PROJETO DE LEI Nº 1953, DE 1999

Autor: Silas Câmara

Regulamenta o inciso II do parágrafo 1° e o parágrafo 4° do art. 225 da Constituição, os arts. 1°, 8°, alínea "j", 10, "c", 15 e 16.3 e 16.4 da Convenção Diversidade Biológica, dispõe sobre o Acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, sobre a repartição de benefícios e o Acesso à Tecnologia e Transferência de Tecnologia derivados de sua utilização, e dá outras providências.

(APENSE-SE AO PROJETO DE LEI N 4842, DE 1998)

o CONGRESSO NACIONAL decrera:

TÍTULO I
DAS DISPOSIÇOES GERAIS


Art1°
Esta Lei dispõe sobre os direitos e as obrigações Relativos ao Acesso a componente do patrimônio genético existente no território nacional, na plataforma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva ao conhecimento tradicional a ele associado. sobre a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da exploração do patrimônio genético e sobre o acesso a tecnologias e transferência de tecnologias que façam uso de componentes deste patrimônio.

Parâgrafo único. O acesso a componente do patrimônio genético para fins de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico. bioprospecção ou conservação, visando sua aplicação industrial ou de outra natureza, far-se-á na forma desta Lei, sem prejuízo dos direitos de propriedade material ou imaterial que incidam sobre o componente do patrimônio genético acessado ou sobre o local de sua ocorrência.

Art. 2° Pertence à União o patrimônio genético existente no territôrio nacional, na platafonna continental. no mar territorial. ou na zona econômica exclusiva.

Art. 3° O Poder Público zelará pela preservação da diversidade e pela integridade do patrimônio genético do País e promoverá medidas para a utilização sustentável de seus componentes e a fiscalização das entidades dedicadas à pesquisa e desenvolvimento e à manipulação de material genético.

Art. 4° Esta Lei não se aplica ao material genético humano.

Art. 5° É assegurado o intercâmbio de componentes do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado praticado entre comunidades indígenas e entre comunidades locais. para seu prôprio beneficio e baseado em prática costumeira.

Art. 6° É proibido o acesso ao patrimônio genético para o desenvolvimento de atividades nocivas ao meio ambiente e à saúde humana e para o desenvolvimento de armas biolôgicas.

TÍTULO II
DAS DEFINIÇÕES


Art. 7° Além dos conceitos e das definições constantes da Convenção sobre Diversidade Biológica. considera-se, para os fins desta Lei:

I -
Patrimônio genético: a informação contida nos genes de espécime vegetal. microbiano ou animal ou em substâncias provenientes do metabolismo destes organismos, vivos ou mortos, encontrados em condições in situ ou mantidos em coleções ex situ, desde que tenham sido coletados em condições in situ, no território nacional, na platatorma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva:

II -
Conhecimento tradicional associado: informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou comunidade local. sobre as propriedades ou usos de espécies vegetais, microbianas ou animais, constituintes do patrimõnio genético;

III -
Comunidade local: grupo humano com características culturais próprias. presente no mesmo local por sucessivas gerações:

IV -
Acesso ao patrimônio genético: obtenção de amostra de componente do patrimônio genético para fins de pesquisa científica ou, de desenvolvimento tecnoló gico;

V -
Acesso ao conhecimento tradicional associado: obtenção de informação sobre conhecimento ou prática, individual ou coletiva, de comunidade indígena ou comunidade local, sobre as propriedades ou usos de espécies vegetais, microbianas ou animais, constituintes do patrimônio genético, para fins de pesquisa científica, ou de desenvolvimento tecnológico;

VI -
Acesso à tecnologia e transferência de tecnologia: acesso ao conhecimento necessário ao desenvolvimento de processos e produtos que utilizem componentes do patrimônio genético ou o conhecimento tradicional associado.

VII -
Bioprospecção: atividade exploratória que visa identificar, com ajuda ou não de conhecimento tradicional associado componentes do patrimônio genético com potencial de uso sócio-econômico.

