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A
SITUAÇÃO LIMITE DO SISTEMA DE PATENTES:
EM DEFESA DA DIGNIDADE DAS INVENÇÕES
HUMANAS NO CAMPO DA BIOTECNOLOGIA
Salvador D. Bergel
INTRODUÇÃO:
DUAS QUESTÕES PRÉVIAS A RESPONDER
Abordar
o tema do patenteamento do material genético
humano no plano ético e jurídico
é importante para responder a duas questões
prévias:
a)
se é possível universalizar o
debate, tomando em consideração
o caráter nacional das normativas vinculadas
aos direitos de propriedade industrial;
b) se existem vínculos entre o direito
de patentes e a ética.
Vamos
ao encontro da primeira questão.
Não
podemos deixar de considerar que nos movemos
dentro de uma ordem normativa concreta (o direito
de patentes). Esta ordem normativa - tanto no
plano descritivo quanto conceitual - é
particular para cada país em razão
de que existe o direito de propriedade industrial
como direito interno.
Em
princípio, isto impossibilitaria continuar
com o nosso objetivo, visto que teríamos
um cenário em cada país, o que
nos impediria obter conclusões gerais
ao buscarmos soluções para os
múltiplos problemas éticos que
traz o patenteamento nas novas biotecnologias
- em geral - e na pesquisa sobre o Genoma Humano,
em particular.
Mas
o caso é que os dados da realidade nos
conduzem a outros caminhos. Em primeiro lugar,
porque - por feliz coincidência - o núcleo
central da disciplina normativa conformado pelos
denominados, em doutrina, requisitos objetivos
de patenteamento, assim como as exclusões
de patenteamento, se reiteram através
dos diversos sistemas jurídicos, adquirindo,
desta forma, características de universabilidade.
Assim,
com respeito aos requisitos objetivos de patenteabilidade,
a novidade da invenção, a necessária
utilidade industrial e o mérito inventivo
- traduzido na real contribuição
ao estado da técnica - constituem, com
mínimas diferenças, pressupostos
gerais para a concessão de patentes em
todos os países.
Adicionam-se
a esta importante base, as tentativas parciais
ou gerais de harmonização da matéria
na ordem internacional que reafirmam a primazia
de ditos princípios básicos. Neste
sentido, o Convênio da Patente Européia
(CPE) e a recente Diretiva sobre a proteção
das inovações biotecnológicas.
Fortalecendo
este aspecto, lembro o acordo TRIPs do GATT
(Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade
Industrial Relacionados ao Comércio).
Este acordo, incorpora, pela primeira vez na
história, em um tratado sobre Comércio
Internacional, um capítulo sobre a observância
de direitos intelectuais, um de cujos componentes
é precisamente o de Propriedade Industrial
que, na prática, universaliza seus conteúdos
básicos.
Em
relação a este aspecto, estabelece:
"as patentes poderão ser obtidas
para todas as invenções, sejam
elas de produtos ou de procedimentos em todos
os campos da tecnologia desde que sejam novas,
contenham uma atividade inventiva e sejam suscetíveis
de aplicação industrial"
(art. 27.1).
Tudo
isto sustenta a idéia de tratar o sistema
de patentes como um sistema universal permitindo
que se possam emitir a seu respeito julgamentos
comuns, sem prejuízo de considerar os
detalhes particulares que matizam os regimes
nacionais ou comunitários.
A
segunda questão que devemos tratar de
compreender é que vínculo relaciona
os direitos de patentes com a ética.
De
um ponto de vista geral, toda lei, toda norma
jurídica pode e deve estar vinculada
à ética. O direito, sem dúvida,
como sistema normativo que ordena uma sociedade,
deve expressar, ou estar fundado, em princípios
morais. A adesão aos valores da lei -
ensina Moufang - significa que geralmente as
justificativas das normas e as decisões
legais estão pensadas, ou ao menos relacionadas
a princípios e argumentos baseados na
moral.
Esta
compreensão ampla é aplicável
aos sistemas normativos particulares, tais como
aquele que aqui nos interessa. As considerações
baseadas em fatores ético-legais, permeiam
toda a estrutura normativa do sistema de patentes
e jogam um papel decisivo no seu posterior desenvolvimento
previsto pela legislação e a jurisprudência.
É
bem verdade que a moral e as regras legais pertencem
a círculos que se entrecruzam e não
existe uma antinomia geral entre elas. Por esta
razão, a inter-relação
entre ética e lei de patentes não
pode ser reduzida à aplicação
de uma previsão específica e exclusiva.
Além
destas considerações, é
necessário enfatizar que os argumentos
bioéticos específicos também
ocupam um lugar dentro do sistema de patentes
e influem nas limitações sobre
patenteamento e no alcance da proteção.
Também constituem o pano de fundo para
a aplicação de medidas especiais
para salvaguardar interesses públicos
(por exemplo, licenças obrigatórias)
e podem determinar de muitas maneiras, a interpretação
das categorias gerais na lei de patentes.
Nesta
mesma direção, podemos destacar
algumas circunstâncias complementares
que avalizam a relação com a ética.
Deste modo:
Existem
diversas teorias dirigidas a justificar o sistema
de patentes (criação legislativa
por princípio), com enfoques econômicos,
sociais e políticos, todos os quais se
relacionam com julgamentos éticos.
Assim,
argumenta-se que o inventor é dono do
seu invento, sobre o qual tem um direito de
propriedade natural que deve ser reconhecido
pela sociedade. Ao conceder-se o direito de
exclusividade - que em última análise
implica a patente - o Estado não faz
outra coisa que exercer um ato de justiça
em relação ao proprietário
do invento que o é por direito natural.
A
partir de outro enfoque tem-se pretendido dar
um fundamento ao direito do inventor através
da justiça contratual: o inventor revela
o conteúdo da sua invenção
beneficiando a sociedade com o progresso técnico
e a sociedade, em contrapartida, lhe outorga
o direito à exploração
com exclusividade por um tempo limitado.
Outra
abordagem tem buscado a fonte destes direitos
na teoria do incentivo. A sociedade tem interesse
em desenvolver estas técnicas e, como
incentivo, premia com o direito de patente a
quem as efetiva. Desta forma, a atividade científico-tecnológica
é incentivada pelo Estado através
do conteúdo econômico do direito
do inventor.
Há
uma componente moral em cada uma das construções
elaboradas para justificar estes direitos monopólicos,
em definitivo, o direito de exclusividade do
qual goza o titular de uma patente: é
um monopólio restringido.
Assim,
Moufang, após analisar os diversos fundamentos
pensados em torno dos direitos do inventor,
assinala que é evidente que todos estes
argumentos misturados possuem uma componente
moral ou, ao menos, se apóiam em um patamar
de interesses determinado por julgamentos éticos.
