O
PODER DAS CIÊNCIAS BIOMÉDICAS:
OS DIREITOS HUMANOS COMO LIMITE
Francisco Amaral
A
revolução biológica
e as questões
Éticas e jurídicas
que suscita.
O
progresso científico do
mundo contemporâneo, principalmente
na segunda metade deste século,
revela duas grandes revoluções,
uma no campo da medicina, outra
no campo da biologia. A primeira
diz respeito aos avanços
obtidos na prevenção
e tratamento das doenças
e na pesquisa clínica.
Experiências com novos fármacos,
medicamentos e vacinas, transplante
de órgãos e enxertos,
epidemias, modalidades de tratamento
e novos estudos sobre a morte
com o progresso técnico
na prática da reanimação
(eutanásia e distanásia),
constituem os seus principais
temas e suscitam as suas principais
questões. A segunda, de
natureza biológica, desenvolveu
métodos e procedimentos
que levam I) ao controle da reprodução
humana, com a prevenção
da gravidez, a inseminação
artificial, nas suas diversas
espécies (homóloga
e heteróloga), e fecundação
in vitro; 2) ao controle da hereditariedade
por meio da engenharia genética,
conjunto de técnicas que
permitem modificar o "patrimônio"
genético do ser humano,
com a possibilidade de sanar enfermidades
genéticas, mas também
de manipular a espécie
humana; e 3) ao controle do sistema
nervoso, com a utilização
dos recursos da psicofarmacologia,
da neurobiologia e das pesquisas
psicossociológicas e psicológicas
.
Tais
avanços no campo da ciência
podem suscitar conflitos entre
direitos ou deveres contraditórios
e a ética, em primeiro
lugar com sua orientação,
e o direito, em segundo, com suas
prescrições, são
chamados a resolver e cujas soluções
se situam entre o ser da ciência
e o dever ser da ética
ou do direito, procurando-se responder
à seguinte questão:
tudo o que é tecnicamente
possível também
o será ética e juridicamente?
Questão
preliminar é reconhecer
que o progresso científico
deve-se orientar para promover
a qualidade de vida individual
e social, pessoal e ambiental,
mas também que tais descobertas
podem causar problemas que o direito
é chamado a resolver, elaborando
estruturas jurídicas de
resposta que se legitimem pelo
respeito aos direitos fundamentais
da pessoa humana.
Todas
estas manifestações
de progresso científico,
de grande repercussão em
diversos campos das ciências
naturais e humanas, levantam questões
éticas. No caso da pesquisa
clínica e nas experiências
com novos medicamentos, essas
questões envolvem os testes
em pessoas voluntárias,
exigindo-se o consentimento esclarecido
do paciente e o respeito à
integridade física e à
saúde individual. No caso
da biologia, destacam-se os problemas
da reprodução assistida,
compreendendo a inseminação
artificial (homóloga e
heteróloga), a fecundação
in vitro, a transferência
de embriões, congelamento,
manipulação e experimentação,
envolvendo o anonimato do doador,
o aluguel do útero de outra
mulher que não a mãe,
a gratuidade da doação
de óvulos e de esperma,
o destino dos embriões
remanescentes, a transferência
de genoma, isto é, do conjunto
de genes contidos nos cromossomos,
etc. Desenvolve-se a bioética,
termo designativo da ética
específica das questões
biológicas, a traduzir
o valor da pessoa humana e também
a metodologia multidisciplinar
de abordagem dessa mesma problemática,
constituindo para o direito um
novo campo de atuação,
na medida em que este é
chamado a criar normas que protejam
o ser humano contra o abuso à
sua integridade física,
moral e intelectual, o que constitui,
presentemente, o cerne da proteção
universal dos direitos humanos.
Urge, consequentemente, precisar
o papel do direito em face desses
novos desafios, elaborando o instrumental
jurídico necessário
à garantia dos valores
fundamentais da ordem jurídica.
Nessa matéria, vale dizer,
a dignidade da pessoa humana,
a justiça e o bem comum.
E seguindo Bachelard, que meditou
sobre o novo espírito científico,
espera-se do direito e dos juristas
que desenvolvam um novo pensamento,
apto a elaborar o tipo de resposta
jurídica que a sociedade
espera para a solução
dos problemas advindos do progresso
científico, nas áreas
da medicina e da biologia, a partir
de uma ordem axiológica
que tenha a pessoa humana como
valor básico da ordem cultural
dominante em uma sociedade democrática.