TÍTULO III
DAS ATRIBUIÇÕES INSTITUCIONAlS


Art.8°
O órgão do Poder Executivo incumbido de promover a implementação desta Lei e dos atos internacionais relativos ao patrimônio genético contará, para seu funcionamento, com um Conselho Deliberativo e um Comitê Técnico de Assessoramento e terá, dentre outrasas seguintes competências:

I -
conceder autorização e fiscalizar o acesso a amostra de componente do patrimônio genético existente em condições in situ, no território nacional. na plataforma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva e ao conhecimento tradicional associado:

II -
conceder autorização e fiscalizar a remessa de amostra de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado para instituição nacional, pública ou privada, ou para instituição sediada no exterior;

III -
acompanhar e avaliar o acesso a tecnologias e a transferência de tecnologias que façam uso de amostra de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado;

IV -
divulgar listas de espécies de intercâmbio facilitado constantes de acordos intemacionais, inclusive sobre segurança alimentar, dos quais o País seja signatário, de acordo com o parágrafo único do art. 10 desta Lei;

V -
criar e manter base de dados para registro de informações obtidas no campo durante a coleta de amostra de componente do patrimõnio genético;

VI -
criar e manter base de dados para registro de informações sobre o conhecimento tradicional associado;

VII -
criar , manter e divulgar base de dados para registro de informações sobre todas as autorizações de acesso e remessa de amostra de componente do patrimônio genético e do conhecirnento tradicional associado;

§ 1° Compete ainda, ao órgão de que trata o caput deste artigo, ouvido o Conselho Deliberativo e de acordo com o regulamento desta Lei:

I -
conceder a instituição pública ou privada nacional, que exerça atividade de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e afins, e a universidade nacional, pública ou privada, autorização especial de acesso, com prazo de duração de até dois anos, renovável por iguais períodos;

II -
credenciar instituição pública nacional de pesquisa e desenvolvimento delegando-lhe mediante convênio, competência para autorizar a remessa de amostra de componente do patrimônio genético para instituição nacional, pública ou privada, ou para instituição sediada no exterior, respeitadas as exigências do art. 10 desta Lei :

III -
delegar a instituição pública nacional de pesquisa e desenvolvimento, competência para. quando for o caso, firmar em nome do Órgão de que trata o caput deste artigo, o Contrato de Utilização de Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios de que trata o art. 18 desta Lei;

IV -
credenciar instituição pública e privada nacional para. mediante convênio, ser fiel depositária de amostra representativa de componente do patrimônio genético a ser remetida para instituição nacional, pública ou privada, ou sediada no exterior;

§ 2°
A vinculação, as competências, as atribuições e a composição do Conselho Deliberativo e do Comitê Têcnico de Assessoramento serão definidas no regulamento.

TITULO IV
DO ACESSO A AMOSTRA DE COMPONENTE DO PATRIMÔNIO GENÉTICO E AO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO


Art. 9° O acesso a componente do patrimônio genético existente em condições in situ, no território nacional, na plataforma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva e ao conhecimento tradicional associado far-se-á mediante a coleta de amostra e de informação, respectivamente, e somente será autorizada a instituição nacional qualificada, conforme definido em regulamento, pública ou privada, que exerça atividades de pesquisa e desenvolvimento.

§ 1° A Autorização de Acesso fica condicionada ao recolhimento de recolhimentos, à assinatura de Termo de Responsabilidade e ao cumprimento das demais exigências, na forma do regulamento.

§ 2°
A participação de pessoa jurídica sediada no exterior na coleta de amostra de componente do patrimônio genético in situ. e no acesso ao conhecimento tradicional associado, somente será autorizada quando feita em conjunto com instituição nacional qualificada, devidamente autorizada, conforme definido em regulamento, sendo a coordenação das atividades obrigatoriamente realizada por esta última e desde que todas as instituições envolvidas exerçam atividades de pesquisa e desenvolvimento.