Junto
a estas teorias que pretendem justificar o direito
dos inventores observamos que os denominados
requisitos objetivos de patenteamento, de universal
aceitação no direito de patentes,
também encontram-se determinados por
sólidos fundamentos morais.
Os
requisitos de novidade, mérito inventivo
e aplicação industrial não
só consagram princípios técnicos,
mas também éticos, visto que quem
pretende quebrar o princípio geral de
livre concorrência deve começar
por invocar uma invenção que traga
novidade, que demonstre um esforço intelectual
capaz de permitir o progresso em um campo determinado
do conhecimento e que seja diretamente aplicável
à indústria.
Todos
estes requisitos mostram a conexão entre
o direito de patentes e a ética. As leis
de patentes não são, como alma
vez pôde entender-se, eticamente neutras.
Neste
contexto, existem normativas gerais, tanto na
ordem internacional quanto nos direitos nacionais,
que excluem do objeto de patentes as invenções
contrárias à moral, à ordem
pública ou aos bons costumes. Assim,
no plano hierárquico do atual direito
de propriedade temos a norma do art. 27 b) do
Acordo TRIPS do GATT que autoriza os países
membros a excluir do patenteamento as invenções
cuja exploração comercial em seu
território deva ser impedida necessariamente
para proteger a ordem pública ou a moralidade,
inclusive para proteger a saúde ou a
vida das pessoas ou dos animais ou para preservar
os vegetais ou, ainda, para evitar danos graves
ao meio ambiente.
A
Europa possui um sistema complexo que relaciona
as inovações biotecnológicas
com a ética.
Em
primeiro lugar, há uma regra de amplo
espectro contida no art. 53 a) do CPE que, a
nosso modo de ver, habilita aos órgãos
de concessão de patentes ou, no seu caso,
os tribunais de justiça, a examinar qualquer
patente à luz dos referidos princípios.
Junto
a este dispositivo geral, existem, em matéria
de inovações biotecnológicas,
exclusões particulares fundadas em iguais
princípios, o que reforça o imperativo
do princípio geral ao brindar pressupostos
exemplares.
O
art. 53 a) do CPE citado, estabelece que não
serão concedidas patentes européias
para as invenções cuja publicação
ou exploração seja contrária
à ordem pública ou aos bons costumes.
A
ordem pública pode ser entendida, segundo
assinala Iglesias Prada, como o conjunto de
valores admitido pelo corpo social em geral
que seria transgredido de um modo irreparável
se fosse concedida uma patente sobre uma invenção
determinada.
Os
bons costumes - do mesmo modo que em outros
aspectos gerais do direito -constituem uma categoria
flexível e suficientemente indeterminada
e difusa e permite, a quem julga apreciar, e
do modo que melhor entender, a moralidade da
invenção. Nesta ordem de idéias-
lembra Botana Agra - não se deve perder
de vista que os povos vão criando valores,
acumulando modos e forjando estilos e convicções
que, depuradas pelo tempo, sedimentam-se em
uma tradição de grande conteúdo
ético.
Tudo
isto não provocou questionamentos consideráveis
em tempos anteriores ao surgimento da nova biotecnologia,
já que era inconcebível que um
inventor não percebesse a contradição
da sua solicitação de patentes
com as normas éticas ou com princípios
liminares que regem uma sociedade em um momento
e lugar determinados.
O
tema adquire toda sua força e sua dimensão
quando surgem as primeiras patentes sobre seres
vivos ou material próprio dos seres vivos.
2
– OS TEMAS EM DEBATE
O
fato de se colocar em pauta o patenteamento
de material biológico impacta nossas
sociedades que, mobilizadas em seu conhecimento
técnico e jurídico, também
expressam sua preocupação na esfera
ética.
Ao
transferir-se o debate ao terreno mais específico
do material genético humano, a preocupação
da opinião pública é justificada,
contudo, a fonte desta preocupação
deve ser analisada e claramente exposta.
Diversos
interrogantes esperam uma resposta sensata e
adulta que além dos interesses setoriais
possam aliviar aquela preocupação.
Neste
sentido, cabe perguntar:
·
se a matéria genética pode ser
tratada como uma molécula química,
sem mais explicações;
· se a informação genética
pode ficar no domínio privado, ainda
que por tempo limitado;
· se pode assemelhar-se invenção
à descoberta para o fim de outorgar o
privilégio do patenteamento;
· se é razoável que se
concedam patentes de amplo espectro sobre contribuições
mínimas ao estado da técnica;
· se já desapareceu a distinção
entre pesquisa básica e pesquisa aplicada.
É
compreensível o temor de que o genoma
humano ou aspectos importantes do mesmo passem
ao domínio de grandes empresas ou que
as pesquisas que se realizem no futuro nesta
área tão sensível do conhecimento
se vejam dificultadas ou neutralizadas por aqueles
que tiveram acesso à patentes sobre material
genético humano concedidas sem maiores
cuidados.
É
também compreensível que as sociedades
se alarmem quando diariamente se informa que
centenas ou milhares de seqüências
parciais de DNA humano fazem parte de solicitações
de patentes da indústria privada ou quando
se lê que determinadas empresas negam
o livre acesso à informação
genética contida nas suas bases de genes.
Para
tratar de responder a tudo isto, passaremos
a analisar três temas fundamentais:
a)
a relação invenção-descoberta
neste cenário
b) o princípio da não-comercialização
do corpo humano e suas partes;
c) o livre acesso ao conhecimento do material
genético humano e a vocação
de compartilhar a informação científica.
a)
Descoberta e invenção
O
tema adquire, com o advento das novas tecnologias,
um protagonismo essencial, embora em matéria
de patentes, em geral, a distinção
entre descoberta e invenção tenha
tido uma importância relativa.
Assim,
na Resolução de 25-09-96, do Grupo
Assessor para a Ética e Biotecnologia
da Comissão Européia, relativa
aos aspectos éticos do patenteamento
de invenções que envolvem elementos
de origem humana assinala-se "que a distinção
tradicional entre descoberta (não-patenteável),
e inverição (patenteável),
revela no domínio da biotecnologia uma
dimensão ética parlicular".
"Um
resultado dessa distinção que
os conhecimentos referentes ao corpo humano
ou a seus elementos pertencem ao domínio
das descobertas científicas e não
podem ser patenteados. A este respeito, deve-se
precisar que o. simples conhecimento da estrutura
total ou parcial de um gene não pode
ser objeto de uma patente. "
A
diferença conceitual entre ambas as categorias
parece não oferecer maiores complicações.