Acrescente-se
ainda que, no Brasil, à
semelhança do que ocorre
na comunidade internacional, desenvolve-se
o debate sobre as questões
dá bioética e do
biodireito, já existindo
entre nós, além
das regras da Constituição
Federal, a Lei 8.974, de 5.1.95,
que estabelece normas para o uso
das técnicas de engenharia
genética, e a Lei 9.434,
de 4.2.97, que dispõe sobre
remoção de órgãos,
tecidos e partes do corpo humano
para fins de transplante, além
de outros dispositivos do Código
Civil, do Código Penal
e de leis especiais que protegem
os direitos inerentes à
personalidade humana. Todas essas
disposições legais,
ordenadas de modo sistemático,
podem constituir um novo ramo
do direito, o biodireito, cuja
função primordial
seria a conservação
da vida humana, na linha de defesa
estabelecida pela moderna concepção
e sistema dos direitos humanos.
A
bioética e o biodireito:
novos campos temáticos
A
bioética é a disciplina
que examina e discute os aspectos
éticos relacionados com
o desenvolvimento e as aplicações
da biologia e da medicina, indicando
os caminhos e os modos de se respeitar
o valor da pessoa humana. Pela
pluralidade de seu objeto, que
compreende um "mosaico de
problemas", a bioética
é ciência multidisciplinar
que tem como limite as prescrições
contidas nos direitos humanos.
E realizar esses direitos, simultaneamente
com a conquista da medicina e
da biologia, é tarefa que
exige um esforço multidisciplinar.
Médicos, biólogos,
filósofos, moralistas,
teólogos, sociólogos
e juristas encontram-se na tarefa
comum de estudar essa nova temática,
levando à configuração
de um novo ramo jurídico,
o biodireito, que se estrutura
com base na Constituição
Federal, que tem como valores
básicos a dignidade da
pessoa humana e a garantia do
direito à vida, à
integridade física e à
saúde individual e familiar.
Pode esse entender-se como o conjunto
de princípios, conceitos
e regras que concretizam os valores
fixados pela ética no campo
das ciências da vida, e
sua razão de ser está
na insuficiência daquela
na solução dos conflitos
que surgem neste campo. Compreenderia,
de modo analítico, as normas
jurídicas sobre a engenharia
genética, a embriogênese
humana, a regulação
do aborto, a manutenção
da vida, a proibição
da pena de morte, da tortura e
dos maus tratos.
Com
esse entendimento, e atento aos
problemas que surgem da revolução
biológica, o Conselho Nacional
de Saúde aprovou em 9.10.96
as novas diretrizes e normas regulamentadoras
de pesquisas envolvendo seres
humanos, elegendo, como campo
de atuação, as seguintes
áreas temáticas:
genética humana; reprodução
humana; biossegurança;
novos fármacos, medicamentos,
vacinas e testes diagnósticos;
novos equipamentos e insumos para
a saúde; pesquisas conduzidas
do exterior e pesquisas envolvendo
populações indígenas.
Têm
aqui particular importância
os projetos de pesquisa envolvendo
seres humanos, de modo ;;S; direto
ou indireto, com inegáveis
possibilidades de dano à
integridade física, moral
ou intelectual da pessoa, pelo
que é urgente à
fixação de limites
éticos e jurídicos,
tendo como orientação
os direitos fundamentais da pessoa
humana, aqui usados como sinônimo
de direitos da personalidade ou
direitos humanos.
Esses
limites seriam indispensáveis
para configurar a licitude da
experimentação humana
e, conseqiientemente, tipificar
as situações em
que se pode verificar a responsabilidade
do médico/investigador,
determinando o conteúdo
dos deveres de diligência,
prudência e perícia
que ele deve observar no desempenho
de sua atividade ,
Essas
respostas estão, portanto,
no sistema de direitos humanos
que a tradição jurídica
ocidental vem estabelecendo, como
"concreção
axiológica da dignidade,
da liberdade e da igualdade"
,
O
sistema jurídico brasileiro
A
matéria dos direitos humanos
reúne os princípios
e normas que, fundadas no reconhecimento
da dignidade e inerentes a todas
as pessoas, visam garantir-lhes
o respeito universal e efetivo
.
