PROJETO DE LEI Nº 1135, DE 2003

Autor: Deputado Pinotti

Dispõe sobre a reprodução humana assistida

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

CAPÍTULO I
Dos Princípios Gerais


Art 1° A presente lei estabelece normas para o emprego de técnicas de reprodução humana assistida, em todo o território nacional.

Art 2° As técnicas de reprodução humana assistida têm a função de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes.

Art. 3º  Para os efeitos desta lei, entende-se por:

I – reprodução humana assistida: a intervenção médica no processo de procriação, com o objetivo de resolução de problemas de infertilidade humana ou esterilidade, considerando riscos mínimos à paciente ou o possível descendente;

II - pré-embriões humanos: o resultado da união in vitro de gametas, previamente à sua implantação no organismo receptor, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento;

III – beneficiários: as mulheres ou os casais que tenham solicitado o emprego da reprodução assistida;

IV - consentimento livre e esclarecido: o ato pelo qual os beneficiários são informados sobre a reprodução humana assistida e manifestam, em documento escrito, consentimento para a sua realização.

Art. 4° O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis, doadores e depositantes de gametas e ou pré-embriões e seus cônjuges ou companheiros, se houver.

§ 1° No documento de consentimento informado serão detalhadamente expostos os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de técnicas de reprodução humana assistida, assim como os resultados estatísticos e probabilísticos à respeito da efetividade e da incidência de efeitos indesejados, bem como dos riscos inerentes ao tratamento.

§ 2° As informações devem também incluir aspectos de natureza biológica, jurídica, ética e econômica.

§ 3° O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil.

§ 4° Constarão, ainda, no documento de consentimento informado, as condições em que o doador ou depositante autoriza a utilização de seus gametas ou pré-embriões, inclusive postumamente.

§ 5° O consentimento informado relacionado ao disposto no parágrafo anterior, será também exigido do respectivo cônjuge ou da pessoa com quem viva o doador em união estável.

Art. 5° As técnicas de reprodução assistida não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo ou determinada geneticamente à criança que venha a nascer.

Art. 6° É proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que não seja a procriação humana.

Art. 7° O número de oócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora não deve ser superior a três, com o intuito de não aumentar os riscos já existentes de multiparidade, respeitada a vontade da mulher receptora a cada ciclo reprodutivo.

Art. 8° Em caso de gravidezes múltiplas, decorrentes do uso de técnicas de reprodução assistida, é proibida a utilização de procedimentos que visem a redução embrionária, salvo os casos de risco de vida para a gestante.

CAPÍTULO II
Dos Usuários da Técnica de Reprodução Humana Assistida

Art. 9° Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta lei pode ser receptora das técnicas de reprodução assistida, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.

Parágrafo único. Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro, em processo semelhante de consentimento informado.

CAPÍTULO III
Dos Serviços Que Aplicam Técnica de Reprodução Humana Assistida

Art. 10 As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de reprodução assistida, além de se submeterem às normas éticas dos respectivos Conselhos, são responsáveis pelo controle de doenças infecto-contagiosas, coleta, manuseio, conservação, distribuição e transferência de material biológico humano pare a usuária de técnicas de reprodução assistida, devendo apresentar como requisitos mínimos:

I – responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados, que será, obrigatoriamente, um médico;

II – registro permanente das gestações, nascimentos e malformações de fetos ou recém-nascidos, provenientes das diferentes técnicas de reprodução assistida aplicadas na unidade, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e pré-embriões;

III – registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material biológico humano que será transferido aos usuários das técnicas de reprodução assistida, com a finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças;

IV - registro de todas as informações referentes aos doadores, pelo prazo de cinqüenta anos;

V - licença de funcionamento a ser expedida pelo órgão competente da administração pública.

Parágrafo único. No caso de enceramento das atividades de uma unidade médica que realiza reprodução humana assistida, seus responsáveis são obrigados a transferir os registros e materiais restantes para órgão competente do Poder Público.