A
descoberta científica (à qual,
por si mesma, inclusive lhe faltaria o caráter
da materialidade) - assinala Ascarelli - pode constituir
a premissa da posterior invenção,
mas a tutela concerne a esta e não àquela;
concerne à invenção enquanto
tal, não importando que implique ou não
(como é normal) em nova descoberta. Isto
não é pela maior "importância"
da invenção com relação
à descoberta (pois, a verdade é
justamente o contrário), mas precisamente
porque, dadas as inúmeras invenções
que podem ter como premissa comum a descoberta
científica, uma exclusividade que tivesse
diretamente por objeto a utilização
da descoberta científica ia se converter
em uma carga para o progresso cultural e para
o mesmo progresso técnico que a tutela
da invenção trata de promover.
A
clareza deste esquema parece hoje diluída
pela necessidade de lograr uma maior proteção
na área das pesquisas biotecnológicas,
sob pretexto de um maior nível de investimentos
econômicos por parte das empresas comerciais.
Assistimos,
desta forma, à criação
de uma zona nebulosa entre estas duas categorias
conceituais que, em definitivo, facilita a tendência
cada vez mais difundida de adquirir direitos
de propriedade intelectual sobre simples descobertas,
para reservar grandes áreas de mercados
futuros.
Não
se trata de adaptar conceitos aos novos desafios
da tecnologia, já que tanto em eletrônica,
em química quanto em biotecnologia é
possível diferenciar o que é descoberta
do que é invenção. Trata-se,
simplesmente, de adaptar conceitos já
consolidados a novas exigências econômicas
para poder justificar o que não admite
justificativa nenhuma.
As
entidades de patenteamento outorgam direitos
sobre simples descobertas, com o que não
só se premia a quem não é
"inventor", como também, se
permite outorgar direitos monopólicos
sobre matéria não contida na descrição.
Se a isto se agregar a crescente tendência
a admitir descrições em termos
amplos e abrangentes que conduzem a criar uma
maior confusão em benefício do
titular, poderemos perceber que o panorama da
propriedade industrial em biotecnologia não
é alentador.
As
práticas das entidades nacionais de patentes
encontram-se distorcidas há tempo. Por
trás do mistério de um direito
complexo só reservado a especialistas
- acrescentado de matéria igualmente
complexa - vão sendo desenhadas doutrinas,
decisões administrativas e judiciais
orientadas, somente, para alimentar o apetite
desmedido da indústria alicerçada
na apropriação da informação
genética (a indústria genômica).
Assim,
microorganismos são patenteados, células,
linhas celulares, genes, seqüências
de genes e genomas, todos como patentes de produtos.
Em
relação a este aspecto, o Comitê
Consultivo Nacional de Ética para as
Ciências da Vida e da Saúde da
França, em sua resolução
de 8 de junho próximo passado, especificou
com toda clareza "que o conhecimento da
informação genética, seja
ela portada por um gen, uma seqüência
genética ou a totalidade de um gene,
não é evidentemente patenteável,
mas significa uma descoberta, entanto que é
informação sobre o mundo natural.
É assim que o sangue não pode
ser objeto de patente, mas os anticorpos monoclonais,
os produtos derivados do sangue que constituem
procedimentos inovadores podem sê-lo.
O
mesmo critério pode ser aplicado à
utilização de um gene clonado,
bem caracterizado para produzir uma proteína
recombinante de eficácia biológica
demonstrada ",
Esta ruptura da linha divisória entre
invenção e descoberta causa consideráveis
prejuízos à pesquisa científica,
ao negar-se o fato de que o conhecimento deve
ser livre e acessível a todos,
b)
O princípio de não-comercialização
do corpo humano e suas partes
A
proibição de comercializar o corpo
humano quase parece uma questão trivial
que não gera contradições.
Desde
sempre, e ainda à margem do direito de
propriedade industrial, o princípio de
não-comercialização do
corpo humano tem-se mantido como uma questão
de sendo a exclusão de patenteamento
um derivado natural desta consideração.
O
corpo humano, destacou o Grupo Assessor, nas
diferentes etapas de sua constituição
e desenvolvimento, bem como seus elementos,
não constitui invenção
patenteável. Esta exclusão não
se origina sobre as usuais condições
de patenteamento, mas se inspira no princípio
ético de não-comercialização
do corpo humano.
Esta
proibição - por outro lado - pode
ser incluída na proibição
genérica de patentear objetos contrários
à moral, à ordem pública
e aos bons costumes.
Ao
abordarmos a questão do gen, da seqüência
de um gen, parece que o tema dos "elementos"
do corpo humano torna-se mais complexo. Para
os fins do direito da propriedade industrial,
é possível separar um gen, uma
seqüência parcial ou um poliformismo,
da estrutura total do corpo.
Este
tema - como se pode observar - é de relevante
importância sob o ponto de vista jurídico
e ético.
O
Comitê Consultivo francês afirma
na Resolução acima mencionada,
que "ao se tratar de gene estamos em nível
molecular onde não há sentido
qualificar de humana essa realidade que nos
ocupa ". Não obstante, o gen contém
na sua seqüência elementos determinantes
que são fundamentais no ser humano; sua
relação com o corpo tem, efetivamente,
um significado totalmente diferente do que para
outras moléculas. “Decifrar a informação
contida num gene é abrir a compreensão
do ser vivo e em se tratando de um ser humano,
esta compreensão é Fundamental
para os seres humanos que somos (...) .Como
imaginar que a abordagem de um gene como um
produto banal não se estenderá
a uma célula, um órgão
ou a questões relativas à reprodução?
O que se diga a respeito do gen em relação
à propriedade intelectual, poderia-se
não se tomar cuidado - vulnerabilizar
a regra que coloca o ser humano fora do comércio
" estágio ao qual não se
quer chegar".
A
aplicação dos direitos de propriedade
industrial ao material genético humano
abre, efetivamente, uma via muito preocupante
no plano ético que ameaça instrumentalizar
o ser humano e desintegrar seus elementos componentes
conforme as necessidades do mercado.
Qual
é o limite? Não podemos predizer,
porém, quando uma normativa - como o
caso da Diretiva européia sobre inovações
tecnológicas - autoriza a outorgar patentes
sobre "elementos isolados do corpo".
É justo manifestar a nossa preocupação.
c)
o livre acesso ao conhecimento do genoma humano
e a vocação de compartilhar a
informação genética
Assegurar
o livre acesso aos resultados dos avanços
da pesquisa sobre o genoma constitui um imperativo
ético, visto que se trata de conhecimentos
relativos à pessoa humana estreitamente
relacionados à saúde e ao bem-estar.
Ocultar
tal conhecimento é um ato contrário
ao espírito de colaboração
O livre acesso não só implica
a possibilidade de aceder sem obstáculos
à informação, mas também
de não ter que reconhecer direito econômico
algum para sua utilização.
De
nada vale que seja publicado e difundido o mapa
do genoma, se a posterior utilização
pela comunidade científica da informação
gerada pode ser influenciada ao outorgarem-se
direitos de propriedade intelectual sobre genes
ou seqüências de genes.
