Art.
3º Para os efeitos desta lei, entende-se
por:
I
– reprodução humana assistida: a intervenção médica
no processo de procriação, com o objetivo de resolução de problemas
de infertilidade humana ou esterilidade, considerando riscos
mínimos à paciente ou o possível descendente;
II
- pré-embriões humanos: o resultado da união in
vitro de gametas, previamente à sua implantação no organismo
receptor, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento;
III
– beneficiários: as mulheres ou os casais que tenham
solicitado o emprego da reprodução assistida;
IV
- consentimento livre e esclarecido: o ato pelo qual
os beneficiários são informados sobre a reprodução humana assistida
e manifestam, em documento escrito, consentimento para a sua
realização.
Art.
4° O consentimento informado será obrigatório e extensivo
aos pacientes inférteis, doadores e depositantes de gametas
e ou pré-embriões e seus cônjuges ou companheiros, se houver.
§
1° No documento de consentimento informado serão detalhadamente
expostos os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias
da aplicação de técnicas de reprodução humana assistida, assim
como os resultados estatísticos e probabilísticos à respeito
da efetividade e da incidência de efeitos indesejados, bem como
dos riscos inerentes ao tratamento.
§
2° As informações devem também incluir aspectos de
natureza biológica, jurídica, ética e econômica.
§
3° O documento de consentimento informado será em formulário
especial, e estará completo com a concordância, por escrito,
da paciente ou do casal infértil.
§
4° Constarão, ainda, no documento de consentimento
informado, as condições em que o doador ou depositante autoriza
a utilização de seus gametas ou pré-embriões,
inclusive postumamente.
§
5° O consentimento informado relacionado ao disposto
no parágrafo anterior, será também exigido do respectivo cônjuge
ou da pessoa com quem viva o doador em união estável.
Art.
5° As técnicas de reprodução assistida não devem ser
aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra
característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate
de evitar doenças ligadas ao sexo ou determinada geneticamente
à criança que venha a nascer.
Art.
6° É proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer
outra finalidade que não seja a procriação humana.
Art.
7° O número de oócitos e pré-embriões a serem transferidos
para a receptora não deve ser superior a três, com o intuito
de não aumentar os riscos já existentes de multiparidade, respeitada
a vontade da mulher receptora a cada ciclo reprodutivo.
Art.
8° Em caso de gravidezes múltiplas, decorrentes do
uso de técnicas de reprodução assistida, é proibida a utilização
de procedimentos que visem a redução embrionária, salvo os casos
de risco de vida para a gestante.
CAPÍTULO
II
Dos Usuários
da Técnica de Reprodução Humana Assistida
Art.
9° Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha
solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta
lei pode ser receptora das técnicas de reprodução assistida,
desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em
documento de consentimento informado.
Parágrafo
único. Estando casada ou em união estável, será necessária
a aprovação do cônjuge ou do companheiro, em processo semelhante
de consentimento informado.
CAPÍTULO
III
Dos Serviços
Que Aplicam Técnica de Reprodução Humana
Assistida
Art.
10 As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas
de reprodução assistida, além de se submeterem às normas éticas
dos respectivos Conselhos, são responsáveis pelo controle de
doenças infecto-contagiosas, coleta, manuseio, conservação,
distribuição e transferência de material biológico humano pare
a usuária de técnicas de reprodução assistida, devendo apresentar
como requisitos mínimos:
I
– responsável por todos os procedimentos médicos e
laboratoriais executados, que será, obrigatoriamente, um médico;
II
– registro permanente das gestações, nascimentos e
malformações de fetos ou recém-nascidos, provenientes das diferentes
técnicas de reprodução assistida aplicadas na unidade, bem como
dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e
pré-embriões;
III
– registro permanente das provas diagnósticas a que
é submetido o material biológico humano que será transferido
aos usuários das técnicas de reprodução assistida, com a finalidade
precípua de evitar a transmissão de doenças;
IV
- registro de todas as informações referentes aos doadores,
pelo prazo de cinqüenta anos;
V
- licença de funcionamento a ser expedida pelo órgão
competente da administração pública.