§ 3° A autorização para acesso à amostra de componente do patrimônio genético de espécie ameaçada de extinção dependerá da anuência prévia do órgão competente, conforme dispuser o regulamento desta Lei.

§ 4° A autorização para o ingresso em terras indígenas, para acesso à amostra de componente do patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, dependerá da anuência prévia do órgão indígena oficial, ouvida a comunidade indígena envolvida.

§ 5° A autorização para o ingresso em áreas protegidas, para acesso à amostra de componente do patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, dependerá da anuência prévia do órgão competente, conforme dispuser o regulamento desta Lei.

§ 6° A autorização para o ingresso em área de propriedade privada. para acesso à amostra de componente do patrimônio genético, dependerá da prévia anuência do proprietário, responsabilizando-se o beneficiário da autorização a ressarci-lo por eventuais danos ou prejuízos causados, desde que devidamente comprovados.

§ 7° A autorização para o ingresso nas áreas indispensáveis à segurança nacional, para acesso à amostra de componente do patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado. ficará sujeita à audiência prévia do Conselho de Defesa Nacional;

Art. 10 A remessa de amostra de componente do patrimônio genético para instituição destinatária pública ou privada, nacional ou sediada no exterior, será efetivada mediante a informação do uso pretendido, e a prévia assinatura pela mesma, de Termo de Transferência de Material ou Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e Repartição de Benefícios, observado o cumprimento cumulativo das seguintes condições:

I - depósito de amostra representativa em banco depositário sediado em instituição credenciada de acordo com o inciso IV do § 1° do art. 8° desta Lei;

II - fornecimento de informação obtida no campo, durante a coleta. para registro em base de dados mencionada no inciso V do art. 8° desta Lei.

III - fornecimento de informação sobre tradicional associado, se houver, para registro em mencionada no inciso VI do art. 8° desta Lei.

IV - fornecimento de informações, quando for o caso, sobre Acesso à Tecnologia e Transferência de Tecnologia de que tratam os arts. 11. 12 e 13 desta Lei. sem prejuízo da legislação de propriedade industrial, conforme disposto na Lei 9279, de 14/05/96.

Parágrafo único. A remessa de amostra de componente do patrimônio genético de espécies consideradas de intercâmbio facilitado em acordos internacionais, inclusive sobre segurança alimentar, dos quais o País seja signatário, deverão ser efetuadas em conformidade com as condições definidas nestes acordos. mantidas as exigências constantes nos incisos I, II, III e IV deste artigo.

TÍTULO V
DO ACESSO À TECNOLOGIA E TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA

Art. 11
A instituição que receber amostra de componente do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, facilitará o acesso e a transferência das tecnologias que fizerem uso desse patrimônio ou desse conhecimento à instituição nacional responsável pelo acesso e pela transferência de amostra de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado ou instituição por ela indicada.

Art. 12 O acesso à tecnologia e a transferência de tecnologia entre as instituições de pesquisa e desenvolvimento, públicas e privadas, nacionais e sediada no exterior poderá realizar-se mediante programa conjunto de pesquisa e desenvolvimento que tenha por objetivo a difusão e o desenvolvimento de tecnologias para a conservação e utilização sustentável da diversidade biológica ou que utilizem amostra do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, constituído, entre outros, de:

I - atividades de pesquisa e desenvolvimento:

II - formação de recursos humanos:

III - intercâmbio de informações;

IV - consolidação de infra-estrutura de pesquisa: ou

V - estabelecimento de empresas de base tecnológica.

Art. 13 As empresas que, no processo de garantir o acesso e a transferência de suas tecnologias às instituições nacionais, públicas ou privadas, responsáveis pelo acesso e pela transferência de amostra de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado, investirem em atividades de pesquisa e desenvolvimento no País, que sejam pertinentes à conservação e utilização sustentável da diversidade biológica ou que utilizem o patrimônio genético ou o conhecimento tradicional associado, farão jus aos benefícios contorme a Lei n° 8.661, de 2 de junho de 1993. que dispõe sobre os incentivos fiscais para a capacitação tecnológica da indústria e da agropecuária, e a outros instrumentos de estimulo, nos termos do regulamento.