O
conhecimento sobre o genoma humano, como foi
assinalado pelo CCNE, está ligado à
natureza do ser humano; neste aspecto fundamental
é necessário que, para o bem-estar
futuro, o mesmo não possa ser apropriado
de forma alguma.
O
mesmo deve estar disponível para a comunidade
de pesquisadores e para a humanidade em seu
conjunto, lembrando que para a Declaração
Universal da UNESCO sobre o Genoma Humano, em
um sentido simbólico, este é um
"patrimônio da humanidade",
Tal
como será observado mais adiante, toda
política de encobrimento ou retalhamento
de informação só pode contribuir
para bloquear o curso de pesquisas prioritárias
para o ser humano. Tal como será observado
mais adiante, toda política de encobrimento
ou retalhamento de informação
só pode contribuir para bloquear o curso
de pesquisas prioritárias para o ser
humano.
A
importância dos horizontes abertos pelo
conhecimento da genética humana fortalece
a necessidade de se compartir conhecimentos.
O conhecimento do gene -lembra o CCNE - não
pode ser preserva-do e cuidado de modo possessivo
pelos países ricos, ainda mais quando
este conhecimento fundou-se a partir da pilhagem
de material genético obtido dos países
mais pobres.
O
conhecimento pertence a todos, a partir das
perspectivas revolucionárias que abre
sobre a compreensão da vida e das doenças.
A
necessidade de compartilhar os benefícios
derivados da pesquisa do genoma como um imperativo
moral tem sido claramente destacada pela Declaração
da Unesco, que recebeu a ratificação
unânime da comunidade internacional. Neste
sentido, o art. 19 estabelece que, no contexto
da cooperação internacional com
os países em desenvolvimento, os estados
deverão se esforçar por tomar
medidas destinadas a fomentar a troca livre
de conhecimentos e informação
científicos nos campos da biologia, da
genética e da medicina.
3
– O PATENTEAMENTO DE GENES E DE SEQÜÊNCIAS
DE GENES NA EUROPA E NOS ESTADOS UNIDOS
O
Escritório Europeu de Patentes (EPO)
considera que os genes devem ser entendidos
como seqüências ordenadas de nucleotídeos,
a saber: o DNA que ocupa um lugar particular
em um cromossomo particular.
Estas
seqüências codificam um produto funcional
específico como uma proteína ou
uma molécula de RNA e, portanto, constitui
uma substância bioquímica gerada
naturalmente. Conforme os critérios de
exame do Escritório, uma substância
encontrada na natureza, tal como a seqüência
de DNA, é patenteável somente
se for isolada do seu entorno e caracterizada
sua estrutura através do método
pelo qual foi obtida ou por outros parâmetros.
Estas
seqüências carecem de novidade para
o Escritório se sua existência
tiver sido reconhecida publicamente antes do
seu registro ou data de prioridade. Isto não
ocorre automaticamente, ainda que integrem um
banco genético acessível ao público.
Segundo
estes critérios, o EPO concedeu um número
considerável de patentes sobre seqüências
de DNA de diversas origens, entre outras, aproximadamente
quinhentas referidas a seqüências
de DNA humano.
O
tema tem sido objeto de especial consideração
pela Diretiva Européia 98/44 relativa
à proteção das invenções
biotecnológicas, que obriga aos estados
membros a ditar, sobre essa matriz, disposições
legais, regulamentares e administrativas harmônicas.
A
primeira questão que cabe destacar é
que a Diretiva, no seu texto e nas considerações
que o precedem, dirige-se a regulamentar invenções
biotecnológicas e não meras descobertas
(arts. 1 e 2 e consid. 8, 13 e 16).
Ao
abordar o tema, o art. 5 dispõe que o
corpo humano, nos diferentes estágios
da sua constituição e seu desenvolvimento,
bem como a simples descoberta de um dos seus
elementos, incluída a seqüência
ou seqüência parcial de um gene,
não poderá constituir invenções
patenteáveis.
O
considerando 16, dispõe enfaticamente
que "o direito de patentes será
exercido respeitando-se os princípios
fundamentais que garantem a dignidade e integridade
das pessoas. É necessário reafirmar
um princípio segundo o qual o corpo humano,
em todos os estágios de sua constituição
e desenvolvimento, incluídas as células
germinais, bem como a simples descoberta de
um dos seus elementos ou de um dos seus produtos,
e a seqüência ou a seqüência
parcial de um gene humano, não é
patenteável; estes princípios
concordam com os critérios de patenteamento
previstos pelo direito de patentes, em virtude
dos quais uma simples descoberta não
pode ser objeto de uma patente ".
Em
relação a este texto, parece que
o art. 5 estabelece um princípio geral
relativo à matéria de patentes
de material genético humano que se alicerça
em inegáveis princípios éticos.
Contudo, à medida que se avança
na análise, tal princípio se dilui.
Excluindo
a análise do corpo humano considerado
na sua integridade, cujo patenteamento soa ridículo
ou absurdo, a possibilidade de patentear seus
elementos enquanto integram funcionalmente o
todo, é inviável.
Efetivamente,
é impossível que o elemento funcional
de um organismo vivo possa burlar os requisitos
objetivos de patenteamento, ao que se deduz
que o primeiro apartado do art. 5 carece de
maior relevância.
A
regra geral, segundo nosso modo de entender,
é a contida no 2° ap. do art. 5 "um
elemento isolado do corpo humano ou obtido de
outro modo mediante um procedimento técnico,
incluída a seqüência total
ou parcial de um gene, poderá considerar-se
como uma invenção patenteável
ainda no caso em que a estrutura de dito elemento
seja idêntica à do elemento natural".
A
seguir, analisemos esta norma.
Admite,
em primeiro lugar, o patenteamento de um elemento
isolado do corpo humano. Qual é o significado
de elemento? Conforme o dicionário da
língua tornamos uma acepção:
fundamento móbil ou parte integrante
de uma coisa.
Neste
caso, um elemento poderia ser um gene, um cromossomo,
uma célula, um órgão, uma
extremidade isolada do corpo humano. Bercovitz
destaca que um elemento isolado do corpo humano
pode ser uma parte significativa do ser humano
e poderia dar lugar a um certo tráfico
de órgãos; além do mais,
muito deveria exigir-se, em termos de qualidade,
como benefício social da invenção
que se pretende proteger com a utilização
de elementos do corpo humano.
Mais
uma vez - acrescenta Bercovitz - as questões
éticas e de ordem pública deveriam
ser levadas em conta de modo relevante pelas
autoridades encarregadas da concessão
de patentes.
A
norma refere-se a "um elemento obtido de
outro modo mediante um procedimento técnico,
incluída a seqüência total
ou parcial de um gene”; enquanto o isolamento
compreende a utilização de técnicas
tradicionais, a "obtenção
mediante um procedimento técnico"
implica na aplicação de técnicas
biotecnológicas.