Parágrafo
único. No caso de enceramento das atividades de uma
unidade médica que realiza reprodução humana assistida, seus
responsáveis são obrigados a transferir os registros e materiais
restantes para órgão competente do Poder Público.
CAPÍTULO
IV
Da Doação
de Gametas ou Pré-Embriões
Art.
11 A doação de gametas ou pré-embriões
obedecerá às seguintes condições:
I
- nunca terá caráter lucrativo ou comercial;
II
- os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores
e vice-versa.
§
1º Será mantido, obrigatoriamente, o sigilo sobre a
identidade dos doadores de gametas e pré-embriões,
assim como dos receptores.
§
2º Em situações especiais, as informações sobre doadores,
por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para
médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.
§
3º As clínicas, centros ou serviços que empregam a
doação devem manter, de forma permanente, um registro de dados
clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma
amostra de material celular dos doadores.
§
4º Na região de localização da unidade, o registro
das gestações evitará que um doador tenha produzido mais que
duas gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão
de habitantes.
§
5º A escolha dos doadores é de responsabilidade da
unidade que, dentro do possível, deverá garantir que o doador
tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima
possibilidade de compatibilidade com a receptora.
§
6º Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas,
unidades ou serviços, nem aos integrantes da equipe multidisciplinar,
que nelas prestam serviços, participar como doadores nos programas
de reprodução assistida, extensiva a proibição aos seus parentes
até o quarto grau.
CAPÍTULO
V
Dos Gametas e Pré-Embriões
Art.
12 Os pré-embriões originados in vitro,
anteriormente à sua implantação no organismo da receptora, não
são dotados de personalidade civil.
Art.
13 Os beneficiários são juridicamente responsáveis
pela tutela do pré-embrião e seu ulterior desenvolvimento no
organismo receptor.
CAPÍTULO
VI
Da Criopreservação
de Gametas ou Pré-Embriões
Art.
14 As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar
espermatozóides, óvulos e pré-embriões.
§
1° O número total de pré-embriões produzidos
em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida
quantos pré-embriões serão transferidos a fresco,
devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado
ou destruído.
§
2° Os beneficiários das técnicas de reprodução assistida,
assim como os doadores e depositantes, devem expressar sua vontade,
por escrito, quanto ao destino que será dado aos gametas e pré-embriões
criopreservados, em caso de separação, divórcio, doenças graves
ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam
doá-los.
§
3° Após três anos de criopreservação, os gametas ou
pré-embriões ficarão à disposição dos beneficiários
das técnicas de reprodução assistida, doadores ou depositantes,
que poderão descartá-los ou doá-los, mantendo as finalidades
desta lei.
§
4° Os pré-embriões em que sejam detectadas
alterações genéticas que comprovadamente venham comprometer
a vida saudável da descendência, serão descartados, após o consentimento
do casal.
CAPÍTULO
VII
Do Diagnóstico
e Tratamento de Pré-Embriões
Art.
15 As técnicas de reprodução assistida também podem
ser utilizadas na prevenção e tratamento de doenças genéticas
ou hereditárias, quando perfeitamente indicadas e com suficientes
garantias de diagnóstico e terapêutica.
§
1° Toda intervenção sobre pré-embriões
in vitro, com fins diagnósticos, não poderá
ter outra finalidade que a avaliação de sua viabilidade ou detecção
de doenças hereditárias, sendo obrigatório o consentimento informado
do casal.
2°
Toda intervenção com fins terapêuticos, sobre pré-embriões
in vitro, não terá
outra finalidade que tratar uma doença ou impedir sua transmissão,
com garantias reais de sucesso, sendo obrigatório o consentimento
informado do casal.
§
3° O tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões
in vitro será de
quatorze dias.
CAPÍTULO
VIII
Sobre a Gestação e Substituição
(Doação
Temporária do Útero)
Art.
16 As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana
podem usar técnicas de reprodução assistida para criar a situação
identificada como gestação de substituição, desde que exista
um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na
doadora genética.
§
1° As doadoras temporárias do útero devem pertencer
à família da doadora genética, num parentesco até o segundo
grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização ética do
Conselho Regional de Medicina.