Os
direitos humanos propriamente
ditos são direitos subjetivos
que têm como objeto os valores
essenciais da pessoa humana, no
seu aspecto físico, moral
e intelectual. Inseridos no sistema
de direito positivo, têm
eficácia absoluta em face
do Estado, dos indivíduos
e dos grupos sociais, que os devem
reconhecer e respeitar.
Remontando
à tradição
filosófica grega e acolhidos
pelo direito romano e medieval,
foi com o iluminismo que se forjou
a sua moderna concepção,
expressa nos textos fundamentais
da Declaração de
Independência Americana
de 1776, a Declaração
dos direitos do homem e do cidadão
de 1789 e, contemporaneamente,
a Declaração Universal
dos Direitos do Homem das Nações
Unidas, de 1948. Considerando
esta que a liberdade, a justiça
e a paz no mundo têm por
base o reconhecimento da dignidade
intrínseca e dos direitos
iguais e inalienáveis de
todos os membros da família
humana, estabelece no seu art.
3º que todos os indivíduos
têm direito à vida
à liberdade e à
segurança de sua pessoa.
A
Declaração Universal
dos Direitos do Homem, de valor
apenas moral, teve seus princípios
incorporados ao direito brasileiro,
principalmente em matéria
constitucional, civil e penal.
A
tutela jurídica dos direitos
humanos ou da personalidade desenvolve-se,
então, em nível..
constitucional, civil e penal.
De modo mais específico,
pode-se dizer que essa proteção
é I natureza constitucional,
no que diz respeito aos princípios
fundamentais que regem a matéria
que estão na Constituição,
e é de natureza civil,
penal e administrativa, quando
integrante , respectiva legislação
ordinária. Essa integração
entre o direito civil e o direito
público é um d mais
significativos aspectos do processo
de constitucionalização
da sociedade contemporânea
complexa e variada .
Em
matéria constitucional,
o princípio básico
é o contido no art. 12
da Constituição
Brasileira, que estabelece como
princípio fundamental a
dignidade da pessoa humana na
seqüência do valor;
também fundamental, da
igualdade, expresso no preâmbulo
como valor superior do ordenamento
jurídico, que proíbe
qualquer tipo de discriminação.
Quer isso dizer que o respeito
à pessoa humana é
o marco jurídico básico,
o suporte inicial que justifica
a existência e admite a
especificação dos
demais direitos, garantida a igualdade
de todos perante a lei (igualdade
formal) e a igualdade de oportunidades
no campo econômico e social
(igualdade material).
Outros
direitos de natureza constitucional
são a inviolabilidade do
direito à vida, à
liberdade, à igualdade
(CF, art. SQ, caput), o direito
de resposta (V), o direito à
inviolabilidade da intimidade,
da vida privada, da honra e da
imagem das pessoas (X), o direito
de autor (XXVIII), a proteção
à participação
individual em obras coletivas
e à reprodução
da imagem e da voz humanas (XXVIII).
No
que diz respeito à legislação
ordinária:
Código
Civil, que é o diploma
básico e peculiar aos direitos
da personalidade, na medida em
que se constitui, historicamente,
a sedes materiae da personalidade,
continha prescrições
sobre o direito à imagem
(art. 666, X), ao sigilo da correspondência
(art. 671, par. único)
ao direito moral do autor (arts.
649, 650, par. único, 651,
par. único e 658), à
cessão do direito de ligar
o nome do autor à sua obra
(art. 6 ), matéria hoje
deslocada para a Lei 9.610, de
19 de fevereiro de 1998, que regula
os direitos autorais. O projeto
de Código Civil já
contempla, porém, o direito
à integridade física.
O Código dispõe,
expressamente, porém, no
tocante à indenização
por homicídio, ferimento
, ofensa à saúde,
à honra e à liberdade
pessoal (arts. 1.537 a 1.553).
·
Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei 8.069, de 13
de julho de 1990, no que diz respeito
aos direitos fundamentais, Título
II, arts. 7 a 69, consagra o direito
à vida e à saúde,
à liberdade, ao respeito
e à dignidade, à
convivência familiar e comunitária,
à educação,
à cultura, ao esporte e
ao lazer, à profissionalização
e à proteção
no trabalho.