Abordemos
o gene ou a seqüência parcial de
um gene: entre os "elementos" que
a norma menciona inclui-se a seqüência
ou seqüência parcial de um gene.
Isto
conduz à interrogação sobre
o que é um gene. Sem dúvida, deparamo-nos
a um conceito de difícil definição
que foi abordado de forma diferenciada por vários
biólogos nos seus campos de atuação.
Para
a biologia molecular, um gene é um fragmento
de DNA que especifica a composição
de uma proteína e determina se pode ser
sintetizada.
Para
Oliva, se alguma utilidade pode ter a definição
do gene é aquela de facilitar a comunicação,
e para este fim, é suficiente a definição
do gene como unidade transcricional.
Se
considerarmos a sua composição
- como reiteradamente tem sido feito - podemos
colocá-lo em paridade com uma molécula
química e aplicar-lhe os princípios
que consagram o direito de propriedade industrial
relativo a estas substâncias.
Porém,
existe uma diferença que se torna fundamental
a fim de não provocar confusões
baseadas em uma simplificação:
esta molécula (ou fração
de uma molécula) contém ou é
portadora de uma informação genética
e, o que interessa para os casos das patentes
é esta informação e não
seu suporte material.
Um
gene - assinala Kahn - pode ser sintetizado
quimicamente sem dificuldades a partir dos seus
componentes básicos, ou seja, os nucleotídeos.
Comparando-os com outras moléculas do
mundo biológico, por exemplo, açúcares,
ácido úrico ou uma proteína,
os genes têm uma propriedade complementar
específica: constituem o suporte de um
programa genético. Isto significa que,
em um ambiente apropriado, com a ajuda da máquina
de uma célula viva, o programa impresso
no gene poderá ser lido e executado.
Neste sentido, o gene se comporta como um suporte
de informação qualquer, similar
às bandas magnéticas, discos informáticos
ou videocassetes. A natureza destes suportes
deve ser considerada independentemente da informação
que eles contem.
Deste
modo, as patentes de genes relevam a informação
genética que apresenta o gene. A partir
deste ângulo de abordagem, a seqüência
de um gene pode ser considerada como uma componente
do mundo natural, alheia aos critérios
objetivos de patenteamento.
Se
a estrutura dessa informação (
conjunto de ordens que integram a seqüência
total ou parcial) é idêntica a
de um elemento natural, nos achamos perante
uma descoberta e não de uma invenção.
De
qualquer modo, atendendo à diferenciação
clássica do direito de patentes entre
invenção de produto ou invenção
de processo, o que eventualmente poderia reivindicar-se
como atividade inventiva é o procedimento
que levou a descrever a seqüência,
mas de forma alguma a seqüência enquanto
tal.
Isto
é o que preconiza Bercovitz: "O
problema que aqui se coloca, como em todas as
novas tecnologias e que um dia se colocou para
a química, é se a seqüência
de nucleotídeos deve ser protegida em
si mesma através de patente de produto
ou se, pelo contrário, deve ser protegida
simplesmente como uma patente de procedimento,
o que seria muito mais razoável, visto
que não se sabe se o gene que se protege
hoje para produzir uma proteína, futuramente
não poderá servir para uma outra
função totalmente diferente.
Naturalmente,
se o gene é protegido em si mesmo, essa
segunda função só poderia
dar lugar a uma patente dependente com os inconvenientes
que isto significa. Ninguém estará
interessado em pesquisar sobre um gene já
patenteado porque saberá que a patente
que obtiver será uma patente dependente
e não poderá ser explorada sem
o consentimento do titular de uma patente anterior.
"
A
seqüência de um gene isolado pode
ser idêntica à de um gene no seu
estado natural ou diferir. Neste último
caso, a modificação poderia atender
a um melhor funcionamento do gene no meio em
que atua (bactéria, célula, etc.),
por exemplo, através da técnica
de otimização de códons.
Estas
técnicas são amplamente conhecidas
e de domínio público.
Em
ambos os casos, estamos diante de situações
que não poderiam justificar, de forma
alguma, a concessão de patentes.
Igualmente,
a otimização através da
mudança de promotores ou códons
de terminação com técnicas
de engenharia genética básica,
não significa procedimento inventivo
nenhum.
Se
lermos atentamente a norma, o que estabelece
a mesma é a possibilidade de conceder
uma patente de produto ao "elemento isolado",
com o qual se chega à conclusão
de que contradiz os princípios éticos
considerados funda- mentais pela Diretiva, expressos
no mencionado considerando 16.
Em
síntese, o que está sendo patenteado
como produto é simplesmente uma descoberta.
A seqüência total ou parcial do "elemento"
é a seqüência natural. O inventor
que é premiado com um título de
exclusividade não modificou nada de tal
seqüência.
Ulrich
Schatz, Diretor de Assuntos Internacionais do
EPO, explicando a posição favorável
ao patenteamento de seqüências de
genes, assinala que, embora seja correto, o
seqüenciamento do genoma é mais
uma matéria de descoberta (não-patenteável
e deve diferenciar-se do caso em que a seqüência
de DNA que codifica para uma proteína
particular é isolada do seu meio natural
por meios técnicos e colocada à
disposição da indústria.
Isto
- a critério de Schtaz - completa a passagem
do conhecimento para a prática idônea,
que é central em toda invenção.
Assim - conclui - um gene é "novo"
no sentido dado pela Lei de Patentes, uma vez
que, previamente, não esteve disponível
para o público, i.e" para uso técnico.
Esta
posição é a que permeia
em geral todo assunto biológico da Diretiva
Européia de 1998 nos seus artigos 5.2.
e 3.2. enquanto estabelece que a matéria
biológica isolada do seu entorno natural
ou produzida por meio de um procedimento técnico
pode ser objeto de uma invenção,
ainda que exista anteriormente em estado natural.
Poste
- nesta mesma orientação - argumenta
que as dificuldades do trabalho de descobrir
genes e as técnicas necessárias
para efetivá-Io transformam um achado
em uma invenção. Esta análise,
segundo Davison, contém uma falácia
lógica já que por muito trabalho
que se acrescente não se pode dar o salto
epistemológico que existe entre descoberta
e invenção.É óbvio
que as leis de patentes não podem distorcer
conceitos suficientemente consolidados na linguagem
natural, transformando em invenção
uma simples descoberta.
Nesta
linha de raciocínio, a já mencionada
resolução do CCNE critica a posição
que considera que o isolamento por clonagem
de um gene em particular que permita sua caracterização
põe à disposição
dos pesquisadores um material portador de uma
invenção.