§
2° A doação temporária do útero não poderá ter caráter
lucrativo ou comercial.
CAPÍTULO
IX
Da Filiação
da Prole
Art.
17 Será atribuída aos beneficiários a condição de paternidade
plena da criança nascida mediante o emprego de técnica de reprodução
assistida.
§
1° A morte dos beneficiários não restabelece o poder
parental dos pais biológicos.
§
2° A pessoa nascida por processo de reprodução assistida
e o doador terão acesso aos registros do serviço de saúde, a
qualquer tempo, para obter informações para transplante de órgãos
ou tecidos, garantido o segredo profissional e o sigilo da identidade
civil dos doadores.
Art.
18 O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer
espécie de direito ou vínculo, quanto à paternidade ou maternidade,
em relação à pessoa nascida a partir do emprego das técnicas
de reprodução assistida, salvo os impedimentos matrimoniais
elencados na legislação civil.
Art.
19 Os serviços de saúde que realizam a reprodução assistida
sujeitam-se, sem prejuízo das competências de órgão da administração
definido em regulamento, à fiscalização do Ministério Público,
com o objetivo de resguardar a saúde e a integridade física
das pessoas envolvidas, aplicando-se, no que couber, as disposições
da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança
e do Adolescente).
CAPÍTULO
X
Das Infrações
e Sanções
Art.
20 As infrações às proibições desta lei serão consideradas
infrações éticas e administrativas.
§
1º As infrações éticas serão disciplinadas em resolução
pelos conselhos a que estão subordinados os profissionais responsáveis
pelas técnicas de reprodução assistida, que também tratarão
da aplicação das respectivas sanções.
§
2º O órgão competente da administração pública
estabelecerá as infrações administrativas e procederá
a respectiva fiscalização.
Art.
21 Aplicam-se todas as disposições da lei civil, para
as faltas e violações ao disposto nesta lei.
Art.
22 Constitui crime fecundar oócito humano, com finalidade
distinta da procriação humana.
Pena - reclusão de 3 (três) a 6(seis) anos,
e multa.
Art.
23 Comercializar ou industrializar pré-embriões
ou gametas humanos.
Pena - reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos,
e multa.
Até
o presente momento não há normativa legal para a utilização
das técnicas de reprodução assistida. O controle de tais práticas
vem sendo basicamente informal, com intervenção mínima do Direito.
Ou seja, na ausência de lei que normatize o uso das técnicas
de reprodução assistida para alcançar a procriação, elas são
permitidas, tendo um controle apenas dos médicos e seu Conselho,
bem como da sociedade, que busca tratamentos que julgam aceitáveis,
segundo seus valores sociais.
O
primeiro bebê de proveta brasileiro, Ana Paula Caldeira, nasceu
em 07 de outubro de 1984, há quase vinte anos. Até que a sociedade
brasileira acreditasse nos efeitos dos novos tratamentos para
infertilidade, os cientistas avançaram em suas pesquisas sem
que tivesse havido uma preocupação social em regulamentar as
novas técnicas. Nem poderia ser diferente, pois caso contrário
haveria um freio ao progresso.
Ao
lado deste controle, denominado informal, temos normas constitucionais
que sempre devem ser observadas e devem ser também analisadas
sob o enfoque da evolução ética e legal da reprodução assistida.
Como expressão primeira de tais normas temos vários direitos,
dentre os quais a inviolabilidade do direito à vida, o incentivo
da pesquisa e do desenvolvimento científico, a liberdade de
consciência e de crença, e a liberdade da expressão de atividade
científica.
Por
outro lado, no capítulo dedicado à família na Constituição Federal,
está definido que, fundado nos princípios da dignidade da pessoa
humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar
é livre decisão do casal, unido em matrimônio ou não, competindo
ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para
o exercício desse direito.
O
direito à procriação é, portanto, assegurado, sendo dever do
Estado permitir o uso da ciência e até incentivar para que o
homem o alcance. Assim, a utilização das técnicas de reprodução
é entendida como direito que deve até ser assegurado pelo Estado.