TÍTULO VI
DA REPARTlÇÃO DE BENEFÍCIOS

Art. 14 Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, obtidos por instituição nacional ou com sede no exterior, serão repartidos de forma justa e equitativa, em percentual a ser definido no regulamento:

I - com a União, em qualquer caso:

II - com as comunidades indígenas, quando a amostra for coletada em terra indígena;

III - com as comunidades indígenas ou comunidades locais, quando a coleta envolver conhecimento tradicional associado;.

IV - com os Estados, os Municípios e o proprietário privado, quando a amostra for coletada em área de seus respectivos domínios, a titulo de incentivo para preservação do patrimônio genético,

Art. 15 Os benefícios decorrentes da exploração econômica do patrimônio genético acessado por instituição nacional ou instituição sediada no exterior, a serem repartidos com a União, de forma justa e eqüitativa, poderão constituir-se, dentre outros, de:

I - divisão de lucros e de "royalties" resultantes da exploração econômica de processos e produtos desenvolvidos a partir de amostra de componente do patrimônio genético;

II - acesso a tecnologias e transferência de tecnologias:

III - licenciamento livre de ônus, de produtos e processos: e

IV - capacitação de recursos humanos.

Art.16 A exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético acessada em desacordo com as disposições desta Lei, sujeitará o infrator ao pagamento à União de indenização correspondente a trinta por cento do lucro obtido na comercialização de produto ou dos "royalties" obtidos de terceiros pelo infrator, na hipótese de licenciamento de processo ou do uso da tecnologia, protegidos ou não por propriedade intelectual, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.

Art.17 O Termo de Transferência de Material é um termo de adesão a ser firmado previamente e devolvido pela instituição destinatária de amostra de componente do patrimônio genético.

Parágrafo único O Termo de Transferência de Material, conforme modelo aprovado pelo regulamento desta Lei, deverá contemplar a repartição de benefícios, conforme disposto nos arts. 14 e 15 desta Lei.

Art.18 O Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e Repartição de Benefícios, instrumento jurídico multilateral, deverá indicar e qualificar com clareza as partes contratantes, a saber:

I - de um lado:

a) a União Federal, representada pelo Órgão referido no art. 8° desta Lei; e

b) o proprietário da área, pública ou privada; ou o representante da comunidade indígena e do órgão indígena oficial: ou o representante da comunidade local.

II - de outro lado:

a) a instituição nacional autorizada a efetuar o acesso: e

b) a instituição destinatária.

Art. 19 São cláusulas essenciais do Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e Repartição de Benefícios, as que disponham sobre:

I - objeto. os seus elementos. a quantificação da amostra e

II - prazo de duração do contrato:

III - forma de repartição justa e equitativa de benefícios:

IV - direitos e responsabilidades das partes:

V - direito de propriedade intelectual:

VI - condições de acesso a tecnologias e transferência de tecnologias, quando for o caso:

VII - rescisão:

VIII - penalidade:

IX - foro.

TÍTULO VII
DAS INFRAÇÕES E DAS SANÇÕES PENAIS


Art. 20 Constituem crimes contra o patrimônio genético:

I - coletar amostra de componente do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado existente no território nacional, na plataforma continental, no mar territorial ou na zona econômica exclusiva, para si ou para outrem, em desacordo com esta Lei.;

Pena - reclusão de seis meses a quatro anos e multa de R$ 200,00 (duzentos reais) a R$5.000,00 (cinco mil reais).

II - utilizar amostra do patrimônio genético para fins econômicos em desacordo com as cláusulas constantes do Termo de Transferência de Material ou do Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e Repartição de Benefícios;

Pena: reclusão de seis meses a cinco anos e R$500,00 (quinhentos reais) a R$10.000,00 (dez mil reais).

III - remeter para o exterior amostra de componente do patrimônio genético, sem a autorização prevista nesta Lei;

Pena - reclusão de seis meses a seis anos e multa de R$2.000,00 (dois mil reais) a R$15.000,00 (quinze mil reais).