Assinala-se
sobre este aspecto que este raciocínio
pode ser discutido enquanto a clonagem automatizada
de um fragmento de DNA não implica em
nenhuma atividade inventiva. Os procedimentos
se convertem, por outra parte, em perfeitas
correntes e se fosse suficiente o fato de isolar
o gene para sair do domínio da descoberta
e falar de invenção patenteável
não haveria mais espaço, hoje
em dia, para descobertas na área da genética.
Tínhamos
assinalado anteriormente que a simples assimilação
entre os critérios empregados para a
proteção de uma molécula
química - em especial as utilizadas para
fins terapêuticos - e um gene, é,
ao menos, inconsistente.
Na
descoberta de um medicamento com atividade terapêutica
sobre uma doença existe uma dupla invenção:
a molécula considerada em si mesma e
sua utilização terapêutica.
Na
área do genoma este raciocínio
não é válido, visto que
o isolamento do gene (o que equivale à
concepção da molécula química)
não implica uma atividade inventiva.
Esta circunstância por si só nos
deve levar a considerar que essa pretensa assimilação
parte de uma base falsa.
O
isolamento de um gene era, em etapas anteriores
da pesquisa genômica, o resultado de uma
concreta tarefa de pesquisa que se desenvolvia
em torno de um hormônio, uma enzima ou
um receptor para concluir em um gene.
Hoje,
assistimos a uma mudança substancial,
já que o gene pode ser seqiienciado de
forma automática utilizando-se métodos
usuais de domínio público. A atividade
inventiva - conforme ensina Kahn - não
pode residir nessa molécula de DNA que
é o gene.
É
possível, conforme indica o CCNE, reivindicar,
a partir de uma análise informatizada
de uma seqüência genômica,
um campo de utilização muito grande,
que permanece virtual. É freqüente
que esta utilização industrial
se deduza de comparações informatizadas
entre os elementos de seqüência do
gene focalizada na patente e a seqüência
de outros genes ou de genes de organismos modelos
cuja função é conhecida.
As sociedades de seqüenciamento de DNA
têm hoje programas de informática
que lhes permitem realizar automaticamente certas
comparações de seqüências
graças à totalidade das bases
de dados acessíveis e de inferir nelas
os campos de aplicação industrial
que são, em tal caso, "concretamente
expostos". Esta prática confere
uma proteção industrial que cobre
a seqüência de genes, seja ela total
ou parcial.
O
que deve ficar claro é que ao se conceder
uma patente, em nenhum caso a mesma pode reivindicar
a seqüência do gene, a qual deve
estar disponível para a comunidade científica.
Conceder
patente de produtos pela descoberta da seqüência
do gene tem o risco de paralisar a pesquisa
futura que resultaria no conhecimento da verdadeira
atividade biológica da proteína
codificada por esse gene e, conseqüentemente,
na sua utilização pública
ao tratar-se de um medicamento.
Um
princípio fundamental no direito de patentes
é que a proteção concedida
não pode superar a contribuição
efetiva realizada pelo inventor no progresso
da técnica.
Ainda
que, hipoteticamente, consideremos a descoberta
como uma invenção, é totalmente
desproporcional que alguém, que tenha
revelado a seqüência total ou parcial
empregando procedimentos rotineiros de domínio
público, se aproprie da mesma, a partir
de um direito tão amplo e intenso como
o que concede uma patente de invenção
de produto.
Sob
a aparência do respeito aos princípios
morais e à dignidade humana, o que consagra
a Diretiva é um direito de apropriação
da informação genética
brindado pela natureza. O restante é
mera dialética para possibilitar uma
saída política a uma Diretiva
que gerou grandes resistências da sociedade
européia.
Nos
Estados Unidos, a proteção de
patentes para seqüência de genes
é tão somente uma extensão
lógica da bem enraizada prática
de conceder proteção por genes
completos. Isto reflete o enfoque tradicional
de se começar uma atividade conhecida
e se obter o gene que codifica a proteína
que demonstra essa atividade.
Já
foram concedidas 700 patentes nesta área,
incluindo genes importantes para as atividades
comercial e farmacêutica, tais como o
ativador tissular do plasminogêno (TPA),
a eritropoietina, o fator estimulante de colônias
granilocíticas (G-CSF e GM-CSF), o fator
VIII de coagulação e o antígeno
de superfície da hepatite B.
O
valor da informação contida na
seqüência de nucleotídeos
destes genes tem sido reconhecido repetidamente
pelos tribunais americanos.
IV – EFEITOS DAS POLÍTICAS
DE PATENTEAMENTO SOBRE A PESQUISA CIENTÍFICA
Um
dos fundamentos mais sólidos dos Direitos
de Propriedade Industrial sobre as invenções
é o que conduz a premiar o esforço
inovador de modo tal que redunde em benefício
do progresso das técnicas, que em definitivo,
significa um benefício geral para a Humanidade.
Há muito tempo, a Constituição
americana, afirmando estes postulados, outorgou
hierarquia constitucional ao direito do inventor
para promover - segundo expressa o art. 1 da
séc. 8° -"o progresso das artes
úteis".
Até
recentemente, isto não constituiu pauta
de discussão alguma. Ninguém teria
pensado que as políticas legislativas
na área de patentes pudessem interferir
ou neutralizar o progresso das ciências
ou das técnicas.
Hoje, assistimos a um quadro complexo que apresenta
características singulares e que nos
afasta de linhas de pensamento vigentes durante
longos anos. Uma série de fatores tem
se unido para articular este novo cenário.
De
um lado, estamos assistindo a um espetacular
avanço das ciências e da tecnologia.
Este avanço traz profundas conseqüências
econômicas: ciência e tecnologia
transformaram-se em fatores estratégicos
fundamentais para o desenvolvimento econômico
dos países. Hoje, a riqueza dos países
não se encontra tanto na posse de bens
materiais, mas no domínio da ciência
e da tecnologia aplicado à produção.
A
consciência sobre este fato conduz os
estados a priorizarem sua posição
estratégica neste campo. Quem dominar
um ou vários setores da tecnologia terá
vantagens competitivas extraordinárias
em relação aos outros países.
Isto implica uma luta sórdida por ocupar
a liderança e por converter os outros
países em tributários do grau
relativo de desenvolvimento alcançado
em algumas das áreas.
A
luta centralizada no econômico mudou as
regras de jogo na interação Estado,
empresa privada, setor científico e sociedade.
Frutos
desta mudança, implementaram-se políticas
gerais favoráveis ao patenteamento, nos
mais diversos campos do conhecimento, com a
consolidação da defesa dos direitos
de propriedade industrial.
Já
não se trata de um tema que só
compete ao setor industrial – destinatário
natural dos direitos de patentes - visto que
sua administração compromete os
estados e faz parte relevante de suas políticas
econômicas. Por isso, não deve
surpreender que estes direitos tenham adquirido
uma dimensão universal, ocupando uma
posição central nos acordos TRIPS
do GA1T.
