LIMITE

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A SITUAÇÃO LIMITE DO SISTEMA DE PATENTES: EM DEFESA DA DIGNIDADE DAS INVENÇÕES HUMANAS NO CAMPO DA BIOTECNOLOGIA[1]
Salvador D. Bergel [2]

INTRODUÇÃO: DUAS QUESTÕES PRÉVIAS A RESPONDER

Abordar o tema do patenteamento do material genético humano no plano ético e jurídico é importante para responder a duas questões prévias:

a) se é possível universalizar o debate, tomando em consideração o caráter nacional das normativas vinculadas aos direitos de propriedade industrial;
b) se existem vínculos entre o direito de patentes e a ética.

Vamos ao encontro da primeira questão.

Não podemos deixar de considerar que nos movemos dentro de uma ordem normativa concreta (o direito de patentes). Esta ordem normativa - tanto no plano descritivo quanto conceitual - é particular para cada país em razão de que existe o direito de propriedade industrial como direito interno.

Em princípio, isto impossibilitaria continuar com o nosso objetivo, visto que teríamos um cenário em cada país, o que nos impediria obter conclusões gerais ao buscarmos soluções para os múltiplos problemas éticos que traz o patenteamento nas novas biotecnologias - em geral - e na pesquisa sobre o Genoma Humano, em particular.

Mas o caso é que os dados da realidade nos conduzem a outros caminhos. Em primeiro lugar, porque - por feliz coincidência - o núcleo central da disciplina normativa conformado pelos denominados, em doutrina, requisitos objetivos de patenteamento, assim como as exclusões de patenteamento, se reiteram através dos diversos sistemas jurídicos, adquirindo, desta forma, características de universabilidade.

Assim, com respeito aos requisitos objetivos de patenteabilidade, a novidade da invenção, a necessária utilidade industrial e o mérito inventivo - traduzido na real contribuição ao estado da técnica - constituem, com mínimas diferenças, pressupostos gerais para a concessão de patentes em todos os países.

Adicionam-se a esta importante base, as tentativas parciais ou gerais de harmonização da matéria na ordem internacional que reafirmam a primazia de ditos princípios básicos. Neste sentido, o Convênio da Patente Européia (CPE) e a recente Diretiva sobre a proteção das inovações biotecnológicas.

Fortalecendo este aspecto, lembro o acordo TRIPs do GATT (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Industrial Relacionados ao Comércio). Este acordo, incorpora, pela primeira vez na história, em um tratado sobre Comércio Internacional, um capítulo sobre a observância de direitos intelectuais, um de cujos componentes é precisamente o de Propriedade Industrial que, na prática, universaliza seus conteúdos básicos.

Em relação a este aspecto, estabelece: "as patentes poderão ser obtidas para todas as invenções, sejam elas de produtos ou de procedimentos em todos os campos da tecnologia desde que sejam novas, contenham uma atividade inventiva e sejam suscetíveis de aplicação industrial" (art. 27.1).

Tudo isto sustenta a idéia de tratar o sistema de patentes como um sistema universal permitindo que se possam emitir a seu respeito julgamentos comuns, sem prejuízo de considerar os detalhes particulares que matizam os regimes nacionais ou comunitários.

A segunda questão que devemos tratar de compreender é que vínculo relaciona os direitos de patentes com a ética.

De um ponto de vista geral, toda lei, toda norma jurídica pode e deve estar vinculada à ética. O direito, sem dúvida, como sistema normativo que ordena uma sociedade, deve expressar, ou estar fundado, em princípios morais. A adesão aos valores da lei - ensina Moufang - significa que geralmente as justificativas das normas e as decisões legais estão pensadas, ou ao menos relacionadas a princípios e argumentos baseados na moral.[3]

Esta compreensão ampla é aplicável aos sistemas normativos particulares, tais como aquele que aqui nos interessa. As considerações baseadas em fatores ético-legais, permeiam toda a estrutura normativa do sistema de patentes e jogam um papel decisivo no seu posterior desenvolvimento previsto pela legislação e a jurisprudência.[4]

É bem verdade que a moral e as regras legais pertencem a círculos que se entrecruzam e não existe uma antinomia geral entre elas. Por esta razão, a inter-relação entre ética e lei de patentes não pode ser reduzida à aplicação de uma previsão específica e exclusiva.

Além destas considerações, é necessário enfatizar que os argumentos bioéticos específicos também ocupam um lugar dentro do sistema de patentes e influem nas limitações sobre patenteamento e no alcance da proteção. Também constituem o pano de fundo para a aplicação de medidas especiais para salvaguardar interesses públicos (por exemplo, licenças obrigatórias) e podem determinar de muitas maneiras, a interpretação das categorias gerais na lei de patentes.[5]

Nesta mesma direção, podemos destacar algumas circunstâncias complementares que avalizam a relação com a ética. Deste modo:

Existem diversas teorias dirigidas a justificar o sistema de patentes (criação legislativa por princípio), com enfoques econômicos, sociais e políticos, todos os quais se relacionam com julgamentos éticos.

Assim, argumenta-se que o inventor é dono do seu invento, sobre o qual tem um direito de propriedade natural que deve ser reconhecido pela sociedade. Ao conceder-se o direito de exclusividade - que em última análise implica a patente - o Estado não faz outra coisa que exercer um ato de justiça em relação ao proprietário do invento que o é por direito natural.[6]

A partir de outro enfoque tem-se pretendido dar um fundamento ao direito do inventor através da justiça contratual: o inventor revela o conteúdo da sua invenção beneficiando a sociedade com o progresso técnico e a sociedade, em contrapartida, lhe outorga o direito à exploração com exclusividade por um tempo limitado.

Outra abordagem tem buscado a fonte destes direitos na teoria do incentivo. A sociedade tem interesse em desenvolver estas técnicas e, como incentivo, premia com o direito de patente a quem as efetiva. Desta forma, a atividade científico-tecnológica é incentivada pelo Estado através do conteúdo econômico do direito do inventor.[7]

Há uma componente moral em cada uma das construções elaboradas para justificar estes direitos monopólicos, em definitivo, o direito de exclusividade do qual goza o titular de uma patente: é um monopólio restringido.

Assim, Moufang, após analisar os diversos fundamentos pensados em torno dos direitos do inventor, assinala que é evidente que todos estes argumentos misturados possuem uma componente moral ou, ao menos, se apóiam em um patamar de interesses determinado por julgamentos éticos.[8]

Junto a estas teorias que pretendem justificar o direito dos inventores observamos que os denominados requisitos objetivos de patenteamento, de universal aceitação no direito de patentes, também encontram-se determinados por sólidos fundamentos morais.