Entretanto,
essas técnicas encontram hoje poucas limitações legais e, por
causa de seus efeitos, provoca inúmeras controvérsias éticas
e problemas no campo do direito da família.
Neste
aspecto foi estudada a matéria e verificada a necessidade de
uma lei que viabilize o avanço da ciência sem chocar a sociedade,
com um mínimo de controle legal, para assegurar direitos fundamentais
previstos na nossa Constituição Federal, bem como para evitar
algumas perplexidades no âmbito do Direito de Família.
Pretende-se
com esta lei, assegurar o direito à procriação, o direito de
se fundar uma família. Foram deixadas de lado as questões que
podem circundar a matéria, mas que demandam maior rigor e maior
preocupação social como a clonagem, que não representa interesse
médico e nem se justifica em matéria de reprodução humana assistida.
Por
isso define-se o conceito de reprodução assistida legalmente,
considerando-a a participação médica no processo de procriação,
definindo-se o pré-embrião sempre como união dos gametas masculino
e feminino.
Justifica-se
a exclusão de temas ligados ao patrimônio genético, pois, diante
do medo de criação de aberrações e clones para fins contrários
a ética e a moral, veio em 05 de janeiro de 1995, a Lei n.°
8.974, que impõe severas restrições ao uso das técnicas de engenharia
genética, entre as quais a manipulação de células germinais
humanas. No entanto, verifica-se que esta lei não regulamenta,
nem se aplica às técnicas de reprodução assistida, motivo desta
iniciativa.
Observa-se
que a classe médica brasileira acompanhou o mundo em matéria
de reprodução, mas sempre com a preocupação de usar a reprodução
assistida apenas para auxiliar a resolução dos problemas de
esterilidade humana, facilitando o processo de procriação, quando
outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes.
Desde
1988 há o interesse da classe médica pela normatização dos tratamentos,
com destaque para a proibição, naquela época, da prática ou
indicação de atos médicos desnecessários, exigindo, ainda, em
seu Código de Ética, o consentimento informado dos pacientes
para a realização dos procedimentos de fecundação
artificial.
Ampliada
a utilização das técnicas de reprodução assistida, a comunidade
científica determinou a instituição de normas éticas específicas
através da Resolução CFM nº 1.358/92, única disciplina sobre
reprodução assistida vigente hoje.
Cioso
observar que não há notícia de conflitos judiciais a respeito
da matéria, o que bem demonstra que a resolução do Conselho
Federal de Medicina deve ser levada em conta. Entretanto são
necessários alguns ajustes, seja para ampliar o âmbito de proteção
da norma, seja para atualizá-la tendo em vista que a sociedade
demanda maior modernização da lei.
Sabe-se
que mesmo sendo praticamente inexistentes os conflitos, muitas
são as dúvidas e poucas as soluções não controvertidas, porque
o assunto envolve questões como o início da vida, a sadia qualidade
de vida, a preservação de patrimônio genético e outras não menos
polêmicas como determinação de paternidade, descarte de embriões
e, ainda, possibilidade de utilização de sêmen congelado após
a morte.
Justifica-se,
assim, mais uma vez, a importância de legislar sobre a matéria.
Com
relação ao consentimento informado, diante de sua importância
fundamental para a realização dos procedimentos, pretende-se
impor seja ele documentado, de forma escrita e o mais completo
possível, com destaque para obrigação de ser firmado por todos
os envolvidos no tratamento.
Impôs-se
a forma legal, para constituir prova em caso de eventual disputa
judicial e também para a garantia de todos os envolvidos. Por
isso mesmo, no presente projeto foi determinado que no documento
conste o maior número de informações possíveis a respeito do
tratamento e suas conseqüências, até mesmo jurídicas.
Há
também proibição de utilização das técnicas para fins de eugenia,
sob pena de haver infração à norma constitucional do artigo
225. Entretanto, diante da possibilidade que a ciência tem de
evitar doenças, mister se faz a previsão da exceção de forma
expressa.