A
necessidade de tutela efetiva e hipertrofiada
de tais direitos faz com que sua defesa se traduza
na aplicação de sanções
aos Estados que os violarem.
Particularmente,
no contexto das tecnologias de ponta, a biotecnologia
fez conceber desde um primeiro momento, a necessidade
de dominá-las para efetivar o gozo dos
benefícios de um monopólio sobre
um mercado extremamente relevante no campo econômico.
O
material genético humano se converteu
em matéria-prima essencial para a "indústria
genômica", novo setor da biotecnologia.
Axel Kahn destaca apropriadamente que para poder
produzir energia é necessário
o carvão, o petróleo, o gás
ou o urânio. A indústria metalúrgica
repousa sobre a disponibilidade de minerais
e as biotecnologias, baseadas na engenharia
genética, repousam sobre a disponibilidade
de genes, para aprimorar testes diagnósticos,
produzir proteínas recombinantes de interesse
terapêutico ou encontrar os aspectos que
serão utilizados para a pesquisa de novos
medicamentos. Para tudo isto, são necessários
genes.
O
patenteamento de seqüências de genes,
sem sequer conhecer sua função
ou utilidade, aplica um golpe mortal à
pesquisa, visto que, no futuro, a possibilidade
de pesquisar ou obter alguma invenção
sobre o material patenteado e suas abrangências
- conforme os critérios amplos a partir
dos quais se orientam as entidades de concessão
de patentes - estará totalmente vedada
para outros pesquisadores. Estes se verão
expostos a litígios sobre patentes ou,
no melhor dos casos, obrigados a obter patentes
dependentes que reconhecerão direitos
patrimoniais a quem obtiver essa "reserva
de mercado", à margem e por cima
dos princípios com os quais tradicionalmente
se orientou a propriedade industrial.
Se
o sistema de propriedade industrial funcionasse
corretamente, estaria assegurado o equilíbrio
entre os inovadores e os que, baseando-se na
tarefa destes, produzem novos resultados. Mas,
se os primeiros são premiados com direitos
incorretamente atribuídos em detrimento
dos futuros pesquisadores, a pesquisa científica
corre sério risco de paralisação
por falta de incentivo.
Paradoxalmente,
um sistema que nasceu para o estímulo
da inovação, encontra-se ameaçado
por razão do seu incorreto funcionamento.
Nesta
carreira descontrolada, concedem-se patentes
para evitar que outros o façam (como
se alguém tivesse direito a fazê-lo,
sem observar os limites legais) ou para realizar
reservas de mercado. Parece ridículo
que companhias genômicas solicitem patentes
sobre milhares de seqüências, mas
aqui analisamos a razão.
No
caminho da ciência, as descobertas e as
invenções se consolidaram sobre
invenções e descobertas anteriores.
Há um continuum nesta evolução
que pode ser arbitrariamente cerceado ou cortado,
sem causar um considerável prejuízo
a pesquisas futuras. Isto é muito mais
evidente no campo da pesquisa biológica.
Até
recentemente, o limite entre o que era um instrumento
para a pesquisa e uma invenção
patenteável estava claramente demarcado.
Enquanto um instrumento para a pesquisa devia
ser incorporado livremente ao acervo científico
da humanidade para servir a futuras pesquisas,
uma invenção patenteável
partia de pressupostos indiscutíveis:
ser útil de forma direta e imediata para
satisfazer uma concreta necessidade humana.
Hoje,
a inclusão de verdadeiros instrumentos
de pesquisa à listagem de invenções
patenteáveis nos coloca frente a um tema
sumamente delicado: o cientista que quiser utilizar
esses instrumentos ou ferramentas de pesquisa
para avançar além das fronteiras
da ciência ou da técnica, encontra-se
impedido de fazê-lo ou limitado pela necessidade
de reconhecer direitos patrimoniais sobre sua
utilização, sob pena de ver restringidos
os direitos que lhe poderá conceder uma
autêntica invenção nesse
campo.
Além
do mais - destaca Eisemberg - um projeto de
pesquisa importante irá requerer o acesso
a muitas ferramentas de pesquisa. Se cada uma
dessas ferramentas solicitar uma licença
e o pagamento de beneficios individuais, os
custos administrativos e de trâmites deverão
aumentar rapidamente.
O
acesso a patentes sobre matérias e métodos
que constituem essencialmente ferramentas de
pesquisa despertou preocupação.
Uma quantidade importante de empresas tem estabelecido
programas de licenciamentos sobre métodos
de ensaios e receptores necessários para
a seleção de drogas que são
objetos de pesquisa. A razão desta preocupação
é que a pesquisa em grande escala requer
uma multiplicidade de ferramentas cujo custo
será muito incrementado pela acumulação
de prerrogativas exigidas.
Existe
uma prática comum na biologia contemporânea
que consiste na busca de controle dos meios
necessários para realizar as descobertas.
Diariamente busca-se concessão de patentes
para avanços industriais distanciados
do mercado. Os titulares das patentes assim
conseguidas descansam esperando impedir a ação
de outros cuja labor mais importante oferece
a possibilidade de enriquecer substancialmente
o domínio público. O CCNE francês
destaca que, hoje, assistimos a um aumento de
solicitação de patentes, sem que
a comunidade científica tenha feito uma
clara escolha entre esta competência e
o risco de ver o acesso ao conhecimento fundamental
preso em uma rede de exclusividades passageiras
ou de dependência de patentes concedidas.
Nesta
linha crítica, a organização
HUGO (Human Genome Organization) afirmou que
os contínuos desenvolvimentos da pesquisa
prometem oferecer ainda uma maior quantidade
de informação sobre seqüências,
finalizando com a informação genética
completa de organismos superiores. Contudo,
outras etapas do desenvolvimento biológico,
tais como o conhecimento da função
biológica e o uso dos genes e dos produtos
genéticos no diagnóstico e tratamento
de doenças humanas continuam sendo um
desafio, uma incerteza e necessitam de maior
criatividade.
A
concessão de patentes de amplo espectro
sobre ferramentas de pesquisa se soma a políticas
reiteradas de encobrimento de informação,
fato que indica um momento verdadeiramente desconcertante
de prevalência dos interesses de mercado
sobre a pesquisa científica. Esta evolução
recente - segundo Kanh - revela um perigo mortal
de destruição de um sistema que
tinha permitido o progresso da sociedade ocidental
durante dois séculos, aquele fundamentado
sobre a utilização livre dos conhecimentos
com a finalidade de realizar as pesquisas.