IV - utilizar amostra de componente do patrimônio genético para práticas nocivas ao meio ambiente e á saúde humana:

Pena - reclusão de quatro a oito anos e multa de R$5.000,00 (cinco mil reais) a R$20.000,00 (vinte mil reais).

V - utilizar amostra de componente do patrimônio genético para o desenvolvimento de armas biológicas;

Pena - reclusão de doze a trinta anos e multa de R$20.000,00 a R$100.000,00.

§ 1° Incorre nas mesmas penas o mandante ou quem, de qualquer modo, concorrer para a prática destes crimes.

§ 2° Além da pena prevista no inciso I deste artigo, o material ou o produto do material acessado e os instrumentos utilizados pelos infratores serão apreendidos.

§ 3° O material ou o produto e os instrumentos de que trata o parágrafo anterior terão sua destinação definida pelo órgão competente.

Art. 21 Se a infração for cometida por pessoa jurídica, ou com seu concurso, incorrerão nas mesmas penas previstas no art. 18 desta Lei os seus diretores, proprietários ou gerentes responsáveis pelo ato, ficando sujeita à multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), à perda de qualquer incentivo fiscal, ao cancelamento da autorização para acessar amostra de componente do patrimônio genético, e impedida de firmar qualquer contrato com a Administração Pública, pelo prazo de dez anos.

TÍTULO VIII
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS


Art. 22 A concessão de direito de.propriedade intelectual pelos órgãos competentes, sobre processo e produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, fica condicionada à observância desta Lei .

Art. 23 A fiscalização, a interceptação e a apreensão de amostra de componente do patrimônio genético acessada em desacordo com as disposições desta Lei serão exercidas por órgãos federais de acordo com o que dispuser o regulamento, podendo ainda, tais atividades serem descentralizadas mediante convênios.

Art. 24 Para os efeitos desta Lei, a espécie arneaçada de extinção será aquela declarada como tal, em lista única oficial pelo órgão competente, conforme dispuser o regulamento desta Lei.

Art. 25 Pela prestação dos serviços previstos nesta Lei será cobrada retribuição, cujo valor e processo de recolhimento serão estabelecidos em ato do titular do órgão da Administração Pública Federal que estiverem vinculados tais serviços.

Parágrafo único - Os recursos provenientes da retribuição de que trata este artigo, bem como aqueles oriundos da repartição de beneficios devidos à União, constituirão receita própria do Órgão de que trata o art. 8°, cuja aplicação será definida em resolução do seu Conselho Deliberativo.

Art. 26 O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de cento e vinte dias após sua publicação.

Art. 27 Esta Lei entrará em vigor cento e oitenta dias após a sua publicação.

JUSTIFICATIVA
No remoto ano de 1876, um botânico inglês, Alexander Wickhan, embarcava, clandestinamente, no navio de bandeira britânica Amazonas, com destino à Inglaterra, setenta mil sementes de Hevia brasiliensis, a nossa seringueira. Começava ali a destruição da economia da borracha e o fim de um tempo de riqueza, prosperidade e progresso nunca mais visto na Amazônia.

Das setenta mil sementes contrabandeadas, sete mil brotaram. Transportadas e aclimatadas as mudas no Ceilão, passaram a produzir seringa de melhor qualidade e menor preço que a nossa Hevea nativa. Em 1901, além das plantações inglesas no Ceilão. começa o cultivo da seringueira nas colônias holandesas do Oriente. Os alemães fazem experimentos de plantio na África e os franceses na Indochina.

A produção da borracha nacional representava 50% da produção mundial em 1910. Em 1926, apenas uma e meia décadas depois, representava pouco mais de 5%.

Mais de cem anos depois, a história continua se repetindo. Nossos recursos genéticos continuam sendo contrabandeados por botânicos, zoólogos, etnólogos e outros especialistas. disfarçados de turistas, missionários ou ambientalistas. Junto com os nossos recursos genéticos são roubados também o conhecimento das populações indígenas e tradicionais sobre o uso desses recursos.