CAPÍTULO IV
Da Doação de Gametas ou Pré-Embriões

Art. 11 A doação de gametas ou pré-embriões obedecerá às seguintes condições:

I - nunca terá caráter lucrativo ou comercial;

II - os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

§ 1º Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores.

§ 2º Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

§ 3º As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores.

§ 4º Na região de localização da unidade, o registro das gestações evitará que um doador tenha produzido mais que duas gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de habitantes.

§ 5º A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade que, dentro do possível, deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora.

§ 6º Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços, nem aos integrantes da equipe multidisciplinar, que nelas prestam serviços, participar como doadores nos programas de reprodução assistida, extensiva a proibição aos seus parentes até o quarto grau.

CAPÍTULO V
Dos Gametas e Pré-Embriões

Art. 12 Os pré-embriões originados in vitro, anteriormente à sua implantação no organismo da receptora, não são dotados de personalidade civil.

Art. 13 Os beneficiários são juridicamente responsáveis pela tutela do pré-embrião e seu ulterior desenvolvimento no organismo receptor.

CAPÍTULO VI
Da Criopreservação de Gametas ou Pré-Embriões

Art. 14 As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozóides, óvulos e pré-embriões.

§ 1° O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído.

§ 2° Os beneficiários das técnicas de reprodução assistida, assim como os doadores e depositantes, devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos gametas e pré-embriões criopreservados, em caso de separação, divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.

§ 3° Após três anos de criopreservação, os gametas ou pré-embriões ficarão à disposição dos beneficiários das técnicas de reprodução assistida, doadores ou depositantes, que poderão descartá-los ou doá-los, mantendo as finalidades desta lei.

§ 4° Os pré-embriões em que sejam detectadas alterações genéticas que comprovadamente venham comprometer a vida saudável da descendência, serão descartados, após o consentimento do casal.

CAPÍTULO VII
Do Diagnóstico e Tratamento de Pré-Embriões

Art. 15 As técnicas de reprodução assistida também podem ser utilizadas na prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, quando perfeitamente indicadas e com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica.

§ 1° Toda intervenção sobre pré-embriões in vitro, com fins diagnósticos, não poderá ter outra finalidade que a avaliação de sua viabilidade ou detecção de doenças hereditárias, sendo obrigatório o consentimento informado do casal.

Toda intervenção com fins terapêuticos, sobre pré-embriões in vitro, não terá outra finalidade que tratar uma doença ou impedir sua transmissão, com garantias reais de sucesso, sendo obrigatório o consentimento informado do casal.

§ 3° O tempo máximo de desenvolvimento de pré­-embriões in vitro será de quatorze dias.

CAPÍTULO VIII
Sobre a Gestação e Substituição
(Doação Temporária do Útero)

Art. 16 As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de reprodução assistida para criar a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética.

§ 1° As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização ética do Conselho Regional de Medicina.

§ 2° A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

CAPÍTULO IX
Da Filiação da Prole

Art. 17 Será atribuída aos beneficiários a condição de paternidade plena da criança nascida mediante o emprego de técnica de reprodução assistida.

§ 1° A morte dos beneficiários não restabelece o poder parental dos pais biológicos.

§ 2° A pessoa nascida por processo de reprodução assistida e o doador terão acesso aos registros do serviço de saúde, a qualquer tempo, para obter informações para transplante de órgãos ou tecidos, garantido o segredo profissional e o sigilo da identidade civil dos doadores.

Art. 18 O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de direito ou vínculo, quanto à paternidade ou maternidade, em relação à pessoa nascida a partir do emprego das técnicas de reprodução assistida, salvo os impedimentos matrimoniais elencados na legislação civil.