Os requisitos de novidade, mérito inventivo e aplicação industrial não só consagram princípios técnicos, mas também éticos, visto que quem pretende quebrar o princípio geral de livre concorrência deve começar por invocar uma invenção que traga novidade, que demonstre um esforço intelectual capaz de permitir o progresso em um campo determinado do conhecimento e que seja diretamente aplicável à indústria.

Todos estes requisitos mostram a conexão entre o direito de patentes e a ética. As leis de patentes não são, como alma vez pôde entender-se, eticamente neutras.[9]

Neste contexto, existem normativas gerais, tanto na ordem internacional quanto nos direitos nacionais, que excluem do objeto de patentes as invenções contrárias à moral, à ordem pública ou aos bons costumes. Assim, no plano hierárquico do atual direito de propriedade temos a norma do art. 27 b) do Acordo TRIPS do GATT que autoriza os países membros a excluir do patenteamento as invenções cuja exploração comercial em seu território deva ser impedida necessariamente para proteger a ordem pública ou a moralidade, inclusive para proteger a saúde ou a vida das pessoas ou dos animais ou para preservar os vegetais ou, ainda, para evitar danos graves ao meio ambiente.

A Europa possui um sistema complexo que relaciona as inovações biotecnológicas com a ética.

Em primeiro lugar, há uma regra de amplo espectro contida no art. 53 a) do CPE que, a nosso modo de ver, habilita aos órgãos de concessão de patentes ou, no seu caso, os tribunais de justiça, a examinar qualquer patente à luz dos referidos princípios.

Junto a este dispositivo geral, existem, em matéria de inovações biotecnológicas, exclusões particulares fundadas em iguais princípios, o que reforça o imperativo do princípio geral ao brindar pressupostos exemplares.

O art. 53 a) do CPE citado, estabelece que não serão concedidas patentes européias para as invenções cuja publicação ou exploração seja contrária à ordem pública ou aos bons costumes.

A ordem pública pode ser entendida, segundo assinala Iglesias Prada, como o conjunto de valores admitido pelo corpo social em geral que seria transgredido de um modo irreparável se fosse concedida uma patente sobre uma invenção determinada.[10]

Os bons costumes - do mesmo modo que em outros aspectos gerais do direito -constituem uma categoria flexível e suficientemente indeterminada e difusa e permite, a quem julga apreciar, e do modo que melhor entender, a moralidade da invenção. Nesta ordem de idéias- lembra Botana Agra - não se deve perder de vista que os povos vão criando valores, acumulando modos e forjando estilos e convicções que, depuradas pelo tempo, sedimentam-se em uma tradição de grande conteúdo ético.[11]

Tudo isto não provocou questionamentos consideráveis em tempos anteriores ao surgimento da nova biotecnologia, já que era inconcebível que um inventor não percebesse a contradição da sua solicitação de patentes com as normas éticas ou com princípios liminares que regem uma sociedade em um momento e lugar determinados.

O tema adquire toda sua força e sua dimensão quando surgem as primeiras patentes sobre seres vivos ou material próprio dos seres vivos.

2 – OS TEMAS EM DEBATE

O fato de se colocar em pauta o patenteamento de material biológico impacta nossas sociedades que, mobilizadas em seu conhecimento técnico e jurídico, também expressam sua preocupação na esfera ética.

Ao transferir-se o debate ao terreno mais específico do material genético humano, a preocupação da opinião pública é justificada, contudo, a fonte desta preocupação deve ser analisada e claramente exposta.[12]

Diversos interrogantes esperam uma resposta sensata e adulta que além dos interesses setoriais possam aliviar aquela preocupação.

Neste sentido, cabe perguntar:

· se a matéria genética pode ser tratada como uma molécula química, sem mais explicações;
· se a informação genética pode ficar no domínio privado, ainda que por tempo limitado;
· se pode assemelhar-se invenção à descoberta para o fim de outorgar o privilégio do patenteamento;
· se é razoável que se concedam patentes de amplo espectro sobre contribuições mínimas ao estado da técnica;
· se já desapareceu a distinção entre pesquisa básica e pesquisa aplicada.

É compreensível o temor de que o genoma humano ou aspectos importantes do mesmo passem ao domínio de grandes empresas ou que as pesquisas que se realizem no futuro nesta área tão sensível do conhecimento se vejam dificultadas ou neutralizadas por aqueles que tiveram acesso à patentes sobre material genético humano concedidas sem maiores cuidados.

É também compreensível que as sociedades se alarmem quando diariamente se informa que centenas ou milhares de seqüências parciais de DNA humano fazem parte de solicitações de patentes da indústria privada ou quando se lê que determinadas empresas negam o livre acesso à informação genética contida nas suas bases de genes.

Para tratar de responder a tudo isto, passaremos a analisar três temas fundamentais:

a) a relação invenção-descoberta neste cenário
b) o princípio da não-comercialização do corpo humano e suas partes;
c) o livre acesso ao conhecimento do material genético humano e a vocação de compartilhar a informação científica.

a) Descoberta e invenção

O tema adquire, com o advento das novas tecnologias, um protagonismo essencial, embora em matéria de patentes, em geral, a distinção entre descoberta e invenção tenha tido uma importância relativa.

Assim, na Resolução de 25-09-96, do Grupo Assessor para a Ética e Biotecnologia da Comissão Européia, relativa aos aspectos éticos do patenteamento de invenções que envolvem elementos de origem humana assinala-se "que a distinção tradicional entre descoberta (não-patenteável), e inverição (patenteável), revela no domínio da biotecnologia uma dimensão ética parlicular".

"Um resultado dessa distinção que os conhecimentos referentes ao corpo humano ou a seus elementos pertencem ao domínio das descobertas científicas e não podem ser patenteados. A este respeito, deve-se precisar que o. simples conhecimento da estrutura total ou parcial de um gene não pode ser objeto de uma patente. "[13]

A diferença conceitual entre ambas as categorias parece não oferecer maiores complicações.