·
Decreto 24.559, de 3 de julho
de 1934, dispõe sobre a
assistência e proteção
à pessoa e aos bens dos
psicopatas.
·
A Lei 9.434, de 04 de janeiro
de 1997, e Decreto 2.268, de 30
de junho de 1997, dispõe
sobre a remoção
de órgãos, tecidos
e partes do corpo humano, para
fins de transplante e tratamento.
·
A Lei 7.649, de 25 de janeiro
de 1988, dispõe sobre a
cessão de produtos biológicos,
como o sangue.
·
A Lei Orgânica da Saúde,
Lei 8.080, de 19.9.90, que dispõe
sobre as condições
de atenção à
saúde, à organização
e ao funcionamento dos respectivos
serviços.
·
A Resolução 1.358/92,
do Conselho Federal de Medicina,
sobre a utilização
de técnicas de reprodução
assistida.
·
A Lei 9.610, de 19 de dezembro
de 1998 (art. 21, 25, 52, par.
único, 28, 49, sobre a
proteção ao direito
moral do autor.
·
A Lei 8.974, de 5 de janeiro de
1995, que estabelece normas para
o uso das técnicas de engenharia
genética.
·
A Lei 8.501, de 30.11.92, que
dispõe sobre a utilização
do cadáver.
No
Código Penal tem-se a seguinte
tutela jurídica: a condenação
do homicídio (art. 121),
a provocação ou
auxílio ao suicídio
(art. 122), o infanticídio
(art. 123) O aborto (art. 124)
os crimes de perigo para a vida
e a saúde (art. 130 a 136),
o crime de lesão corporal
(art. 129) os crimes contra a
honra (art. 138), a difamação
(art. 139), a injúria (art.
146) o seqüestro e cárcere
privado (art. 142) a inviolabilidade
do domicílio (art. 150)
os crimes contra a inviolabilidade
de correspondência (arts.-151
e 152) e dos segredos (art. 153
e 154).
O
direito à vida e à
integridade física
Os
direitos humanos civis podem sintetizar-se
no direito à integridade
física, no direito à
integridade intelectual e no direito
à integridade moral, conforme
representem a proteção
jurídica desses bens ou
valores.
O
direito à integridade física
compreende a proteção
jurídica à vida,
ao próprio corpo, quer
na sua totalidade, quer em relação
a tecidos, órgãos
e artes do corpo humano suscetíveis
de separação e individualização,
quer no tocante ao corpo sem vida,
o cadáver, e ainda, o direito
e à liberdade de alguém
submeter-se ou não a exame
e tratamento médico.
O
direito à integridade moral
consiste na proteção
que a ordem jurídica concede
à pessoa no tocante à
sua honra, liberdade, intimidade,
imagem e nome.
O
direito à integridade intelectual
é o que protege o direito
moral do autor, isto é,
o direito de reivindicar a paternidade
da obra, e o direito patrimonial
que é o direito de dispor
da obra, explorá-la e dela
dispor.
O
direito à vida e à
integridade física ocupam
posição capital
no sistema dos direitos da personalidade.
São o ponto de partida,
principalmente no que diz respeito
aos limites a estabelecer para
o poder das ciências biomédicas.
Mais
do que um estado, a vida humana
é o processo pelo qual
um indivíduo nasce, cresce
e morre . É bem jurídico
fundamental, uma vez que se constitui
na origem e suporte dos demais
direitos. Sua extinção
põe fim à condição
de ser humano e a todas as manifestações
jurídicas que se apóiam
nessa condição.
Pontos fundamentais para o direito
são o respectivo início,
desde a concepção,
e o seu termo final, a morte.
Como
fenômeno unitário
e complexo, a vida humana é
uma totalidade unificada de tríplice
aspecto: o biológico, o
psíquico e o espiritual.
Biologicamente, é o processo
de atividade orgânica e
de transformação
permanente do indivíduo,
desde a concepção
até a morte. Psicologicamente,
é a percepção
do mundo interno e externo ao
indivíduo. Espiritualmente,
significa inteligência e
vontade.
