêneres. A maioria desses casos, entretanto, é de saques em que a transformação industrial da matéria-prima continha uma relativa baixa agregação de valor em comparação à pirataria hoje em curso - a biopirataria.

O desenvolvimento da biologia, a sua apropriação pelo econômico dando surgimento à biotecnologia, evidenciou a riqueza contida na biodiversidade dos países tropicais e em desenvolvimento, como é a situação do Brasil. O uso dessa diversidade biológica em ramos industriais como a produção de medicamentos, por exemplo, possibilita altas taxas de lucro e, mirando o passado, os fatos de hoje pressionam-nos com seu evidente potencial para facilitar romper o círculo vicioso da pobreza.

A primeira reação internacional significativa para possibilitar a exploração dos recursos genéticos de forma justa e eqüitativa entre os países foi a realização, no Rio de janeiro, da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no período de 5 a 14 de junho de 1992. A Conferência deu origem à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), cuja adesão foi assumida por mais de uma centena de países,[5] sendo exceção os EUA. Desde então, a sociedade brasileira e seus poderes vêm debatendo formas de regulação, sendo a primeira proposta objetiva apresentada ao Senado Federal pela Senadora Marina Silva, através do Projeto de Lei do Senado n° 306, de 1995. Este projeto tem a grande virtude de abrir os debates e, por conseguinte, se ver passível de severas críticas, nem sempre justificadas; porém, dada a sua originalidade, inclusive no plano internacional, suas disposições nem sempre alcançam o desejável ou respondem às questões. Neste sentido, a área governamental buscou soluções, iniciadas por uma proposta de emenda constitucional, recentemente, culminadas por uma medida provisória (n° 2.052/00).

PROPOSTA DO EXECUTiVO DE EMENDA CONSTITUCIONAL N° 618-A DE 1998.

A emenda é aditiva ao art. 20 da Constituição, que define os bens da União, inserindo o inciso XII:

“Art. 1°- O art. 20 da Constituição passa a vigorar acrescido do inciso XII:
XII - o patrimônio genético, exceto o humano, cabendo à lei definir as formas de acesso e exploração.’
(...)"

A Exposição de Motivos (EM) à emenda inicia afirmando pretender "incluir entre os bens da União o patrimônio genético, à semelhança do que já acontece com os recursos minerais (...) com a finalidade de permitir ao Estado cumprir o que determina o art. 225, § 1°, inciso II (. ..) ", cujos termos se transcrevem:
“Art. 225. - Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade e dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1° Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País" e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
(...)."
Adiante, a EM adenda: "O Governo entende que a melhor opção para o Brasil é declarar o Patrimônio Genético como bem da União, porque somente este tratamento permitiria adequado controle sobre o acesso aos recursos genéticos e sobre a repartição de benefícios oriundos de sua utilização" (o grifo é nosso). E, conclui: “A aprovação desta Emenda Constitucional dará ao Estado brasileiro o necessário amparo para tratar [...] de todos os recursos genéticos existentes no território nacional [...]"

Por dedução dos argumentos citados, há uma clara posição de ser imprescindível à Constituição declarar o patrimônio genético como bem da União. Uma crítica sobre alguns aspectos desta argumentação é necessária.

Primeiro, a redação da emenda é redundante, pois os bens da União são o seu patrimônio. Em outras palavras, se os bens da União fossem definidos como recursos biológicos, material genético ou recursos genéticos, tal como empregado pela CDB, não haveria esta desnecessária e inadequada redundância. Todavia, é possível contestar a terminologia sugerida, em especial se de fato imprescindível declarar a propriedade da União, dada a sua diversidade - animal e vegetal - e amplitude dessas categorias, pois isto implicaria seria se apropriar de uma propriedade, hoje, reconhecidamente privada em sua maior parte quando não pertencente à própria União. Além disto, os recursos minerais e hídricos não têm a transformação do trabalho humano, enquanto a maioria dos recursos genéticos o tem. Sobre este último ponto, se comentará mais adiante.