A descoberta científica (à qual, por si mesma, inclusive lhe faltaria o caráter da materialidade) - assinala Ascarelli[14] - pode constituir a premissa da posterior invenção, mas a tutela concerne a esta e não àquela; concerne à invenção enquanto tal, não importando que implique ou não (como é normal) em nova descoberta. Isto não é pela maior "importância" da invenção com relação à descoberta (pois, a verdade é justamente o contrário), mas precisamente porque, dadas as inúmeras invenções que podem ter como premissa comum a descoberta científica, uma exclusividade que tivesse diretamente por objeto a utilização da descoberta científica ia se converter em uma carga para o progresso cultural e para o mesmo progresso técnico que a tutela da invenção trata de promover.[15]

A clareza deste esquema parece hoje diluída pela necessidade de lograr uma maior proteção na área das pesquisas biotecnológicas, sob pretexto de um maior nível de investimentos econômicos por parte das empresas comerciais.

Assistimos, desta forma, à criação de uma zona nebulosa entre estas duas categorias conceituais que, em definitivo, facilita a tendência cada vez mais difundida de adquirir direitos de propriedade intelectual sobre simples descobertas, para reservar grandes áreas de mercados futuros.

Não se trata de adaptar conceitos aos novos desafios da tecnologia, já que tanto em eletrônica, em química quanto em biotecnologia é possível diferenciar o que é descoberta do que é invenção. Trata-se, simplesmente, de adaptar conceitos já consolidados a novas exigências econômicas para poder justificar o que não admite justificativa nenhuma.

As entidades de patenteamento outorgam direitos sobre simples descobertas, com o que não só se premia a quem não é "inventor", como também, se permite outorgar direitos monopólicos sobre matéria não contida na descrição. Se a isto se agregar a crescente tendência a admitir descrições em termos amplos e abrangentes que conduzem a criar uma maior confusão em benefício do titular, poderemos perceber que o panorama da propriedade industrial em biotecnologia não é alentador.

As práticas das entidades nacionais de patentes encontram-se distorcidas há tempo. Por trás do mistério de um direito complexo só reservado a especialistas - acrescentado de matéria igualmente complexa - vão sendo desenhadas doutrinas, decisões administrativas e judiciais orientadas, somente, para alimentar o apetite desmedido da indústria alicerçada na apropriação da informação genética (a indústria genômica).

Assim, microorganismos são patenteados, células, linhas celulares, genes, seqüências de genes e genomas, todos como patentes de produtos.

Em relação a este aspecto, o Comitê Consultivo Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde da França, em sua resolução de 8 de junho próximo passado, especificou com toda clareza "que o conhecimento da informação genética, seja ela portada por um gen, uma seqüência genética ou a totalidade de um gene, não é evidentemente patenteável, mas significa uma descoberta, entanto que é informação sobre o mundo natural. É assim que o sangue não pode ser objeto de patente, mas os anticorpos monoclonais, os produtos derivados do sangue que constituem procedimentos inovadores podem sê-lo.

O mesmo critério pode ser aplicado à utilização de um gene clonado, bem caracterizado para produzir uma proteína recombinante de eficácia biológica demonstrada ",[16]
Esta ruptura da linha divisória entre invenção e descoberta causa consideráveis prejuízos à pesquisa científica, ao negar-se o fato de que o conhecimento deve ser livre e acessível a todos,

b) O princípio de não-comercialização do corpo humano e suas partes

A proibição de comercializar o corpo humano quase parece uma questão trivial que não gera contradições.

Desde sempre, e ainda à margem do direito de propriedade industrial, o princípio de não-comercialização do corpo humano tem-se mantido como uma questão de sendo a exclusão de patenteamento um derivado natural desta consideração.

O corpo humano, destacou o Grupo Assessor, nas diferentes etapas de sua constituição e desenvolvimento, bem como seus elementos, não constitui invenção patenteável. Esta exclusão não se origina sobre as usuais condições de patenteamento, mas se inspira no princípio ético de não-comercialização do corpo humano.

Esta proibição - por outro lado - pode ser incluída na proibição genérica de patentear objetos contrários à moral, à ordem pública e aos bons costumes.[17]

Ao abordarmos a questão do gen, da seqüência de um gen, parece que o tema dos "elementos" do corpo humano torna-se mais complexo. Para os fins do direito da propriedade industrial, é possível separar um gen, uma seqüência parcial ou um poliformismo, da estrutura total do corpo.

Este tema - como se pode observar - é de relevante importância sob o ponto de vista jurídico e ético.

O Comitê Consultivo francês afirma na Resolução acima mencionada, que "ao se tratar de gene estamos em nível molecular onde não há sentido qualificar de humana essa realidade que nos ocupa ". Não obstante, o gen contém na sua seqüência elementos determinantes que são fundamentais no ser humano; sua relação com o corpo tem, efetivamente, um significado totalmente diferente do que para outras moléculas. “Decifrar a informação contida num gene é abrir a compreensão do ser vivo e em se tratando de um ser humano, esta compreensão é Fundamental para os seres humanos que somos (...) .Como imaginar que a abordagem de um gene como um produto banal não se estenderá a uma célula, um órgão ou a questões relativas à reprodução? O que se diga a respeito do gen em relação à propriedade intelectual, poderia-se não se tomar cuidado - vulnerabilizar a regra que coloca o ser humano fora do comércio " estágio ao qual não se quer chegar".[18]

A aplicação dos direitos de propriedade industrial ao material genético humano abre, efetivamente, uma via muito preocupante no plano ético que ameaça instrumentalizar o ser humano e desintegrar seus elementos componentes conforme as necessidades do mercado.

Qual é o limite? Não podemos predizer, porém, quando uma normativa - como o caso da Diretiva européia sobre inovações tecnológicas - autoriza a outorgar patentes sobre "elementos isolados do corpo". É justo manifestar a nossa preocupação.

c) o livre acesso ao conhecimento do genoma humano e a vocação de compartilhar a informação genética

Assegurar o livre acesso aos resultados dos avanços da pesquisa sobre o genoma constitui um imperativo ético, visto que se trata de conhecimentos relativos à pessoa humana estreitamente relacionados à saúde e ao bem-estar.

Ocultar tal conhecimento é um ato contrário ao espírito de colaboração O livre acesso não só implica a possibilidade de aceder sem obstáculos à informação, mas também de não ter que reconhecer direito econômico algum para sua utilização.

De nada vale que seja publicado e difundido o mapa do genoma, se a posterior utilização pela comunidade científica da informação gerada pode ser influenciada ao outorgarem-se direitos de propriedade intelectual sobre genes ou seqüências de genes.[19]

O conhecimento sobre o genoma humano, como foi assinalado pelo CCNE, está ligado à natureza do ser humano; neste aspecto fundamental é necessário que, para o bem-estar futuro, o mesmo não possa ser apropriado de forma alguma.