A
proteção jurídica
da vida humana e da integridade
física tem como causa final
a preservação desses
bens jurídicos, desde o
começo até o término
da vida, do que decorre a importância
em determinar-se o momento em
que ela começa e se extingue,
o que marca, aliás, o início
e o fim da personalidade jurídica.
Quanto ao seu termo inicial, a
vida e, consequentemente, a personalidade,
começa da concepção
, da fusão dos gametas.
Quanto ao termo final da existência,
prevalece a opinião que
define a morte em termos cerebrais
.
O
valor da vida e da integridade
física tornam, por isso,
extremamente importante a sua
defesa contra os riscos de sua
destruição ou de
alteração da estrutura
ou funcionamento normal do corpo
humano, inclusive a simples ameaça
contra a saúde.
Têm
também grande importância
as intervenções
ou manifestações
destinadas a alterar-lhes as condições
normais da existência. Essas
intervenções compreendem
as práticas científicas
próprias da chamada engenharia
genética, lato sensu, as
ações sobre o ADN
humano, (análise molecular
do genoma humano e a utilização
dos genes humanos), as ações
sobre células humanas ou
sobre embriões, (processos
de fecundação in
vitro e congelamento, manipulação
e experimentação),
e ações sobre os
indivíduos, (a transferência
de genes, transplante de órgãos
humanos, a reprodução
assistida, a esterilização
e controle da natalidade, e ainda
os tratamentos médicos
e a eutanásia).
O
direito à integridade física
compreende, também, a saúde
individual, tanto orgânica
como mental, mas não se
confunde com o direito à
saúde (CF, art. 196).
No
que particularmente diz respeito
aos direitos e deveres no contexto
da tecnociência, o direito
subjetivo que tem a vida humana
como bem jurídico, pressupõe
três titulares do dever
jurídico de respeitá-lo:
a) o próprio indivíduo
para consigo mesmo; b) as demais
pessoas; e c) o Estado . O próprio
indivíduo tem, para consigo,
o direito-dever de legítima
defesa, que consiste na reação
contra agressão injusta,
atual, inevitável, não
excedendo o necessário
à defesa. "Para uma
concepção clássica,
teria também o dever de
não suicidar-se",
tendo em vista o interesse social
na preservação da
vida humana. Relativamente a terceiros,
têm estes o dever de não
matar, de não contribuir
ou ajudar na morte voluntária
de alguém. No que diz respeito
à pesquisa, têm de
respeitar os princípios
gerais da bioética, vale
dizer, o da autonomia, o da beneficência,
o do não prejuízo
e o da justiça e eqüidade.
Quanto ao Estado, tem este o dever
de respeitar a vida dos cidadãos
(CF, art. 5º), e o dever
de proteger-lhes a vida, com a
utilização de todos
os meios jurídicos necessários,
assim como o dever de punir os
autores de quaisquer atentados
contra a vida humana, função
típica do direito penal.
Com essa matéria relaciona-se
o direito a uma morte de outra
pessoa por motivos humanitários,
a pedido do interessado, que sofre
de uma doença terminal
incurável .
O
direito ao corpo, nele incluído
os seus tecidos, órgãos
e partes separáveis, e
o direito ao cadáver, são
projeções do princípio
da dignidade humana (CF, art 1º,
III) e do direito à integridade
física.
Considera-se
aqui o corpo humano também
como um bem jurídico, "uma
realidade biológica que
o direito reconhece e protege
em si mesma", seja o corpo
humano nascido, seja o apenas
concebido. O corpo humano sem
vida é cadáver,
o que suscita o problema da personalidade
humana post-mortem, de que se
tratará a seguir.
A
personalidade humana é
um todo complexo, unitário,
integrado e dinâmico, constituído
de bens ou elementos constitutivos
(a vida, o corpo e o espírito),
de funções (função
circulatória, inteligência),
de estados (saúde, prazer,
tranqüilidade) e por força,
potencialidade e capacidade (instintos,
sentimentos, vontade, capacidade
criadora e de trabalho, poder
de iniciativa etc.) . Entre seus
elementos constitutivos, o corpo
humano é, por si só,
objeto de tutela jurídica
que se traduz nos dispositivos
penais condenatórios das
lesões corporais (CP, art.
129) e dos crimes de perigo para
a vida e a saúde (CP, art.