Segundo, o fato da declaração constitucional da propriedade da União sobre os recursos minerais e hídricos, não esgota o potencial do Estado de definir as formas de acesso e exploração. Não é somente a propriedade, conforme supõe a EM, que confere ao Estado este poder. Pelo menos há dois princípios aplicáveis sem a necessidade dos recursos genéticos (ou patrimônio genético) serem declarados bens da União para que o Estado regule o acesso e a exploração dos mesmos: a soberania nacional e a função social da propriedade, princípios estatuídos pelos incisos I e III, respectivamente, do artigo 170 da Constituição. Em apoio ao argumento, se transcreve o Princípio da CDB:

“Art.3
PRINCÍPIO
Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito Internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional. “

Afinal, mas não finalmente, parece oportuno atentar que as categorias propriedade e/ou patrimônio têm direitos e obrigações distintos, dependendo de quem a detém: a Humanidade, a Nação, o País, a União, etc. Assim, por exempIo, uma cidade pode ser patrimônio da Humanidade, estar localizada em um país - a este pertence - e ter seus imóveis como de propriedade da União e/ou privada. Se trocarmos o exemplo cidade para recursos genéticos a argumentação se sustenta.

Concluindo, sem a alteração proposta pela emenda em tela, o Estado tem todo o direito e a obrigação, contidos em nossa Constituição e acordos internacionais dos quais o país é signatário e membro, em regular o acesso e a exploração dos recursos genéticos existentes em seu território, sendo prescindível a condição destes recursos serem patrimônio da União.

Medida Provisória No 2.052, de 29 de junho de 2000

A análise desta MP está restrita exclusivamente à sua concepção da propriedade sobre aquilo que denomina patrimônio genético, conforme se depreende das disposições do seu artigo 2°, parágrafo único, e do artigo 7°, inciso I. Comecemos a comentar por este último dispositivo.

Estipula o artigo 7°, in verbis:

“Art. 7o - Além dos conceitos e definições constantes da Convenção sobre a Diversidade Biológica, considera-se para os fins desta Medida Provisória;
I- patrimônio genético: informação de origem genética, contida no todo ou em parte da espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, em substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticada, ou mantidos em condições ex situ, desde que coletados em condições in sítu, no território nacional, na plataforma continental o na zona econômica exclusiva.
(...)."

Desconhecemos os motivos que levaram a MP a não se utilizar da categoria recursos genéticos, conforme adotada pela CDB, embora possam ser feitas algumas conjecturas. Considerando a posicão da imprescindibilidade[6] de se declarar como bem da União os recursos genéticos, teríamos sérios e incontornáveis óbices, tais como estarem aí incluídos os animais domesticados, as plantas de um jardim, as árvores de uma fazenda, etc. Em suma, seria dar por findo milhares de propriedades já definidas, em geral, propriedades privadas. Impossível solução. Daí a "solução" de tratar da propriedade do denominado patrimônio genético.

O modismo da propriedade intelectual, industrial, por certo deve haver influenciado a adoção da categoria patrimônio genético, não como a propriedade dos recursos genéticos (redundância), mas como um objeto imaterial suscetível, inclusive e em muitos casos, de proteção patentária. Sendo o patrimônio genético uma "informação de origem genética, contida no todo ou em parte" nos recursos genéticos, é, portanto, passível de ser uma invenção patenteável. Como e por quê?