O mesmo deve estar disponível para a comunidade de pesquisadores e para a humanidade em seu conjunto, lembrando que para a Declaração Universal da UNESCO sobre o Genoma Humano, em um sentido simbólico, este é um "patrimônio da humanidade",[20]

Tal como será observado mais adiante, toda política de encobrimento ou retalhamento de informação só pode contribuir para bloquear o curso de pesquisas prioritárias para o ser humano. Tal como será observado mais adiante, toda política de encobrimento ou retalhamento de informação só pode contribuir para bloquear o curso de pesquisas prioritárias para o ser humano.

A importância dos horizontes abertos pelo conhecimento da genética humana fortalece a necessidade de se compartir conhecimentos. O conhecimento do gene -lembra o CCNE - não pode ser preserva-do e cuidado de modo possessivo pelos países ricos, ainda mais quando este conhecimento fundou-se a partir da pilhagem de material genético obtido dos países mais pobres.

O conhecimento pertence a todos, a partir das perspectivas revolucionárias que abre sobre a compreensão da vida e das doenças.[21]

A necessidade de compartilhar os benefícios derivados da pesquisa do genoma como um imperativo moral tem sido claramente destacada pela Declaração da Unesco, que recebeu a ratificação unânime da comunidade internacional. Neste sentido, o art. 19 estabelece que, no contexto da cooperação internacional com os países em desenvolvimento, os estados deverão se esforçar por tomar medidas destinadas a fomentar a troca livre de conhecimentos e informação científicos nos campos da biologia, da genética e da medicina.

3 – O PATENTEAMENTO DE GENES E DE SEQÜÊNCIAS DE GENES NA EUROPA E NOS ESTADOS UNIDOS

O Escritório Europeu de Patentes (EPO) considera que os genes devem ser entendidos como seqüências ordenadas de nucleotídeos, a saber: o DNA que ocupa um lugar particular em um cromossomo particular.

Estas seqüências codificam um produto funcional específico como uma proteína ou uma molécula de RNA e, portanto, constitui uma substância bioquímica gerada naturalmente. Conforme os critérios de exame do Escritório, uma substância encontrada na natureza, tal como a seqüência de DNA, é patenteável somente se for isolada do seu entorno e caracterizada sua estrutura através do método pelo qual foi obtida ou por outros parâmetros.

Estas seqüências carecem de novidade para o Escritório se sua existência tiver sido reconhecida publicamente antes do seu registro ou data de prioridade. Isto não ocorre automaticamente, ainda que integrem um banco genético acessível ao público.

Segundo estes critérios, o EPO concedeu um número considerável de patentes sobre seqüências de DNA de diversas origens, entre outras, aproximadamente quinhentas referidas a seqüências de DNA humano.[22]

O tema tem sido objeto de especial consideração pela Diretiva Européia 98/44 relativa à proteção das invenções biotecnológicas, que obriga aos estados membros a ditar, sobre essa matriz, disposições legais, regulamentares e administrativas harmônicas.

A primeira questão que cabe destacar é que a Diretiva, no seu texto e nas considerações que o precedem, dirige-se a regulamentar invenções biotecnológicas e não meras descobertas (arts. 1 e 2 e consid. 8, 13 e 16).

Ao abordar o tema, o art. 5 dispõe que o corpo humano, nos diferentes estágios da sua constituição e seu desenvolvimento, bem como a simples descoberta de um dos seus elementos, incluída a seqüência ou seqüência parcial de um gene, não poderá constituir invenções patenteáveis.

O considerando 16, dispõe enfaticamente que "o direito de patentes será exercido respeitando-se os princípios fundamentais que garantem a dignidade e integridade das pessoas. É necessário reafirmar um princípio segundo o qual o corpo humano, em todos os estágios de sua constituição e desenvolvimento, incluídas as células germinais, bem como a simples descoberta de um dos seus elementos ou de um dos seus produtos, e a seqüência ou a seqüência parcial de um gene humano, não é patenteável; estes princípios concordam com os critérios de patenteamento previstos pelo direito de patentes, em virtude dos quais uma simples descoberta não pode ser objeto de uma patente ".

Em relação a este texto, parece que o art. 5 estabelece um princípio geral relativo à matéria de patentes de material genético humano que se alicerça em inegáveis princípios éticos. Contudo, à medida que se avança na análise, tal princípio se dilui.

Excluindo a análise do corpo humano considerado na sua integridade, cujo patenteamento soa ridículo ou absurdo, a possibilidade de patentear seus elementos enquanto integram funcionalmente o todo, é inviável.

Efetivamente, é impossível que o elemento funcional de um organismo vivo possa burlar os requisitos objetivos de patenteamento, ao que se deduz que o primeiro apartado do art. 5 carece de maior relevância.

A regra geral, segundo nosso modo de entender, é a contida no 2° ap. do art. 5 "um elemento isolado do corpo humano ou obtido de outro modo mediante um procedimento técnico, incluída a seqüência total ou parcial de um gene, poderá considerar-se como uma invenção patenteável ainda no caso em que a estrutura de dito elemento seja idêntica à do elemento natural".

A seguir, analisemos esta norma.

Admite, em primeiro lugar, o patenteamento de um elemento isolado do corpo humano. Qual é o significado de elemento? Conforme o dicionário da língua[23] tornamos uma acepção: fundamento móbil ou parte integrante de uma coisa.

Neste caso, um elemento poderia ser um gene, um cromossomo, uma célula, um órgão, uma extremidade isolada do corpo humano. Bercovitz destaca que um elemento isolado do corpo humano pode ser uma parte significativa do ser humano e poderia dar lugar a um certo tráfico de órgãos; além do mais, muito deveria exigir-se, em termos de qualidade, como benefício social da invenção que se pretende proteger com a utilização de elementos do corpo humano.[24]

Mais uma vez - acrescenta Bercovitz - as questões éticas e de ordem pública deveriam ser levadas em conta de modo relevante pelas autoridades encarregadas da concessão de patentes.

A norma refere-se a "um elemento obtido de outro modo mediante um procedimento técnico, incluída a seqüência total ou parcial de um gene”; enquanto o isolamento compreende a utilização de técnicas tradicionais, a "obtenção mediante um procedimento técnico" implica na aplicação de técnicas biotecnológicas.