30), e ainda no poder de decisão
pessoal sobre o tratamento médico-cirúrgico,
exame médico e perícia
médica. A tutela sobre
o cadáver tanto se manifesta
na proibição de
destruir, subtrair, ocultar ou
vilipendiar cadáver (CP,
arts. 211 e 212), como na possibilidade
de disposição gratuita
de próprio corpo; ou parte
dele, com objetivo altruístico
ou científico para depois
da morte.
O
direito ao corpo refere-se tanto
a este, na sua totalidade, quanto
às partes que dele se possam
destacar e de se individualizar,
e sobre as quais a pessoa exerce
o direito de disposição.
Consideram-se, assim, coisas (res),
de propriedade do titular do respectivo
corpo.
Os
elementos destacados do corpo
deixam de integrá-lo e,
consequentemente, de ser objeto
dos direitos da personalidade.
Em sentido contrário, passam
a integrá-lo os "elementos
ou produtos, orgânicos ou
inorgânicos, que nele se
assimilaram ou que nele se incorporaram".
Assim enxertos e próteses,
implantados e não rejeitados
pelo organismo, e não separáveis
do corpo sem causar a este um
dano simultâneo, são
objetos de direitos da personalidade
e não de direitos reais
. A separação faz-se
para salvar a vida ou preservar
a saúde do titular ou de
terceiros, neste caso, por meio
de transplante.
É,
assim, permitido à pessoa
juridicamente capaz, dispor gratuitamente
de tecidos, órgãos
01 partes do próprio corpo
vivo, para fins terapêuticos
ou de transplantes (Lei 9.434,
de 04.02.97, art. 9º) .Só
se permite a doação
de órgãos duplos,
de partes de órgãos,
tecidos ou partes do corpo cuja
retirada não prejudique
o organismo do doador, e satisfaça
necessidade terapêutica
indispensável à
pessoa receptora. A disposição
desse material pode ser também
post-morlem, isto é, para
ser eficaz após a morte
do doador. Nesse caso, a retirada
de tecidos, órgãos
ou partes do corpo humano, para
transplante ou tratamento, deverá
ser precedida de diagnóstico
de morte encefálica, constatada
e registrada na forma da lei por
dois médicos não
participantes das equipes de remoção
e transplante, utilizando-se critérios
clínicos e tecnológicos
definidos pelo Conselho Nacional
de Medicina.
Considera-se
transplante a retirada de um órgão,
tecido ou parte do corpo humano,
vivo ou morto, e sua utilização,
com fins terapêuticos, num
ser humano. Difere da prótese,
que é um processo econômico
que utiliza material inerte (válvula),
para substituir partes anatômicas.
Esse ato subordina-se a dois princípios
básicos, a finalidade terapêutica
ou científica, e a gratuidade
do ato de disposição,
princípios esses que informam
as normas de organização
que disciplinam a respectiva prática.
A
questão dos transplantes
gira em torno de dois interesses
fundamentais e opostos: o interesse
coletivo no progresso da ciência
médica, que justifica a
utilização do corpo
humano, vivo ou morto, na pesquisa
científica ou no tratamento
médico, e o interesse individual,
no que diz respeito ao direito
subjetivo de proteção
à integridade física
e à vida humana. Esses
interesses podem ser conflitantes,
gerando problemas de natureza
ética, filosófica
e psicológica, que exigem
adequadas respostas jurídicas.
Tais respostas devem conjugar,
por sua vez, o problema do consentimento
pessoal na utilização
do seu próprio corpo ,
observados os princípios
da indisponibilidade da vida e
da saúde, da dignidade
humana, do consentimento do sujeito,
e da igualdade e liberdade.
Disposição
inovadora da lei é o seu
art. 4º, segundo o qual "salvo
manifestação em
contrário, nos termos desta
lei, presume-se autorizada a doação
de tecidos, órgãos
ou partes do corpo humano, para
finalidade de transplantes ou
terapêutica pos-mortem ".
Só não serão
doadores, portanto, os que em
vida manifestarem sua oposição
à colheita de elementos
orgânicos de seu corpo,
gravando a expressão "não-doador"
na sua carteira de identidade
ou de habilitação
para dirigir. Conseql1entemente,
nos mortos não identificados,
não se poderá fazer
a colheita ou retirada de elementos
para transplante.