Art. 19 Os serviços de saúde que realizam a reprodução assistida sujeitam-se, sem prejuízo das competências de órgão da administração definido em regulamento, à fiscalização do Ministério Público, com o objetivo de resguardar a saúde e a integridade física das pessoas envolvidas, aplicando-se, no que couber, as disposições da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

CAPÍTULO X
Das Infrações e Sanções

Art. 20 As infrações às proibições desta lei serão consideradas infrações éticas e administrativas.

§ 1º As infrações éticas serão disciplinadas em resolução pelos conselhos a que estão subordinados os profissionais responsáveis pelas técnicas de reprodução assistida, que também tratarão da aplicação das respectivas sanções.

§ 2º O órgão competente da administração pública  estabelecerá as infrações administrativas e procederá a respectiva fiscalização.

Art. 21 Aplicam-se todas as disposições da lei civil, para as faltas e violações ao disposto nesta lei.

Art. 22 Constitui crime fecundar oócito humano, com finalidade distinta da procriação humana.
Pena - reclusão de 3 (três) a 6(seis) anos, e multa.

Art. 23 Comercializar ou industrializar pré­-embriões ou gametas humanos.
Pena - reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Art. 24 Praticar a reprodução humana assistida sem a obtenção do consentimento livre e esclarecido dos beneficiários, dos doadores, dos depositantes e de seus cônjuges ou companheiros, se houver, na forma determinada nesta lei.
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Art. 25 Revelar a identidade civil dos doadores aos beneficiários das técnicas de reprodução assistida e ou revelar a identidade civil dos beneficiários das técnicas de reprodução assistida aos doadores.
Pena - reclusão, de 1(um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Art. 26 Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICATIVA
O vertiginoso  avanço das ciências biomédicas, especialmente no que tange ao domínio das ciências da vida, em confronto com a desatualização e o ritmo, em geral mais lento, das ciências jurídicas, obrigaram a apresentação da presente iniciativa, após profundas reflexões de ordem ética e estudo de todas as propostas sobre o tema - que tem implicações concretas para a evolução da medicina no Brasil - buscando acompanhar o que acontece no mundo mas respeitando aos valores básicos da natureza, da vida social e do próprio homem.

Até o presente momento não há normativa legal para a utilização das técnicas de reprodução assistida. O controle de tais práticas vem sendo basicamente informal, com intervenção mínima do Direito. Ou seja, na ausência de lei que normatize o uso das técnicas de reprodução assistida para alcançar a procriação, elas são permitidas, tendo um controle apenas dos médicos e seu Conselho, bem como da sociedade, que busca tratamentos que julgam aceitáveis, segundo seus valores sociais.

O primeiro bebê de proveta brasileiro, Ana Paula Caldeira, nasceu em 07 de outubro de 1984, há quase vinte anos. Até que a sociedade brasileira acreditasse nos efeitos dos novos tratamentos para infertilidade, os cientistas avançaram em suas pesquisas sem que tivesse havido uma preocupação social em regulamentar as novas técnicas. Nem poderia ser diferente, pois caso contrário haveria um freio ao progresso.

Ao lado deste controle, denominado informal, temos normas constitucionais que sempre devem ser observadas e devem ser também analisadas sob o enfoque da evolução ética e legal da reprodução assistida. Como expressão primeira de tais normas temos vários direitos, dentre os quais a inviolabilidade do direito à vida, o incentivo da pesquisa e do desenvolvimento científico, a liberdade de consciência e de crença, e a liberdade da expressão de atividade científica.

Por outro lado, no capítulo dedicado à família na Constituição Federal, está definido que, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, unido em matrimônio ou não, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.

O direito à procriação é, portanto, assegurado, sendo dever do Estado permitir o uso da ciência e até incentivar para que o homem o alcance. Assim, a utilização das técnicas de reprodução é entendida como direito que deve até ser assegurado pelo Estado.

Entretanto, essas técnicas encontram hoje poucas limitações legais e, por causa de seus efeitos, provoca inúmeras controvérsias éticas e problemas no campo do direito da família.