Abordemos o gene ou a seqüência parcial de um gene: entre os "elementos" que a norma menciona inclui-se a seqüência ou seqüência parcial de um gene.

Isto conduz à interrogação sobre o que é um gene. Sem dúvida, deparamo-nos a um conceito de difícil definição que foi abordado de forma diferenciada por vários biólogos nos seus campos de atuação.

Para a biologia molecular, um gene é um fragmento de DNA que especifica a composição de uma proteína e determina se pode ser sintetizada.[25]

Para Oliva, se alguma utilidade pode ter a definição do gene é aquela de facilitar a comunicação, e para este fim, é suficiente a definição do gene como unidade transcricional.[26]

Se considerarmos a sua composição - como reiteradamente tem sido feito - podemos colocá-lo em paridade com uma molécula química e aplicar-lhe os princípios que consagram o direito de propriedade industrial relativo a estas substâncias.

Porém, existe uma diferença que se torna fundamental a fim de não provocar confusões baseadas em uma simplificação: esta molécula (ou fração de uma molécula) contém ou é portadora de uma informação genética e, o que interessa para os casos das patentes é esta informação e não seu suporte material.

Um gene - assinala Kahn - pode ser sintetizado quimicamente sem dificuldades a partir dos seus componentes básicos, ou seja, os nucleotídeos. Comparando-os com outras moléculas do mundo biológico, por exemplo, açúcares, ácido úrico ou uma proteína, os genes têm uma propriedade complementar específica: constituem o suporte de um programa genético. Isto significa que, em um ambiente apropriado, com a ajuda da máquina de uma célula viva, o programa impresso no gene poderá ser lido e executado. Neste sentido, o gene se comporta como um suporte de informação qualquer, similar às bandas magnéticas, discos informáticos ou videocassetes. A natureza destes suportes deve ser considerada independentemente da informação que eles contem.[27]

Deste modo, as patentes de genes relevam a informação genética que apresenta o gene. A partir deste ângulo de abordagem, a seqüência de um gene pode ser considerada como uma componente do mundo natural, alheia aos critérios objetivos de patenteamento.

Se a estrutura dessa informação ( conjunto de ordens que integram a seqüência total ou parcial) é idêntica a de um elemento natural, nos achamos perante uma descoberta e não de uma invenção.

De qualquer modo, atendendo à diferenciação clássica do direito de patentes entre invenção de produto ou invenção de processo, o que eventualmente poderia reivindicar-se como atividade inventiva é o procedimento que levou a descrever a seqüência, mas de forma alguma a seqüência enquanto tal.

Isto é o que preconiza Bercovitz: "O problema que aqui se coloca, como em todas as novas tecnologias e que um dia se colocou para a química, é se a seqüência de nucleotídeos deve ser protegida em si mesma através de patente de produto ou se, pelo contrário, deve ser protegida simplesmente como uma patente de procedimento, o que seria muito mais razoável, visto que não se sabe se o gene que se protege hoje para produzir uma proteína, futuramente não poderá servir para uma outra função totalmente diferente.

Naturalmente, se o gene é protegido em si mesmo, essa segunda função só poderia dar lugar a uma patente dependente com os inconvenientes que isto significa. Ninguém estará interessado em pesquisar sobre um gene já patenteado porque saberá que a patente que obtiver será uma patente dependente e não poderá ser explorada sem o consentimento do titular de uma patente anterior. "[28]

A seqüência de um gene isolado pode ser idêntica à de um gene no seu estado natural ou diferir. Neste último caso, a modificação poderia atender a um melhor funcionamento do gene no meio em que atua (bactéria, célula, etc.), por exemplo, através da técnica de otimização de códons.

Estas técnicas são amplamente conhecidas e de domínio público.

Em ambos os casos, estamos diante de situações que não poderiam justificar, de forma alguma, a concessão de patentes.

Igualmente, a otimização através da mudança de promotores ou códons de terminação com técnicas de engenharia genética básica, não significa procedimento inventivo nenhum.

Se lermos atentamente a norma, o que estabelece a mesma é a possibilidade de conceder uma patente de produto ao "elemento isolado", com o qual se chega à conclusão de que contradiz os princípios éticos considerados funda- mentais pela Diretiva, expressos no mencionado considerando 16.

Em síntese, o que está sendo patenteado como produto é simplesmente uma descoberta. A seqüência total ou parcial do "elemento" é a seqüência natural. O inventor que é premiado com um título de exclusividade não modificou nada de tal seqüência.

Ulrich Schatz, Diretor de Assuntos Internacionais do EPO, explicando a posição favorável ao patenteamento de seqüências de genes, assinala que, embora seja correto, o seqüenciamento do genoma é mais uma matéria de descoberta (não-patenteável e deve diferenciar-se do caso em que a seqüência de DNA que codifica para uma proteína particular é isolada do seu meio natural por meios técnicos e colocada à disposição da indústria.

Isto - a critério de Schtaz - completa a passagem do conhecimento para a prática idônea, que é central em toda invenção. Assim - conclui - um gene é "novo" no sentido dado pela Lei de Patentes, uma vez que, previamente, não esteve disponível para o público, i.e" para uso técnico.[29]

Esta posição é a que permeia em geral todo assunto biológico da Diretiva Européia de 1998 nos seus artigos 5.2. e 3.2. enquanto estabelece que a matéria biológica isolada do seu entorno natural ou produzida por meio de um procedimento técnico pode ser objeto de uma invenção, ainda que exista anteriormente em estado natural.

Poste - nesta mesma orientação - argumenta que as dificuldades do trabalho de descobrir genes e as técnicas necessárias para efetivá-Io transformam um achado em uma invenção. Esta análise, segundo Davison, contém uma falácia lógica já que por muito trabalho que se acrescente não se pode dar o salto epistemológico que existe entre descoberta e invenção.[30]É óbvio que as leis de patentes não podem distorcer conceitos suficientemente consolidados na linguagem natural, transformando em invenção uma simples descoberta.

Nesta linha de raciocínio, a já mencionada resolução do CCNE critica a posição que considera que o isolamento por clonagem de um gene em particular que permita sua caracterização põe à disposição dos pesquisadores um material portador de uma invenção.