Uma "informação de origem genética, contida no todo ou em parte" nos recursos genéticos, não é um bem natural, ou melhor, não é um bem existente na natureza sem transformação pelo trabalho ou, ainda, não é matéria em estado puro. Neste sentido, a informação é obrigatoriamente uma descoberta ou uma invenção. No tratado internacional sobre a matéria que não prosperou,[7]"a descoberta científica significa o reconhecimento dos fenômenos, propriedades ou leis do universo material não reconhecida até o momento e capaz de verificação"; quanto à invenção, assumindo a sua condição de proteção patentária, deve ter os requisitos da novidade - informação não compreendida no estado .da técnica -, aplicabilidade industrial e atividade inventiva - uma informação criada de forma não-óbvia sobre as informações conhecidas.[8] Portanto, seja descoberta ou invenção, a informação é uma decorrência do trabalho exercido pelo homem e, no extremo, se estiver contida não é reconhecida e obviamente inexiste para os homens e suas leis.

A descoberta tem em comum com a invenção ser o resultado do trabalho intelectual, mas se diferenciam pela ocorrência ou não da intervenção do trabalho sobre o objeto, isto é, da existência ou não da transformação do objeto pelo trabalho. De fato, o inventor usa os fenômenos, as propriedades ou as leis do universo material para transformar a natureza criando a invenção. Assim sendo, as descobertas são um patrimônio a Humanidade e, por conseqüência, informações sem propriedade, embora possam ter a sua autoria reconhecida; as invenções, entretanto, são trabalho cujo resultado é apropriado pelo seu criador, ou por quem dele deriva os seus direitos, sendo sempre reconhecida a sua autoria. A descoberta é um bem livre, a invenção um bem econômico, uma mercadoria.

O patrimônio genético, nos termos da MP, é uma informação - resultado do trabalho - sem atividade inventiva, embora possa conter novidade e aplicabilidade industrial em alguns casos; enfim, é, em princípio, uma descoberta. Ora, as descobertas são mundialmente consideradas patrimônio da Humanidade, um bem livre sem propriedade. Entretanto, é possível imaginar uma descoberta como pertencente a um Estado, no caso, desde que os recursos genéticos que contêm a informação só existissem no território do País - uma hipótese hercúlea, pois excepcional.

Além disto, repetimos, sendo uma informação apropriada, trata-se de uma propriedade imaterial, criada pelo trabalho de pessoa física ou jurídica sobre uma propriedade material - os recursos genéticos -, cuja propriedade é, em princípio, privada, ainda que possa também ser pública.

Há, todavia, uma exceção: o conhecimento tradicional associado. Este é, também, um intangível (informação) que, preteritamente à MP, já existia com o trabalho realizado sobre os recursos genéticos; portanto, é, per se, uma informação compreendida pela categoria de patrimônio genético que, por definição da MP, também pertence à União. A expressão "associado", sem dúvida, não resolve as incongruências.

O resultado de qualquer trabalho pertence ao produtor ou a quem o contrata. Este princípio elementar não se aplica às descobertas, com a exceção já suscitada, ou seja, se os recursos genéticos unicamente existem em território nacional. Neste caso, suponhamos que a uma pessoa seja concedido o direito de acesso aos recursos genéticos que, trabalhando sobre eles, alcança uma informação - conforme os termos da MP, tal informação será de propriedade da União... A MP ao considerar a descoberta como propriedade da União – o resultado de um trabalho sobre os recursos genéticos -, adota uma disposição sobre a propriedade imaterial assemelhada às economias socialistas, nas quais a propriedade imaterial de idéias .úteis à produção pertencem, obrigatoriamente, ao Estado. Em conclusão, a situação conflita com as regras do jogo e será, assim, "mais uma lei que não pega..."

Dos direitos post facto

Uma outra ótica para a crítica, o entendimento da essência da matéria em observação, do patrimônio genético pertencente à União, é feita através da definição dos direitos desta propriedade. A MP não os discrimina, mas podemos conjecturar a partir dos direitos conferidos pelas patentes, também uma informação.