Neste aspecto foi estudada a matéria e verificada a necessidade de uma lei que viabilize o avanço da ciência sem chocar a sociedade, com um mínimo de controle legal, para assegurar direitos fundamentais previstos na nossa Constituição Federal, bem como para evitar algumas perplexidades no âmbito do Direito de Família.

Pretende-se com esta lei, assegurar o direito à procriação, o direito de se fundar uma família. Foram deixadas de lado as questões que podem circundar a matéria, mas que demandam maior rigor e maior preocupação social como a clonagem, que não representa interesse médico e nem se justifica em matéria de reprodução humana assistida.

Por isso define-se o conceito de reprodução assistida legalmente, considerando-a a participação médica no processo de procriação, definindo-se o pré-embrião sempre como união dos gametas masculino e feminino.

Justifica-se a exclusão de temas ligados ao patrimônio genético, pois, diante do medo de criação de aberrações e clones para fins contrários a ética e a moral, veio em 05 de janeiro de 1995, a Lei n.° 8.974, que impõe severas restrições ao uso das técnicas de engenharia genética, entre as quais a manipulação de células germinais humanas. No entanto, verifica-se que esta lei não regulamenta, nem se aplica às técnicas de reprodução assistida, motivo desta iniciativa.

Observa-se que a classe médica brasileira acompanhou o mundo em matéria de reprodução, mas sempre com a preocupação de usar a reprodução assistida apenas para auxiliar a resolução dos problemas de esterilidade humana, facilitando o processo de procriação, quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes.

Desde 1988 há o interesse da classe médica pela normatização dos tratamentos, com destaque para a proibição, naquela época, da prática ou indicação de atos médicos desnecessários, exigindo, ainda, em seu Código de Ética, o consentimento informado dos pacientes para a realização dos procedimentos de fecundação  artificial.

Ampliada a utilização das técnicas de reprodução assistida, a comunidade científica determinou a instituição de normas éticas específicas através da Resolução CFM nº 1.358/92, única disciplina sobre reprodução assistida vigente hoje.

Cioso observar que não há notícia de conflitos judiciais a respeito da matéria, o que bem demonstra que a resolução do Conselho Federal de Medicina deve ser levada em conta. Entretanto são necessários alguns ajustes, seja para ampliar o âmbito de proteção da norma, seja para atualizá-la tendo em vista que a sociedade demanda maior modernização da lei.

Sabe-se que mesmo sendo praticamente inexistentes os conflitos, muitas são as dúvidas e poucas as soluções não controvertidas, porque o assunto envolve questões como o início da vida, a sadia qualidade de vida, a preservação de patrimônio genético e outras não menos polêmicas como determinação de paternidade, descarte de embriões e, ainda, possibilidade de utilização de sêmen congelado após a morte.

Justifica-se, assim, mais uma vez, a importância de legislar sobre a matéria.

Com relação ao consentimento informado, diante de sua importância fundamental para a realização dos procedimentos, pretende-se impor seja ele documentado, de forma escrita e o mais completo possível, com destaque para obrigação de ser firmado por todos os envolvidos no tratamento.

Impôs-se a forma legal, para constituir prova em caso de eventual disputa judicial e também para a garantia de todos os envolvidos. Por isso mesmo, no presente projeto foi determinado que no documento conste o maior número de informações possíveis a respeito do tratamento e suas conseqüências, até mesmo jurídicas.

Há também proibição de utilização das técnicas para fins de eugenia, sob pena de haver infração à norma constitucional do artigo 225. Entretanto, diante da possibilidade que a ciência tem de evitar doenças, mister se faz a previsão da exceção de forma expressa.

O projeto segue a mesma preocupação mundial em reduzir o número de gestações múltiplas, o que é compatível com a limitação da transferência de embriões. A limitação a três transferências evitaria as gestações múltiplas e extinguiria o risco da temida redução embrionária. Temida, pois a redução embrionária significa verdadeiro aborto, com a interrupção do desenvolvimento de um ou mais embriões já implantados no útero materno.