O
projeto segue a mesma preocupação mundial em reduzir o número
de gestações múltiplas, o que é compatível com a limitação da
transferência de embriões. A limitação a três transferências
evitaria as gestações múltiplas e extinguiria o risco da temida
redução embrionária. Temida, pois a redução embrionária significa
verdadeiro aborto, com a interrupção do desenvolvimento de um
ou mais embriões já implantados no útero materno.
Observe-se
que neste tópico foi seguida a orientação do Código Penal no
que tange ao aborto, proibindo-se expressamente a redução embrionária,
com a ressalva idêntica ao Código Penal para os casos de risco
de vida para a gestante.
No
projeto há ainda determinação expressa quanto aos usuários das
técnicas de reprodução assistida, respeitada a Constituição
Federal no que tange à igualdade de acesso.
Outro
ponto relevante refere-se aos serviços de saúde que aplicam
as técnicas em exame, com exigência de registros permanentes
dos procedimentos para permitir o controle da Administração
Pública e previsão para o caso de encerramento das atividades,
o que é essencial, consideradas as conseqüências dos tratamentos.
No
capítulo IV são impostos limites claros para as doações de gametas
e pré-embriões, mais uma vez com respeito à Constituição
Federal que proíbe qualquer comercialização do corpo humano
(artigo 199, parágrafo 4°). No mesmo capítulo está previsto
o anonimato entre doadores e receptores de gametas e pré-embriões,
a pedra fundamental dos tratamentos.
Este
princípio adotado pela Resolução CFM nº 1.358/92 e utilizado
até a presente data sem nenhuma impugnação judicial ou manifestação
social, foi escolhido para proteger a criança nascida do procedimento,
para que ela não se transforme em objeto de disputa entre o
doador e seus pais.
O
anonimato é garantia da autonomia e do desenvolvimento normal
da família fundada por procriação assistida. Não se pode admitir
que um casal que se submete ao tratamento passe a vida inteire
temeroso de ser importunado pelo doador, ou vice-versa.
Algumas
situações podem ser imaginadas pare se calcular o prejuízo que
a família teria caso fosse permitida a revelação da identidade
civil. Por exemplo, um doador de sêmen fica acometido de um
mal que o impede de ter filhos. Em razão disso, desespera-se
e passa a procurar a identidade da família beneficiada com seu
sêmen para reclamar-lhe a prole. Imagina-se o inverso. A criança
nascida perde os pais (beneficiários do tratamento) ou por qualquer
motivo separa-se deles e passa a procurar o doador do gameta,
importunando-o para reclamar uma paternidade que o doador
nunca desejou.
Na
hierarquia de valores, a proteção da família sobrepuja o eventual
direito do filho nascido do tratamento conhecer sua origem via
identidade civil do doador. Não se pretende objetar que a criança
oriunda do procedimento saiba de sua origem. Ela pode e deve
saber do procedimento que a gerou e até sua identidade genética.
Pretende-se tão-somente evitar que seja possível a revelação
da identidade civil dos doadores e receptores, pois sabe-se
que quem doa sêmen ou óvulos o faz somente por altruísmo, sem
nenhum interesse na paternidade.
Quem
deposita sêmen num banco para doação não pretende nenhum tipo
de vinculação com a criança nascida de seu material genético.
Hoje, indiscutivelmente, a paternidade é mais afetiva e social
do que biológica, pelo menos quando dissociada de relações sexuais,
pelo que não há como se sustentar que se conheça a identidade
civil dos doadores.
O
conhecimento da identidade civil nada tem a ver com a dignidade
humana. No caso, há mais dignidade em preservar a identidade
civil dos doadores e receptores do que em revelar. Ademais,
qual o benefício que a revelação traria? Nenhum, certo que se
pretende determinar que não existe vínculo algum entre doadores
e a prole nascida, não havendo nenhum tipo de
filiação.
Que
se conheça a identidade genética em certos casos é possível
e até necessário, em casos de doenças, por exemplo. Mas a identidade
civil é contrária ao melhor interesse da criança. Salienta-se
que, no mundo, a postura predominante é a da preservação do
anonimato. Onde se permite a revelação da identidade civil,
como na Suécia, praticamente desapareceram os doadores.