A floresta amazónica é a última grande floresta tropical continua do mundo. Em grande medida graças a ela, o Brasil é um dos países de maior diversidade biológica do planeta. Em um só hectare da floresta amazônica existem cerca de 500 espécies vegetais diferentes e cerca de 50 mil espécies de animais e microorganismos. Esse patrimônio genético é a matéria-prima da moderna biotecnologia, tecnologia esta que está na base do desenvolvimento da agropecuária, das indústrias quimico- farmacêuticas e diversos outros segmentos industriais essenciais. Em outras palavras. a alimentação, a saúde e o bem-estar da humanidade dependem, em grande medida. dos recursos genéticos da Amazônia.

Um quarto dos remédios consumidos na América do Norte e na Europa contém um ingrediente ativo proveniente de plantas. Remédios produzidos a partir de plantas faz parte do tratamento médico padrão no tratamento de doenças do coração, leucemia infantil, câncer linfático, glaucoma e muitas outras doenças graves. O mercado mundial desses remédios movimenta mais de 40 bilhôes de dólares anualmente. As principais companhias e instituições financeiras, como o Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, desenvolvem programas de pesquisa em plantas como o principal meio para identificarem novos remédios.

A Organização Mundial da Saúde estima que três e meio bilhões de pessoas nos países em desenvolvimento dependem de remédios a base de plantas para cuidar da saúde. As terapias tradicionais utilizando ervas medicinais vem crescendo em popularidade também nos países desenvolvidos. A FAO estima que entre quatro e seis mil espécies de plantas medicinais são comercializadas no mercado internacional. Em 1992, o crescente mercado de vendas a varejo desse tipo de produto alcançou a cifra de um e meio milhão de dólares nos Estados Unidos e um valor aproximado na Europa.

Estima-se que os países desenvolvidos recebam 5 bilhões e quatrocentos mil dólares anualmente em royalties de produtos das florestas tropicais. Estão operando nos Estados Unidos cerca de 200 empresas com o principal objetivo de fazer a prospecção de novos produtos naturais nas florestas tropicais. São retirados todo ano da Amazônia, cerca de 20 mil exemplares de material genético.

Junto com o material genético são roubados, como disse antes, os conhecimentos das nossas populações indígenas e tradicionais. O conhecimento tradicional pode representar uma economia de cerca de 80% dos investimentos necessários para. a fabricação de um único remédio. Um medicamento novo, para ser produzido e levado ao mercado, consome cerca de 350 milhões de dólares em um período que leva de 5 a 13 anos e gera aproximadamente um bilhão de dólares de lucros por ano. Portanto, a economia proporcionada pelo conhecimento tradicional é da ordem de 300 milhões de dólares.

Por mais de um século, os recursos biológicos foram considerados. no cenário internacional, como uma herança comum da humanidade, à disposição .de qualquer pessoa interessada em utilizá-los. Mas isto mudou. desde a Convenção sobre Diversidade Biológica. concluída no Rio de Janeiro em 1992 e aprovada pelo Brasil em 1994. A Convenção sobre Diversidade Biológica reconhece a soberania dos países sobre os seus recursos genéticos. O acesso a esses recursos só pode ser feito de acordo com as leis e mediante autorização do país que os detém. Os beneficios advindos da exploração econômica dos recursos genéticos devem ser partilhados de forma justa e equitativa, vale dizer, os países que fornecem esses recursos devem ser devidamente remunerados.

Nada disso, todavia, vem sendo observado. A Convenção sobre Diversidade Biológica. em grande parte como resultado da falta de capacidade do Brasil para regulamentar e controlar o que sai por suas fronteiras, segue sendo uma bela carta de intenções.

Vejamos alguns exemplos: Uma comissão de sindicância da Assembléia Legislativa do Acre constatou que, o ano de 1996, mais de 500 quilos de sementes, de várias espécies amazónicas. foram contrabandeadas para países desenvolvidos.