Assinala-se sobre este aspecto que este raciocínio pode ser discutido enquanto a clonagem automatizada de um fragmento de DNA não implica em nenhuma atividade inventiva. Os procedimentos se convertem, por outra parte, em perfeitas correntes e se fosse suficiente o fato de isolar o gene para sair do domínio da descoberta e falar de invenção patenteável não haveria mais espaço, hoje em dia, para descobertas na área da genética.[31]

Tínhamos assinalado anteriormente que a simples assimilação entre os critérios empregados para a proteção de uma molécula química - em especial as utilizadas para fins terapêuticos - e um gene, é, ao menos, inconsistente.[32]

Na descoberta de um medicamento com atividade terapêutica sobre uma doença existe uma dupla invenção: a molécula considerada em si mesma e sua utilização terapêutica.

Na área do genoma este raciocínio não é válido, visto que o isolamento do gene (o que equivale à concepção da molécula química) não implica uma atividade inventiva. Esta circunstância por si só nos deve levar a considerar que essa pretensa assimilação parte de uma base falsa.

O isolamento de um gene era, em etapas anteriores da pesquisa genômica, o resultado de uma concreta tarefa de pesquisa que se desenvolvia em torno de um hormônio, uma enzima ou um receptor para concluir em um gene.

Hoje, assistimos a uma mudança substancial, já que o gene pode ser seqiienciado de forma automática utilizando-se métodos usuais de domínio público. A atividade inventiva - conforme ensina Kahn - não pode residir nessa molécula de DNA que é o gene.[33]

É possível, conforme indica o CCNE, reivindicar, a partir de uma análise informatizada de uma seqüência genômica, um campo de utilização muito grande, que permanece virtual. É freqüente que esta utilização industrial se deduza de comparações informatizadas entre os elementos de seqüência do gene focalizada na patente e a seqüência de outros genes ou de genes de organismos modelos cuja função é conhecida. As sociedades de seqüenciamento de DNA têm hoje programas de informática que lhes permitem realizar automaticamente certas comparações de seqüências graças à totalidade das bases de dados acessíveis e de inferir nelas os campos de aplicação industrial que são, em tal caso, "concretamente expostos". Esta prática confere uma proteção industrial que cobre a seqüência de genes, seja ela total ou parcial.[34]

O que deve ficar claro é que ao se conceder uma patente, em nenhum caso a mesma pode reivindicar a seqüência do gene, a qual deve estar disponível para a comunidade científica.

Conceder patente de produtos pela descoberta da seqüência do gene tem o risco de paralisar a pesquisa futura que resultaria no conhecimento da verdadeira atividade biológica da proteína codificada por esse gene e, conseqüentemente, na sua utilização pública ao tratar-se de um medicamento.[35]

Um princípio fundamental no direito de patentes é que a proteção concedida não pode superar a contribuição efetiva realizada pelo inventor no progresso da técnica.

Ainda que, hipoteticamente, consideremos a descoberta como uma invenção, é totalmente desproporcional que alguém, que tenha revelado a seqüência total ou parcial empregando procedimentos rotineiros de domínio público, se aproprie da mesma, a partir de um direito tão amplo e intenso como o que concede uma patente de invenção de produto.

Sob a aparência do respeito aos princípios morais e à dignidade humana, o que consagra a Diretiva é um direito de apropriação da informação genética brindado pela natureza. O restante é mera dialética para possibilitar uma saída política a uma Diretiva que gerou grandes resistências da sociedade européia.

Nos Estados Unidos, a proteção de patentes para seqüência de genes é tão somente uma extensão lógica da bem enraizada prática de conceder proteção por genes completos. Isto reflete o enfoque tradicional de se começar uma atividade conhecida e se obter o gene que codifica a proteína que demonstra essa atividade.

Já foram concedidas 700 patentes nesta área, incluindo genes importantes para as atividades comercial e farmacêutica, tais como o ativador tissular do plasminogêno (TPA), a eritropoietina, o fator estimulante de colônias granilocíticas (G-CSF e GM-CSF), o fator VIII de coagulação e o antígeno de superfície da hepatite B.

O valor da informação contida na seqüência de nucleotídeos destes genes tem sido reconhecido repetidamente pelos tribunais americanos.[36]


IV – EFEITOS DAS POLÍTICAS DE PATENTEAMENTO SOBRE A PESQUISA CIENTÍFICA

Um dos fundamentos mais sólidos dos Direitos de Propriedade Industrial sobre as invenções é o que conduz a premiar o esforço inovador de modo tal que redunde em benefício do progresso das técnicas, que em definitivo, significa um benefício geral para a Humanidade. Há muito tempo, a Constituição americana, afirmando estes postulados, outorgou hierarquia constitucional ao direito do inventor para promover - segundo expressa o art. 1 da séc. 8° -"o progresso das artes úteis".

Até recentemente, isto não constituiu pauta de discussão alguma. Ninguém teria pensado que as políticas legislativas na área de patentes pudessem interferir ou neutralizar o progresso das ciências ou das técnicas.
Hoje, assistimos a um quadro complexo que apresenta características singulares e que nos afasta de linhas de pensamento vigentes durante longos anos. Uma série de fatores tem se unido para articular este novo cenário.

De um lado, estamos assistindo a um espetacular avanço das ciências e da tecnologia. Este avanço traz profundas conseqüências econômicas: ciência e tecnologia transformaram-se em fatores estratégicos fundamentais para o desenvolvimento econômico dos países. Hoje, a riqueza dos países não se encontra tanto na posse de bens materiais, mas no domínio da ciência e da tecnologia aplicado à produção.

A consciência sobre este fato conduz os estados a priorizarem sua posição estratégica neste campo. Quem dominar um ou vários setores da tecnologia terá vantagens competitivas extraordinárias em relação aos outros países. Isto implica uma luta sórdida por ocupar a liderança e por converter os outros países em tributários do grau relativo de desenvolvimento alcançado em algumas das áreas.

A luta centralizada no econômico mudou as regras de jogo na interação Estado, empresa privada, setor científico e sociedade.

Frutos desta mudança, implementaram-se políticas gerais favoráveis ao patenteamento, nos mais diversos campos do conhecimento, com a consolidação da defesa dos direitos de propriedade industrial.

Já não se trata de um tema que só compete ao setor industrial – destinatário natural dos direitos de patentes - visto que sua administração compromete os estados e faz parte relevante de suas políticas econômicas. Por isso, não deve surpreender que estes direitos tenham adquirido uma dimensão universal, ocupando uma posição central nos acordos TRIPS do GA1T.

A necessidade de tutela efetiva e hipertrofiada de tais direitos faz com que sua defesa se traduza na aplicação de sanções aos Estados que os violarem.