Observe-se que neste tópico foi seguida a orientação do Código Penal no que tange ao aborto, proibindo-se expressamente a redução embrionária, com a ressalva idêntica ao Código Penal para os casos de risco de vida para a gestante.

No projeto há ainda determinação expressa quanto aos usuários das técnicas de reprodução assistida, respeitada a Constituição Federal no que tange à igualdade de acesso.

Outro ponto relevante refere-se aos serviços de saúde que aplicam as técnicas em exame, com exigência de registros permanentes dos procedimentos para permitir o controle da Administração Pública e previsão para o caso de encerramento das atividades, o que é essencial, consideradas as conseqüências dos tratamentos.

No capítulo IV são impostos limites claros para as doações de gametas e pré­-embriões, mais uma vez com respeito à Constituição Federal que proíbe qualquer comercialização do corpo humano (artigo 199, parágrafo 4°). No mesmo capítulo está previsto o anonimato entre doadores e receptores de gametas e pré-embriões, a pedra fundamental dos tratamentos.

Este princípio adotado pela Resolução CFM nº 1.358/92 e utilizado até a presente data sem nenhuma impugnação judicial ou manifestação social, foi escolhido para proteger a criança nascida do procedimento, para que ela não se transforme em objeto de disputa entre o doador e seus pais.

O anonimato é garantia da autonomia e do desenvolvimento normal da família fundada por procriação assistida. Não se pode admitir que um casal que se submete ao tratamento passe a vida inteire temeroso de ser importunado pelo doador, ou vice-versa.

Algumas situações podem ser imaginadas pare se calcular o prejuízo que a família teria caso fosse permitida a revelação da identidade civil. Por exemplo, um doador de sêmen fica acometido de um mal que o impede de ter filhos. Em razão disso, desespera-se e passa a procurar a identidade da família beneficiada com seu sêmen para reclamar-lhe a prole. Imagina-se o inverso. A criança nascida perde os pais (beneficiários do tratamento) ou por qualquer motivo separa-se deles e passa a procurar o doador do gameta, importunando­-o para reclamar uma paternidade que o doador nunca desejou.

Na hierarquia de valores, a proteção da família sobrepuja o eventual direito do filho nascido do tratamento conhecer sua origem via identidade civil do doador. Não se pretende objetar que a criança oriunda do procedimento saiba de sua origem. Ela pode e deve saber do procedimento que a gerou e até sua identidade genética. Pretende-­se tão-somente evitar que seja possível a revelação da identidade civil dos doadores e receptores, pois sabe-se que quem doa sêmen ou óvulos o faz somente por altruísmo, sem nenhum interesse na paternidade.

Quem deposita sêmen num banco para doação não pretende nenhum tipo de vinculação com a criança nascida de seu material genético. Hoje, indiscutivelmente, a paternidade é mais afetiva e social do que biológica, pelo menos quando dissociada de relações sexuais, pelo que não há como se sustentar que se conheça a identidade civil dos doadores.

O conhecimento da identidade civil nada tem a ver com a dignidade humana. No caso, há mais dignidade em preservar a identidade civil dos doadores e receptores do que em revelar. Ademais, qual o benefício que a revelação traria? Nenhum, certo que se pretende determinar que não existe vínculo algum entre doadores e a prole nascida, não havendo nenhum tipo de  filiação.

Que se conheça a identidade genética em certos casos é possível e até necessário, em casos de doenças, por exemplo. Mas a identidade civil é contrária ao melhor interesse da criança. Salienta-se que, no mundo, a postura predominante é a da preservação do anonimato. Onde se permite a revelação da identidade civil, como na Suécia, praticamente desapareceram os doadores.