De
se notar, ainda, que o segredo é, no caso, direito de personalidade
dos doadores e receptores e não pode ser divulgado. O acesso
à informação é limitado pelo segredo, bem maior que deve ser
protegido pelo Direito.
Nesse
âmbito da Medicina Reprodutiva vale citar o Juramento de Hipócrates,
pai da Medicina: "O que quer que eu veja ou ouça, no curso ou
não de minha profissão, nos meus encontros com os homens, se
for algo que não deve ser publicado fora, eu jamais divulgarei,
considerando essas coisas segredos sagrados". O segredo médico
é tão importante que é protegido pelo Direito em todas as esferas
- Civil, Penal e Administrativo.
Não
fosse tal, para proteger os Direitos Humanos e as liberdades
fundamentais, a Declaração Universal do Genoma Humano e dos
Direitos Humanos dispõe, em seu artigo 7°, que "Quaisquer dados
genéticos associados a uma pessoa identificável e armazenados
ou processados para fins de pesquisa ou para qualquer outra
finalidade devem ser mantidos em sigilo, nas condições previstas
em lei". Seguindo, no artigo 9°, diz que "as limitações ao sigilo
só poderão ser prescritas em lei, por razões de força maior
, dentro dos marcos da legislação pública internacional e da
lei internacional de direitos humanos".
O
direito de acesso à informação não é e não pode ser considerado
como razão de força maior, até porque, em se tratando de identidade
civil, é contrário aos interesses da criança.
De
outra parte, se a intenção da lei é prevenir casamentos consangüíneos,
observa-se que a questão foi abordada de maneira adequada pelo
projeto, que apresentou solução sem que a revelação da identidade
civil fosse condição para tanto, limitando o número de doações.
Por
fim, não se pode perder de vista que, mesmo com a imposição
legal do anonimato entre doadores e receptores de gametas, mais
adequada à sociedade e adotada pelos países mais desenvolvidos,
a Constituição garante sempre o acesso ao Poder Judiciário.
Em algum caso excepcional, se procurado, o Poder Judiciário
deverá avaliar a questão.
O
projeto também pretende colocar uma pá de cal nas discussões
em torno dos direitos dos pré-embriões antes da
implantação no organismo da receptora, ao excluir-lhes expressamente
a personalidade civil. E mais, para os proteger, determina quem
fica responsável juridicamente por eles.
Diante
do avanço na medicina mundial, foi imperioso um capítulo a respeito
do congelamento de pré-embriões produzidos em
laboratório.
A
técnica de criopreservação de pré-embriões é relativamente
nova, anunciada a primeira utilização em 1983 na Austrália,
e praticada como auxiliar nas técnicas de reprodução assistida
desde então na França, Grã-Bretanha, Portugal, Suécia, Suíça,
Áustria, Dinamarca, Estados Unidos e Espanha, dentre outros
países, onde a preocupação legal limita-se à proibição ou não
do descarte ou destruição dos embriões congelados.
Até
na Itália, país reconhecidamente religioso, com força da Igreja
Católica, utiliza-se a técnica de congelamento. É notório o
alto custo da medicação, bem como a possibilidade de insucesso
na fertilização dos óvulos. O índice de fertilização é de cerca
de 80% dos óvulos inseminados e, dos fertilizados, somente 50%
evoluem adequadamente para a transferência ao útero materno.
Usualmente o número de embriões é inferior ao de óvulos coletados.
Desta forma, devem ser fertilizados quantos óvulos forem coletados,
para aumentar a chance dos pacientes em cada ciclo reprodutivo.
Ressalte-se
que os tratamentos estão sendo realizados sem que se tenha notícia
de descarte de embriões ou de problemas judiciais, desde 1984,
quando nasceu o primeiro bebê, fruto de fertilização in vitro no Brasil.
O
que se pretende, portanto, com o capítulo da criopreservação
é viabilizar os tratamentos sem a limitação de produção de pré-embriões,
acompanhando, ainda, os países desenvolvidos no que tange ao
uso da técnica de congelamento, que se sabe, através de pesquisas
científicas, não prejudicar os embriões. Muitas crianças saudáveis
já nasceram de reprodução assistida realizada com técnica de
congelamento no Brasil e no mundo.