Os direitos dos titulares sobre uma informação protegida por patentes são afirmativos e negativos. Aqueles são de propriedade, estes são derivados e conferidos para reforçar os direitos de propriedade. Os direitos de propriedade imaterial são os usuais a qualquer objeto (usar, usufruir, alienar, etc.), sendo peculiar e inerente o uso exclusivo - o chamado monopólio. Os direitos negativos compreendem o poder do titular da patente de excluir de certos atos, basicamente fabricar, usar e vender. Em nosso atual código sobre propriedade industrial - Lei n° 9.279/96 - a propriedade está regulada pelo seu artigo 6°, enquanto a exclusão de terceiros está disposta no artigo 42.

A lógica da MP, conjugada com a emenda constitucional referida, é conceder à União, enquanto proprietária da informação contida nos recursos genéticos, os poderes para regular o acesso e a exploração e o acesso aos recursos genéticos e ao patrimônio genético (informação contida). O acesso se baseia na aplicação dos direitos ante-facto, enquanto a exploração são aplicações post-facto, sobre um objeto derivado da propriedade de objeto pretérito.

Desenvolvamos o raciocínio principiando por supor que a instituição que trabalhará sobre os recursos genéticos seja sediada no exterior e, assim, trabalhará sobre os recursos genéticos autorizados a serem remetidos à sua sede e conhecerá a informação neles contida amparada e regulada pela nossa legislação que a declara patrimônio da nossa União. Surgem os primeiros questionamentos: este trabalho realizado no território de um país "H" pode ser regulado por instrumentos do país" A "?

Tornando-se a instituição estrangeira conhecedora do "nosso" patrimônio genético (a informação contida), poderá seguir pesquisando até alcançar uma informação patenteável. Como esta informação patenteável foi elaborada a partir de um patrimônio que não era de sua titularidade, quem, afinal, será o proprietário da patente?

A propriedade desta patente pode ser requerida pela instituição estrangeira, pois nada há na MP que exclua tal hipótese. Entretanto, na seqüência do raciocínio, transcreva-se o artigo 18 da MP, in verbis:

“Art. 18 - A instituição que receber amostra de componente do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado facilitará o acesso à tecnologia, e transferência de tecnologia para a conservação e utilização desse Patrimônio ou desse Conhecimento à instituição nacional responsável pelo acesso e pela transferência de amostra do componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado, ou instituição por ela indicada. "

De início, há que se aceitar a imprecisão e a mistura desordenada da disposição. Assim, aquilo que entra na composição do patrimônio genético são os recursos genéticos, ou seria o patrimônio genético que entra na composição dos recursos? O acesso e a transferência de tecnologia servirão à conservação do Patrimônio e do Conhecimento (informações) de que maneira? É admissível determinar a inserção de outra instituição, quando esta pode ser uma concorrente da fornecedora? Estas são facetas demonstrativas de um engano bastante usual.

Se a MP, ao invés de intentar acessar o conhecimento técnico derivado e criado a partir dos recursos naturais e, posteriormente e afinal, do denominado patrimônio genético buscasse definir para a instituição nacional a co-titularidade deste conhecimento, por certo haveria melhor caminhado. A ingenuidade lembra Confúcio: “A um homem faminto não lhe dê o pescado, mas ensine-o a pescar. " O filósofo não era ingênuo, mas fundamentava-se em outra sociedade; hoje, melhor será ser o proprietário do mar de duzentas milhas, do barco, da vara de pesca e ter o pescador como empregado, desde que este homem saiba pescar...

Houvesse sido estabelecida a co-titularidade compulsória à instituição nacional, considerando que a mesma foi obtida sobre um trabalho a nós pertencente de fornecimento de amostra de recurso genético, e não conferida propriedade à União que tão só deve regulá-la, e, sem dúvida, "a repartição dos benefícios" estaria definida com maior precisão e eficácia.

À GUISA DE PROPOSIÇÃO E CONCLUSÃO

Censurar é obra fácil, principalmente se precedida de pensamento crítico; entretanto, apresentar proposições à matéria, objeto da observação, é outra tarefa, cujo teor pode conter também enganos e imprecisões, independente da justeza da censura e da crítica. Dentro do marco de referência da circulação econômica dos recursos genéticos e das mercadorias nascidas do trabalho sobre eles, e, por conseqüência, da necessária regulação pela sociedade, a assertiva é precisa e adequada.