A empresa International Plant Medicine Corp. , com sede na Califórnia, patenteou a Oasca, planta tropical considerada sagrada. usada há pelo menos quatro séculos em rituais religiosos por mais de 300 tribos indígenas da Amazônia. A Oasca é um cipó, com propriedades terapêuticas, de efeitos alucinógenos. Seitas como o Santo Daime. desde a década de trinta, distribuem aos fiéis na forma de chá como sacramento durante os rituais de purificação.

O químico Conrad Gorinsky, presidente da Fundação para Etnobiologia, de Londres, conseguiu, do Escritório de Patentes Europeu, o direito de propriedade intelectual, em escala mundial, sobre dois compostos farmacológicos originários de plantas da Amazônia, cujos usos pertencem à tradição dos índios Wapixana, de Roraima: o Rupununine, que tem aplicações anticoncepcionais, e o Cunaniol, estimulante do sistema nervoso.

O Coriell Cell Repositories, do Coriel lnstitute for Medical Research, da Universidade de Vale, mantém e comercializa, até pela internet, células e DNA de índios brasileiros, como os Karitiana e Suruí. de Rondônia.

Os balcões da Arnerican Type Culture Collection exibem microorganismos patenteados por esses laboratórios, depois de coletados na Amazônia. São vendidos ao preço médio de 500 dólares a cultura.

A Fox Chase Cancer Center, com.sede na Filadélfia, registrou a patente da planta conhecida como quebra-pedra, que tem aplicações específicas contra a hepatite B. O gênero da planta é comum na Arnazônia e suas qualidades terapêuticas sobre complicações hepáticas e renais são há muito conhecidas de índios e caboclos.

A Johnson & Johnson mantêm um acordo de pesquisa com a Faculdade de Farmácia de Ribeirão Preto e propôs um acordo idêntico à Universidade do Amazonas, que recusou a proposta alegando que todos os direitos de publicação, patente ou de processos industriais desenvolvidos a partir das pesquisas passariam a ser de propriedade da Johnson. Já a Phytos Pharmaceuticals Inc. habitualmente convida cientinstas do Brasil. China e Tailândia para "colaborarem em pesquisa. Oferece "treinamento adicional" em seus laboratórios para a classificação de plantas e preparação de extratos certificados. A empresa vende cerca de 20 mil extratos por ano. Outro grupo, a Produtos Farmacêuticos Siemens. mandou cartas a pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, propondo "colaboração em pesquisa" com seus laboratórios na Itália, nas quais especifica até mesmo a transportadora a ser usada para a remessa do material coletado. Já o Instituto de Farmacologia Médica da Universidade de Roma fez propostas formais de pagamento a cientistas brasileiros pela coleta e envio de peles de detenninadas rãs que são fontes primárias de analgésicos muito mais potentes do que a morfina e com menores efeitos colaterais.

Esses últimos exemplos chamam a atenção para uma forma de biopirataria menos evidente que é a obtenção de material genético de forma legal ou, dizendo melhor, aproveitando-se das lacunas na legislação brasileira, através das instituições de pesquisa nacionais, fato que vem sendo denunciado por muitos cientistas brasileiros.

Todos esses dados constam do relatório da CPI da biopirataria. constituída nesta Casa em 1997 para investigar o roubo do nosso patrimônio genético. Uma das conclusões daquela CPI é a de que nós não dispomos de legislação adequada para controlar o acesso aos nossos recursos genéticos e coibir a pilhagem pura e simples.

A biopirataria, como os dados expostos demonstram, causa incalculáveis prejuízos à nação. Precisamos urgentemente de uma legislação capaz de controlar o acesso aos nossos recursos genéticos, coibir a ação dos biopiratas, estimular o desenvolvimento de biotecnologias e assegurar a justa repartição dos benefícios advindos da exploração comercial do nosso patrimônio biológico e cultural. É com este propósito que estamos apresentando o presente projeto.

Salas das Sessões, em 28 de outubro de 1999
Deputado Silas Câmara