Seguindo
a orientação do Conselho Federal de Medicina, pretende-se a
proibição do descarte ou destruição de embriões quando da produção,
impondo-se em princípio o congelamento.
Ainda
do mesmo modo que no capítulo anterior, os beneficiários das
técnicas, responsáveis pela tutela do pré-embrião desde o princípio,
devem prever tudo a respeito do destino dos pré-embriões
congelados, especialmente em casos de separação, divórcio, doenças
e morte.
A
inovação deste projeto refere-se a um prazo para o congelamento
e à previsão da possibilidade dos beneficiários das técnicas
e nunca os médicos ou serviços de optar pelo descarte dos pré-embriões
congelados e não utilizados neste prazo.
Essa
questão está em ampla discussão no mundo, não havendo consenso.
Aqueles países onde tiveram início tais tratamentos depararam-se
com a problemática mais cedo. Na Inglaterra, onde nasceu o primeiro
bebê de proveta do mundo (1978), em 1996, foram destruídos três
mil pré-embriões congelados não utilizados e abandonados
pelos beneficiários das técnicas. Alguns países já determinaram
obrigatório o descarte.
De
se notar que não é crime o descarte de pré-embriões
congelados, primeiro porque não há ainda uma pessoa, não se
enquadrando a hipótese no crime de homicídio, segundo porque
não há gestação, não se podendo falar em aborto.
O
descarte de pré-embriões pela vontade expressa
e única dos beneficiários não pode sequer ser considerado contrário
à ética, pois atende os requisitos da autonomia, beneficência
e justiça. Ora, o pré-embrião antes da implantação no organismo
da receptora não tem autonomia, a autonomia e responsabilidade
são dos beneficiários que devem lhe determinar o destino. Se
o casal ou mulher não quer mais filhos e não deseja doá-los
a um casal infértil, deve-se obrigá-los a manter os pré-embriões
congelados pelo resto da vida, arcando com as despesas do banco?
Com que justificativa?
A
maioria dos países que legislaram sobre o assunto, determinaram
um prazo máximo para o congelamento e permitiram o descarte
pela vontade dos beneficiários.
Atente-se
para a existência de um parecer do Conselho Federal de Medicina
nesse sentido, enviado pelo ofício nº 7.597/99, em resposta
a uma consulta protocolada naquele órgão sob o número 6065/99.
Nos
capítulos seguintes, foi mantida a orientação do Conselho Federal
de Medicina para o diagnóstico e tratamento de pré-embriões
e para a gestação de substituição, equacionados os problemas
de acordo com os atuais conhecimentos científicos, bem como
com a Lei da Biossegurança e nossa Constituição Federal.
Capítulo
próprio foi criado para a questão da filiação, acompanhando-se
aqueles que criaram o novo Código Civil, mas de uma forma mais
ampla, com previsão de soluções para hipóteses ainda não possíveis
em 1975 (data do projeto do Código Civil). Foi garantida à revelação
dos dados genéticos e mantidas as considerações quanto à identidade
civil para os casos de transplante de órgão e tecidos.
Pretende-se,
ainda, sujeitar os serviços que realizam reprodução à fiscalização
do Ministério Público, especialmente diante do interesse das
pessoas envolvidas, com o objetivo de resguardar a saúde e a
integridade física.
Por
fim, seguindo a tendência mundial de utilizar o Direito Penal
tão somente em último caso, para não haver uma banalização e
assim, conseguir uma real eficácia exclusivamente nos casos
em que necessário (ultima
ratio), foram criminalizadas apenas quatro
condutas, deixando-se a punição das demais infrações para os
Direitos Civil e Administrativo, bem como para os órgãos de
classe a que estão sujeitos os infratores, o que se entende
suficiente para impor limites e coibir abusos, considerada a
utilização na prática desde antes de 1984, sem notícia de conflitos
judiciais a respeito da questão.
Sendo
estas as considerações pertinentes nesta oportunidade e pela
extrema relevância da matéria, conclamo os ilustres pares a
aprovar este projeto de lei.