Quando a Senadora Marina Silva apresentou o seu projeto de lei sobre a matéria, houve uma ampla concordância quanto ao seu esforço e coragem em propor regras sobre matéria complexa e mundialmente pouco ou nada regulada, mas houve também a percepção da necessidade de se debater e aprimorar a original proposta. A MP em causa, sem dúvida, contém avanços com- parativamente ao projeto de lei mencionado; todavia, em nossa opinião, demonstra enganos em matérias fundamentais, como o é a questão da propriedade em matérias da economia. Acreditamos que, mesmo justificando a necessidade de buscar acompanhar o desenvolvimento histórico, por certo, ainda seguiremos na sua esteira, como seguem, aliás, as ciências e as regras sociais e econômicas. Portanto, não há que atropelar a História, mas humilde- mente persegui-la para não retardá-la. É inserido nestas premissas que as proposições apresentadas não configuram um projeto de regulação, mas tão só as necessárias para fundamentar o desenvolvimento deste projeto.

Comecemos pela questão da propriedade. Face às dificuldades e impossibilidades de definir a propriedade dos recursos genéticos, também não há motivo para criar a nova categoria de patrimônio genético para encontrar uma propriedade. O acesso e a exploração dos recursos genéticos, e das criações deles nascidas pela intervenção do trabalho humano, é um direito soberano dos estados, conforme decidido em foros e acordos multilaterais, bem como estatuído em nossa Carta Magna. O exercício da soberania sobre os recursos genéticos, contudo, não requer a sua apropriação pela União; e, se propriedade privada, o interesse público e a função social da propriedade justificam a intervenção do Estado através de regras condizentes com os nossos fundamentos sociais e econômicos. Portanto, sendo os recursos genéticos um patrimônio da Nação, e sendo a informação genética neles contida um patrimônio da Humanidade, se publicamente divulgada, está permitido ao Estado legislar requerendo a co-titularidade para seus residentes ou nacionais, se for o caso, sobre as informações criadas pelos seus trabalhos contidos nas informações desenvolvidas no exterior por terceiros e que alcancem ter utilidade econômica.

Definida a co-titularidade, há que se regular os direitos e obrigações das partes envolvidas. Neste sentido, parece necessária uma interveniência do Estado na contratação entre as partes, prevenindo as usuais cláusulas comerciais restritivas, tão usuais nos contratos de transferência de tecnologia. O que não se pode, ou no mínimo não terá aplicação, é determinar a participação nos benefícios, sem definir o que sejam, e tratando o conhecimento técnico como um bem livre para qual uso bastaria conhecê-lo.

* * * * * * *

NOTAS

[1] Economista. Assessor da Coordenação de Gestão Tecnológica/FIOCRUZ.

[2] Figueira Barbosa, A. L. A questão da propriedade coletiva e comunal. Sobre a Propriedade do Trabalho Intelectual. Editora UFRJ, 1999.

[3] O artigo 173 dispõe que "a exploração direta da atividade econômica pelo Estado, só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo".

[4] A Emenda Constitucional n° 9, de 9 de novembro de 1995, permitiu à União contratar com empresas, estatais ou privadas, as atividades previstas nos incisos de I a IV.

[5] O Brasil confirmou a sua adesão através do Decreto Legislativo n° 2, de 3 de fevereiro de 1992.

[6] Este posicionamento é facilmente contestável, ou seja, admite-se que é possível regular o acesso, o uso e a circulação dos recursos genéticos sem que seja necessário declaração de propriedade sobre estes ou seus derivados.

[7] Tratado de Genebra sobre Registro Internacional de Descobertas Científicas, adotado em Genebra, Suíça, em 3 de março de 1978.

[8] Lei n° 9.279/967, arts. 11, 13 e 15.