Neste
sentido, a referida resolução
do CCNE denuncia que a concorrência atual
para patenteamento destas pesquisas, excluída
de toda reflexão de conjunto e em desordem,
é perigosa. Para preservar todas as possibilidades
perante um patenteamento cujas regras não
são claras, os pesquisadores são
convidados por seus financiadores a não
serem pródigos demais quanto à
divulgação de informação
e esta situação gera mal-estar
entre eles. Os pesquisadores advertem que o
campo das descobertas, já sigiloso pelas
razões habituais vinculadas à
concorrência, tende a ser cada vez mais
limitado. Conseqüentemente, pode ser que
a privatização do conhecimento
sem maiores regulamentações ameace
bloquear a inoVação.
Sob
o manto da defesa do direito da propriedade
intelectual, está-se desativando paralelamente
a pesquisa sobre o Genoma Humano, retardando
um processo que pode conduzir à cura
das doenças.
Colocar
em risco o futuro da pesquisa científica
em razão dos interesses de mercado não
significa uma política de Estado sadia
nem inteligente.
Durante
os últimos vinte anos, a pesquisa sobre
matéria genética tem dado origem
a uma grande quantidade de "propriedades
intelectuais" submetidas à concessão
de patentes. Contar com esta proteção
brindou, ao titular da patente, a oportunidade
de influenciar significativamente, tanto no
progresso da pesquisa quanto no mercado. E esta
influência por parte do titular da patente
é realmente preocupante.
*
* * * * * *
NOTAS
Texto traduzido do espanhol
por Alejandra Rotania, revisão final
de Fernanda Carneiro.
Jurista. Doutor em Ciências
Jurídicas e Sociais; Titular da Cátedra
de Bioética na Universidade de Buenos
Aires; Professor Titular na Faculdade de Direito
da Universidade de Buenos Aires; Consultor da
UNESCO.
Moufang, R. Patenting of
Human Genes, cells, and parts of the body?,
II C, V. 25 no4, p. 487.
Moufang, R. The Concept
of Ordre Public and Morality. In Patent Law,
Bruylant, Bruxelas: Van Overwalle (Ed.) Patent
Law and Biotechnology, 1998, p. 68.
Moufang, R. Patenting,
cit.
Penrose, E. La Economia
del Sistema Internacional de Patentes. Siglo
XXI, México: 1974, p. 54.
Penrose, E. op cit., pag.
34
Moufang, R. Patenting,
Op cit.
Crespi, E. Biotechnoly,
Patents and Morality and TIB TECH, Abril de
1997, vol. 15.
Iglesias Prada, J .L.
La protección Jurídica de los
Descubrimientos Genéticos y EI Proyecto
Genoma Humano Madrid: Edit. Civitas, 1995, p.
82.
Bottana, Agra M. Buenas
Costumbres y Patentes. Estudios Sobre Derecho
Industrial en Homenaje a H. Bylos, Barcelona:
1992.
Knoppers, B. e outros (Ed.):
Legal Rigths and Human Genetic Material. Toronto:
Edit Montgomery, 1996, pag. 117.
European Commission, SEC/9332/98,
pag. 73.
Ascarelli, T. Teoria de
la Concurrencia y de los Bienes Inmateriales,
Barcelona: Bosch 1970, p. 495.
Ascarelli, T. op. cit.
AVIS No 64 sur I'avant-projet
de loi portant transposition, dans le Code la
Proprieté Intellectuelle de la Directive
.98/44/CE du Parlement Européen et du
Conseil, en date du 6 juillet 1998, relative
a la protection juridique des inventions biotechnologiques.
Bergel, S. D. Patentamiento
dei cuerpo humano y partes dei mismo, em Biotecnología
y Derecho Edit. Ciudad Argentina, Buenos Aires:
1997, pag. 61.
CCNE, Avis no 64, cit.
Adverte-se que para várias
legislações, entre elas, a dos
EUA, existe um período de tolerância
que possibilita solicitar a patente sobre uma
invenção no contexto do ano em
que se tornou pública
CCNE, Avis n° 64, cit.
CCNE, Avis n° 64, cit.
"Straus, J. Intellectual
Property Right in Human Genom Research. The
U.S. and European Approach - Commun Problerns.
Different Solutions? In the GAAC 4th Public
Symposium "The Cbanging Character, Use
and Protection of Intellectual Property; Washington
DC, December 3-4, 1998.
O autor refere-se ao espanhol.
Bercovitz, A. Acceso y
Alcance de la Protección Legal de Ias
Invenciones Biotecnológicas, in: Los
Retos de la Propriedad Industrial en el Siglo
XXI. Lima: Indecopi 1996, p. 77.
Hubbard, R. Wald, E. EI
Mito del Gen. Madrid: Alianza Edit 1999, p.
44.
Oliva, R. Genoma Humano,
Barcelona: Edit. Masson, 1996, p. 18.
Kahn, A. Et I’Homme
dans Tout ça? Paris: Nil Edit., 2000,
p. 288.
Bercovitz, A. op. cit.
Schatz, Ulrich. Patentability
of Genetic Engineering Inventions In European
Patent Office Practice, IIC, 1998 p. 2.
Cit. em Cela Conde, C.:
Genes Causas y Patentes em Revista del Derecho
y Genoma Humano n° 6/97 p. 169.
CCNE, Avis No 64, cit.
Bergel S.D. Patentamiento
de Genes y Secuencias de Genes In Revista del
Derecho y Genoma Humano n° 8/98 p. 31.
Kahn, A. lnstitute The
France, Academie The Sciences. La Proprieté
lntellectuelle dans le Domain du Vivant, Paris:
Technic et Docurnentation, 1995, p. 261.
Os efeitos de tal aproximação
têm sido recentemente ilustrados com o
exemplo do gene CCR5, obtido por seqüenciamento
sistemático aleatório de cópias
de DNA mensageiro; este gene codifica um receptor
de membrana de tipo específico. A seqüência
tem sido integrada a urna patente que reivindica
toda a utilização deste receptor.
Anos depois, pesquisas acadêmicas demonstraram
que a proteína CCR5 é um co-receptor
do vírus do HIV, indispensável
para sua penetração intracelular.
Apesar do caráter fundamental destes
últimos trabalhos, todo desenvolvimento
terapêutico baseado na utilização
do CCR5 como alvo de medicamento poderia ser
dependente da patente inicial (CCNE, Avis no
64, cit.).
Kahn, A. em Instiute, cit.
Murashige, K. Patenting
and Ownership of Gens and Life Forms, In International
Business lawyers, March 2000, Vol. 28 no 3.
Kahn, A. Et I’homme
Op. cit.
Eisemberg, R. Biotechnology,
Science Engineering, and Ethical Cbanges for
21st Century, Washington: Joseph Henri, Press,
1996, p.161.
EISEMBERG, R. Structure
and Function in Gene Patenting. Nature Genetics,
Vol. 15, February 1997, p. 125.
Kahn, A. Et l’Homme.
Op. cit.
CCNE, Avis no 64, op.
cit.
Murashige, K. Op. cit.