Particularmente, no contexto das tecnologias de ponta, a biotecnologia fez conceber desde um primeiro momento, a necessidade de dominá-las para efetivar o gozo dos benefícios de um monopólio sobre um mercado extremamente relevante no campo econômico.

O material genético humano se converteu em matéria-prima essencial para a "indústria genômica", novo setor da biotecnologia. Axel Kahn destaca apropriadamente que para poder produzir energia é necessário o carvão, o petróleo, o gás ou o urânio. A indústria metalúrgica repousa sobre a disponibilidade de minerais e as biotecnologias, baseadas na engenharia genética, repousam sobre a disponibilidade de genes, para aprimorar testes diagnósticos, produzir proteínas recombinantes de interesse terapêutico ou encontrar os aspectos que serão utilizados para a pesquisa de novos medicamentos. Para tudo isto, são necessários genes.[37]

O patenteamento de seqüências de genes, sem sequer conhecer sua função ou utilidade, aplica um golpe mortal à pesquisa, visto que, no futuro, a possibilidade de pesquisar ou obter alguma invenção sobre o material patenteado e suas abrangências - conforme os critérios amplos a partir dos quais se orientam as entidades de concessão de patentes - estará totalmente vedada para outros pesquisadores. Estes se verão expostos a litígios sobre patentes ou, no melhor dos casos, obrigados a obter patentes dependentes que reconhecerão direitos patrimoniais a quem obtiver essa "reserva de mercado", à margem e por cima dos princípios com os quais tradicionalmente se orientou a propriedade industrial.

Se o sistema de propriedade industrial funcionasse corretamente, estaria assegurado o equilíbrio entre os inovadores e os que, baseando-se na tarefa destes, produzem novos resultados. Mas, se os primeiros são premiados com direitos incorretamente atribuídos em detrimento dos futuros pesquisadores, a pesquisa científica corre sério risco de paralisação por falta de incentivo.

Paradoxalmente, um sistema que nasceu para o estímulo da inovação, encontra-se ameaçado por razão do seu incorreto funcionamento.

Nesta carreira descontrolada, concedem-se patentes para evitar que outros o façam (como se alguém tivesse direito a fazê-lo, sem observar os limites legais) ou para realizar reservas de mercado. Parece ridículo que companhias genômicas solicitem patentes sobre milhares de seqüências, mas aqui analisamos a razão.

No caminho da ciência, as descobertas e as invenções se consolidaram sobre invenções e descobertas anteriores. Há um continuum nesta evolução que pode ser arbitrariamente cerceado ou cortado, sem causar um considerável prejuízo a pesquisas futuras. Isto é muito mais evidente no campo da pesquisa biológica.

Até recentemente, o limite entre o que era um instrumento para a pesquisa e uma invenção patenteável estava claramente demarcado. Enquanto um instrumento para a pesquisa devia ser incorporado livremente ao acervo científico da humanidade para servir a futuras pesquisas, uma invenção patenteável partia de pressupostos indiscutíveis: ser útil de forma direta e imediata para satisfazer uma concreta necessidade humana.

Hoje, a inclusão de verdadeiros instrumentos de pesquisa à listagem de invenções patenteáveis nos coloca frente a um tema sumamente delicado: o cientista que quiser utilizar esses instrumentos ou ferramentas de pesquisa para avançar além das fronteiras da ciência ou da técnica, encontra-se impedido de fazê-lo ou limitado pela necessidade de reconhecer direitos patrimoniais sobre sua utilização, sob pena de ver restringidos os direitos que lhe poderá conceder uma autêntica invenção nesse campo.

Além do mais - destaca Eisemberg - um projeto de pesquisa importante irá requerer o acesso a muitas ferramentas de pesquisa. Se cada uma dessas ferramentas solicitar uma licença e o pagamento de beneficios individuais, os custos administrativos e de trâmites deverão aumentar rapidamente.[38]

O acesso a patentes sobre matérias e métodos que constituem essencialmente ferramentas de pesquisa despertou preocupação. Uma quantidade importante de empresas tem estabelecido programas de licenciamentos sobre métodos de ensaios e receptores necessários para a seleção de drogas que são objetos de pesquisa. A razão desta preocupação é que a pesquisa em grande escala requer uma multiplicidade de ferramentas cujo custo será muito incrementado pela acumulação de prerrogativas exigidas.[39]

Existe uma prática comum na biologia contemporânea que consiste na busca de controle dos meios necessários para realizar as descobertas. Diariamente busca-se concessão de patentes para avanços industriais distanciados do mercado. Os titulares das patentes assim conseguidas descansam esperando impedir a ação de outros cuja labor mais importante oferece a possibilidade de enriquecer substancialmente o domínio público. O CCNE francês destaca que, hoje, assistimos a um aumento de solicitação de patentes, sem que a comunidade científica tenha feito uma clara escolha entre esta competência e o risco de ver o acesso ao conhecimento fundamental preso em uma rede de exclusividades passageiras ou de dependência de patentes concedidas.

Nesta linha crítica, a organização HUGO (Human Genome Organization) afirmou que os contínuos desenvolvimentos da pesquisa prometem oferecer ainda uma maior quantidade de informação sobre seqüências, finalizando com a informação genética completa de organismos superiores. Contudo, outras etapas do desenvolvimento biológico, tais como o conhecimento da função biológica e o uso dos genes e dos produtos genéticos no diagnóstico e tratamento de doenças humanas continuam sendo um desafio, uma incerteza e necessitam de maior criatividade.

A concessão de patentes de amplo espectro sobre ferramentas de pesquisa se soma a políticas reiteradas de encobrimento de informação, fato que indica um momento verdadeiramente desconcertante de prevalência dos interesses de mercado sobre a pesquisa científica. Esta evolução recente - segundo Kanh - revela um perigo mortal de destruição de um sistema que tinha permitido o progresso da sociedade ocidental durante dois séculos, aquele fundamentado sobre a utilização livre dos conhecimentos com a finalidade de realizar as pesquisas.[40]

Neste sentido, a referida resolução do CCNE denuncia que a concorrência atual para patenteamento destas pesquisas, excluída de toda reflexão de conjunto e em desordem, é perigosa. Para preservar todas as possibilidades perante um patenteamento cujas regras não são claras, os pesquisadores são convidados por seus financiadores a não serem pródigos demais quanto à divulgação de informação e esta situação gera mal-estar entre eles. Os pesquisadores advertem que o campo das descobertas, já sigiloso pelas razões habituais vinculadas à concorrência, tende a ser cada vez mais limitado. Conseqüentemente, pode ser que a privatização do conhecimento sem maiores regulamentações ameace bloquear a inoVação.[41]

Sob o manto da defesa do direito da propriedade intelectual, está-se desativando paralelamente a pesquisa sobre o Genoma Humano, retardando um processo que pode conduzir à cura das doenças.