De se notar, ainda, que o segredo é, no caso, direito de personalidade dos doadores e receptores e não pode ser divulgado. O acesso à informação é limitado pelo segredo, bem maior que deve ser protegido pelo Direito.

Nesse âmbito da Medicina Reprodutiva vale citar o Juramento de Hipócrates, pai da Medicina: "O que quer que eu veja ou ouça, no curso ou não de minha profissão, nos meus encontros com os homens, se for algo que não deve ser publicado fora, eu jamais divulgarei, considerando essas coisas segredos sagrados". O segredo médico é tão importante que é protegido pelo Direito em todas as esferas  - Civil, Penal e Administrativo.

Não fosse tal, para proteger os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais, a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos dispõe, em seu artigo 7°, que "Quaisquer dados genéticos associados a uma pessoa identificável e armazenados ou processados para fins de pesquisa ou para qualquer outra finalidade devem ser mantidos em sigilo, nas condições previstas em lei". Seguindo, no artigo 9°, diz que "as limitações ao sigilo só poderão ser prescritas em lei, por razões de força maior , dentro dos marcos da legislação pública internacional e da lei internacional de direitos humanos".

O direito de acesso à informação não é e não pode ser considerado como razão de força maior, até porque, em se tratando de identidade civil, é contrário aos interesses da criança.

De outra parte, se a intenção da lei é prevenir casamentos consangüíneos, observa-se que a questão foi abordada de maneira adequada pelo projeto, que apresentou solução sem que a revelação da identidade civil fosse condição para tanto, limitando o número de doações.

Por fim, não se pode perder de vista que, mesmo com a imposição legal do anonimato entre doadores e receptores de gametas, mais adequada à sociedade e adotada pelos países mais desenvolvidos, a Constituição garante sempre o acesso ao Poder Judiciário. Em algum caso excepcional, se procurado, o Poder Judiciário deverá avaliar a questão.

O projeto também pretende colocar uma pá de cal nas discussões em torno dos direitos dos pré-embriões antes da implantação no organismo da receptora, ao excluir-lhes expressamente a personalidade civil. E mais, para os proteger, determina quem fica responsável juridicamente por eles.

Diante do avanço na medicina mundial, foi imperioso um capítulo a respeito do congelamento de pré-embriões produzidos em laboratório.

A técnica de criopreservação de pré-embriões é relativamente nova, anunciada a primeira utilização em 1983 na Austrália, e praticada como auxiliar nas técnicas de reprodução assistida desde então na França, Grã-Bretanha, Portugal, Suécia, Suíça, Áustria, Dinamarca, Estados Unidos e Espanha, dentre outros países, onde a preocupação legal limita-se à proibição ou não do descarte ou destruição dos embriões congelados.

Até na Itália, país reconhecidamente religioso, com força da Igreja Católica, utiliza-se a técnica de congelamento. É notório o alto custo da medicação, bem como a possibilidade de insucesso na fertilização dos óvulos. O índice de fertilização é de cerca de 80% dos óvulos inseminados e, dos fertilizados, somente 50% evoluem adequadamente para a transferência ao útero materno. Usualmente o número de embriões é inferior ao de óvulos coletados. Desta forma, devem ser fertilizados quantos óvulos forem coletados, para aumentar a chance dos pacientes em cada ciclo reprodutivo.

Ressalte-se que os tratamentos estão sendo realizados sem que se tenha notícia de descarte de embriões ou de problemas judiciais, desde 1984, quando nasceu o primeiro bebê, fruto de fertilização in vitro no Brasil.

O que se pretende, portanto, com o capítulo da criopreservação é viabilizar os tratamentos sem a limitação de produção de pré-embriões, acompanhando, ainda, os países desenvolvidos no que tange ao uso da técnica de congelamento, que se sabe, através de pesquisas científicas, não prejudicar os embriões. Muitas crianças saudáveis já nasceram de reprodução assistida realizada com técnica de congelamento no Brasil e no mundo.