Disso
se deduz que, para a utilização
de tecidos, órgãos
ou partes do cadáver humano,
são imprescindíveis
o consentimento para a prática
do ato e a incontestabilidade
da morte, assim como a finalidade
terapêutica e a gratuidade
da disposição.
No
caso da retirada post-mortem de
tecidos, órgãos
ou partes do corpo humano, a pessoa
legítima para concordar
ou discordar é o cônjuge
sobrevivo ou o parente consangl1íneo
mais próximo, titular dos
direitos de personalidade do de
cujus sobre o seu corpo, agora
cadáver. Pode então
a lei estabelecer uma presunção
de autorização destes
(cônjuge ou herdeiros),
se não houver manifestação
em contrário deles, no
prazo exíguo que se estabelecer.
Não deve prevalecer, portanto,
a meu ver, a presunção
legal estabelecida no art. 42
da Lei 9.434/97, de se considerar
doador o falecido, sobre a eventual
manifestação em
contrário expressa por
sua família. Não
prevalece a presunção
legal, simples, de uma vontade
já inexistente, em relação
a uma vontade existente, contrária.
Além disso, dispõe
o sistema jurídico brasileiro
de meios técnicos adequados
para manifestação
de última vontade, o testamento
e o codicilo utilizáveis
pelas pessoas que não quiserem
doar, para transplante, seus órgãos.
CONCLUSÃO
Os
direitos humanos, ou direitos
da personalidade, legitimados
pelos valores básicos da
dignidade humana, da liberdade
e da igualdade, podem constituir-se
nos limites à pesquisa
envolvendo seres humanos, de modo
direto ou indireto, conjugando
esses valores com os princípios
básicos da ética
médica, da autonomia, do
não prejuízo, da
beneficência e da justiça,
que são previstos na Resolução
196/96, do CNS, no seu item III,
referente aos aspectos éticos
da pesquisa envolvendo seres humanos.
Os
diplomas legais supracitados,
que protegem especialmente os
direitos da pessoa quanto à
integridade física e à
saúde, demonstram que esses
constituem-se em limites jurídicos
à experimentação
e pesquisa envolvendo seres humanos,
observando os valores éticos
da dignidade e do respeito à
personalidade humana, na seqüência
de milenar tradição
histórico-filosófica
que se constitui em eixo fundamental
da civilização ocidental
cristã.
BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES.
De anima, II, I, 412ª,
BERNARD,
Jean. A bioética, S. Paulo:
Editora Ática, 1998.
CASABONA,
Carlos Maia Romeo, EI derecho
y Ia bioética ante 10 límites
de Ia vida humana, Madrid: Ed.
Centro de Estudios Ramon Arens,
1994, p. 29.
CHAVES,
Antonio. Direito à vida
e ao próprio corpo, 2ª
edição, S. Paulo,
Revista dos Tribunais. s/d.
Harvard
Medical School. A definition of
irreversible coma. Report of the
Ad Hoc Committee of the Haroard
Medical School to examine the
definition of brain death. IAMA,
1968.
HUBMANN,
Heinrich, Das persönlichkeitsrecht,
Colonia, Böhlan, 1967, apud.
RABINDRANATH,
Capelo de Souza, O direito geral
da personalidade, Coimbra: Coimbra
Editora, 1965.
LEITE,
Eduardo de Oliveira. O direito
do embrião humano: mito
ou realidade?, in Revista de Direito
Civil, Imobiliário, Agrário
e Empresarial, no 78, s. Paulo,
1996.
LIMA,
Madalena, Transplantes. Relevância
jurídico-penal, Coimbra:
Almedina, 1996.
MARIE,
Jean-Bernard, Droits de I'homme,
in Dictionnaire encyclopédique
de théorie et de sociologie
du droit, deuxieme édition,
Paris: LGDJ, 1993.
PÉRES
LUNO, Antonio-Enrique, Teoria
dei derecho, Madrid: Editorial
Tecnos S.A., 1997.
ZENO-ZENOCOVICH,
Vincenzo. Personalítà
(diritti deI Ia), digesto delle
descipline privatistiche, sezione
civile, XIII, Torino: UTET, 1955,
XIII.