Colocar em risco o futuro da pesquisa científica em razão dos interesses de mercado não significa uma política de Estado sadia nem inteligente.

Durante os últimos vinte anos, a pesquisa sobre matéria genética tem dado origem a uma grande quantidade de "propriedades intelectuais" submetidas à concessão de patentes. Contar com esta proteção brindou, ao titular da patente, a oportunidade de influenciar significativamente, tanto no progresso da pesquisa quanto no mercado. E esta influência por parte do titular da patente é realmente preocupante.[42]


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NOTAS

[1] Texto traduzido do espanhol por Alejandra Rotania, revisão final de Fernanda Carneiro.

[2] Jurista. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais; Titular da Cátedra de Bioética na Universidade de Buenos Aires; Professor Titular na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires; Consultor da UNESCO.

[3] Moufang, R. Patenting of Human Genes, cells, and parts of the body?, II C, V. 25 no4, p. 487.

[4] Moufang, R. The Concept of Ordre Public and Morality. In Patent Law, Bruylant, Bruxelas: Van Overwalle (Ed.) Patent Law and Biotechnology, 1998, p. 68.

[5] Moufang, R. Patenting, cit.

[6] Penrose, E. La Economia del Sistema Internacional de Patentes. Siglo XXI, México: 1974, p. 54.

[7] Penrose, E. op cit., pag. 34

[8] Moufang, R. Patenting, Op cit.

[9] Crespi, E. Biotechnoly, Patents and Morality and TIB TECH, Abril de 1997, vol. 15.

[10] Iglesias Prada, J .L. La protección Jurídica de los Descubrimientos Genéticos y EI Proyecto Genoma Humano Madrid: Edit. Civitas, 1995, p. 82.

[11] Bottana, Agra M. Buenas Costumbres y Patentes. Estudios Sobre Derecho Industrial en Homenaje a H. Bylos, Barcelona: 1992.

[12] Knoppers, B. e outros (Ed.): Legal Rigths and Human Genetic Material. Toronto: Edit Montgomery, 1996, pag. 117.

[13] European Commission, SEC/9332/98, pag. 73.

[14] Ascarelli, T. Teoria de la Concurrencia y de los Bienes Inmateriales, Barcelona: Bosch 1970, p. 495.

[15] Ascarelli, T. op. cit.

[16] AVIS No 64 sur I'avant-projet de loi portant transposition, dans le Code la Proprieté Intellectuelle de la Directive .98/44/CE du Parlement Européen et du Conseil, en date du 6 juillet 1998, relative a la protection juridique des inventions biotechnologiques.

[17] Bergel, S. D. Patentamiento dei cuerpo humano y partes dei mismo, em Biotecnología y Derecho Edit. Ciudad Argentina, Buenos Aires: 1997, pag. 61.

[18] CCNE, Avis no 64, cit.

[19] Adverte-se que para várias legislações, entre elas, a dos EUA, existe um período de tolerância que possibilita solicitar a patente sobre uma invenção no contexto do ano em que se tornou pública

[20] CCNE, Avis n° 64, cit.

[21] CCNE, Avis n° 64, cit.

[22] "Straus, J. Intellectual Property Right in Human Genom Research. The U.S. and European Approach - Commun Problerns. Different Solutions? In the GAAC 4th Public Symposium "The Cbanging Character, Use and Protection of Intellectual Property; Washington DC, December 3-4, 1998.

[23] O autor refere-se ao espanhol.

[24] Bercovitz, A. Acceso y Alcance de la Protección Legal de Ias Invenciones Biotecnológicas, in: Los Retos de la Propriedad Industrial en el Siglo XXI. Lima: Indecopi 1996, p. 77.

[25] Hubbard, R. Wald, E. EI Mito del Gen. Madrid: Alianza Edit 1999, p. 44.

[26] Oliva, R. Genoma Humano, Barcelona: Edit. Masson, 1996, p. 18.

[27] Kahn, A. Et I’Homme dans Tout ça? Paris: Nil Edit., 2000, p. 288.

[28] Bercovitz, A. op. cit.

[29] Schatz, Ulrich. Patentability of Genetic Engineering Inventions In European Patent Office Practice, IIC, 1998 p. 2.

[30] Cit. em Cela Conde, C.: Genes Causas y Patentes em Revista del Derecho y Genoma Humano n° 6/97 p. 169.

[31] CCNE, Avis No 64, cit.

[32] Bergel S.D. Patentamiento de Genes y Secuencias de Genes In Revista del Derecho y Genoma Humano n° 8/98 p. 31.

[33] Kahn, A. lnstitute The France, Academie The Sciences. La Proprieté lntellectuelle dans le Domain du Vivant, Paris: Technic et Docurnentation, 1995, p. 261.

[34] Os efeitos de tal aproximação têm sido recentemente ilustrados com o exemplo do gene CCR5, obtido por seqüenciamento sistemático aleatório de cópias de DNA mensageiro; este gene codifica um receptor de membrana de tipo específico. A seqüência tem sido integrada a urna patente que reivindica toda a utilização deste receptor. Anos depois, pesquisas acadêmicas demonstraram que a proteína CCR5 é um co-receptor do vírus do HIV, indispensável para sua penetração intracelular. Apesar do caráter fundamental destes últimos trabalhos, todo desenvolvimento terapêutico baseado na utilização do CCR5 como alvo de medicamento poderia ser dependente da patente inicial (CCNE, Avis no 64, cit.).

[35] Kahn, A. em Instiute, cit.

[36] Murashige, K. Patenting and Ownership of Gens and Life Forms, In International Business lawyers, March 2000, Vol. 28 no 3.

[37] Kahn, A. Et I’homme Op. cit.

[38] Eisemberg, R. Biotechnology, Science Engineering, and Ethical Cbanges for 21st Century, Washington: Joseph Henri, Press, 1996, p.161.

[39] EISEMBERG, R. Structure and Function in Gene Patenting. Nature Genetics, Vol. 15, February 1997, p. 125.

[40] Kahn, A. Et l’Homme. Op. cit.

[41] CCNE, Avis no 64, op. cit.

[42] Murashige, K. Op. cit.