Seguindo a orientação do Conselho Federal de Medicina, pretende-se a proibição do descarte ou destruição de embriões quando da produção, impondo-se em princípio o congelamento.

Ainda do mesmo modo que no capítulo anterior, os beneficiários das técnicas, responsáveis pela tutela do pré-embrião desde o princípio, devem prever tudo a respeito do destino dos pré-embriões congelados, especialmente em casos de separação, divórcio, doenças e morte.

A inovação deste projeto refere-se a um prazo para o congelamento e à previsão da possibilidade dos beneficiários das técnicas e nunca os médicos ou serviços de optar pelo descarte dos pré-embriões congelados e não utilizados neste prazo.

Essa questão está em ampla discussão no mundo, não havendo consenso. Aqueles países onde tiveram início tais tratamentos depararam-se com a problemática mais cedo. Na Inglaterra, onde nasceu o primeiro bebê de proveta do mundo (1978), em 1996, foram destruídos três mil pré-embriões congelados não utilizados e abandonados pelos beneficiários das técnicas. Alguns países já determinaram obrigatório o descarte.

De se notar que não é crime o descarte de pré-embriões congelados, primeiro porque não há ainda uma pessoa, não se enquadrando a hipótese no crime de homicídio, segundo porque não há gestação, não se podendo falar em aborto.

O descarte de pré-embriões pela vontade expressa e única dos beneficiários não pode sequer ser considerado contrário à ética, pois atende os requisitos da autonomia, beneficência e justiça. Ora, o pré-embrião antes da implantação no organismo da receptora não tem autonomia, a autonomia e responsabilidade são dos beneficiários que devem lhe determinar o destino. Se o casal ou mulher não quer mais filhos e não deseja doá-los a um casal infértil, deve-se obrigá-los a manter os pré-embriões congelados pelo resto da vida, arcando com as despesas do banco? Com que justificativa?

A maioria dos países que legislaram sobre o assunto, determinaram um prazo máximo para o congelamento e permitiram o descarte pela vontade dos beneficiários.

Atente-se para a existência de um parecer do Conselho Federal de Medicina nesse sentido, enviado pelo ofício nº 7.597/99, em resposta a uma consulta protocolada naquele órgão sob o número 6065/99.

Nos capítulos seguintes, foi mantida a orientação do Conselho Federal de Medicina para o diagnóstico e tratamento de pré-embriões e para a gestação de substituição, equacionados os problemas de acordo com os atuais conhecimentos científicos, bem como com a Lei da Biossegurança e nossa Constituição Federal.

Capítulo próprio foi criado para a questão da filiação, acompanhando-se aqueles que criaram o novo Código Civil, mas de uma forma mais ampla, com previsão de soluções para hipóteses ainda não possíveis em 1975 (data do projeto do Código Civil). Foi garantida à revelação dos dados genéticos e mantidas as considerações quanto à identidade civil para os casos de transplante de órgão e tecidos.

Pretende-se, ainda, sujeitar os serviços que realizam reprodução à fiscalização do Ministério Público, especialmente diante do interesse das pessoas envolvidas, com o objetivo de resguardar a saúde e a integridade física.

Por fim, seguindo a tendência mundial de utilizar o Direito Penal tão somente em último caso, para não haver uma banalização e assim, conseguir uma real eficácia exclusivamente nos casos em que necessário (ultima ratio), foram criminalizadas apenas quatro condutas, deixando-se a punição das demais infrações para os Direitos Civil e Administrativo, bem como para os órgãos de classe a que estão sujeitos os infratores, o que se entende suficiente para impor limites e coibir abusos, considerada a utilização na prática desde antes de 1984, sem notícia de conflitos judiciais a respeito da questão.

Sendo estas as considerações pertinentes nesta oportunidade e pela extrema relevância da matéria, conclamo os ilustres pares a aprovar este projeto de lei.

Sala das Sessões, em 2003
Deputado Pinotti