PROJETO DE LEI Nº 2855, DE 1997

Autores: Deputado Confúcio Moura

Dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução humana assistida, e dá outras providências.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

TÍTULO I
Dos Princípios Gerais


Art 1º Esta lei regulamenta as técnicas e as condutas éticas sobre a Reprodução Humana Assistida (RHA): Inseminação Artificial (IA), Fecundação "In Vitro" (FJV), Transferência de pré-Embriões (TE), Transferência Intrabutária de Gametas (TIG) e outros métodos, observados os princípios da eficiência e da beneficência.

Art 2º As técnicas de RHA têm por finalidade a participação médica no processo de procriação notadamente ante a esterilidade ou infertilidade humana, quando outras terapêuticas tenham sido consideradas ineficazes.

Art 3º A utilização das técnicas de RHA é permitida nos casos em que haja posssibilidade concreta de êxito e não incorra em risco grave para saúde da mulher ou para a possível descendência.

Art 4º Toda mulher capaz, independentemente de seu estado civil, poderá ser usuária das técnicas de RHA, desde que tenha solicitado e concordado livre e conscientemente em documento de consentimento informado.

Art 5º
É obrigatória a informação completa à paciente ou casal sobre a técnica de RHA proposta, especialmente sobre dados jurídicos, éticos, econômicos, biológicos, detalhamento médico de procedimentos, os riscos e os resultados estatísticos obtidos no próprio serviço e em serviço de referência.

§ 1° A informação prevista no caput é condição prévia para a assinatura da paciente ou do casal de documento formal de consentimento informado escrito em formulário especial.

§ 2° A revogação do consentimento informado poderá ocorrer até o momento anterior à realização da técnica de RHA.

Art 6° É vedada a utilização de técnica de RHA com finalidade:
I - de clonagem, entendida como a reprodução idêntica do código genético de um ser humano;
II - de seleção de sexo ou de qualquer outra característica biológica;
III - eugênica.

Parágrafo único. A vedação prevista no inciso II deste artigo não se aplica nas situações em que se objetive prevenir doenças.

Art 7º
É proibida a fecundação de oócitos com qualquer outra finalidade que não seja a procriação humana.

Art 8º A transferência de oócitos ou pré-embriões para receptora obedecerá aos métodos considerados mais adequado para assegurar a gravidez.

Art 9º Em caso de gravidez múltipla, não será permitida a redução seletiva, exceto se houver risco à vida da gestante.

TÍTULO II
Da doação e dos doadores


Art. 9 A doação de gametas ou pré-embriões será realizada mediante um contrato gratuito, escrito formal e de caráter sigiloso entre os serviços que empregam técnicas de RHA e os doadores, vedada qualquer forma de comercialização ou estímulo financeiro.

Parágrafo único. A quebra do sigilo sobre as condições dos doadores só será permitida em decorrência de motivação médica, podendo ser fomecida informações exclusivamente para equipe responsável pelo caso, preservada a identidade civil do doador .

Art 10 A doação de gametas só poderá ser revogada por infertilidade sobrevinda e se o doador necessitar deles para procriação desde que ainda disponível no serviço médico.

Art 11 cabe ao serviço que emprega técnica de RHA a custódia dos dados de identidade do doador, que deverão ser repassados para os serviços de controle regional e nacional.

Parágrafo único. os serviços médicos de RHA ficam obrigados a colher amostra de material celular dos doadores, assim como manter registro dos seus dados clínicos e de suas características fenotípicas, que serão permanentemente arquivados.

Art 12 O doador deve ser civilmente capaz e ter comprovadamente descartada qualquer possibilidade de transmissão de doenças, especialmente as hereditárias.

Art 13 O serviço médico que emprega técnica de RHA fica responsável por impedir que de um mesmo doador nasça mais de 2 filhos, num mesmo Estado, devendo, para tanto, manter registro das gestações.

Art 14 A escolha do doador, para efeito de reprodução assistida, é de responsabilidade do serviço médico, que deverá zelar para que as características fenotípicas e imunológicas se aproximem ao máximo da receptora.

TÍTULO III
Da gestação de substituição


Art 15 A gestação de substituição é permitida nos casos em que a futura mãe legal, por defeito congênito ou adquirido, não possa desenvolvê-la.

Art 16 A doação temporária do útero não poderá ter objetivo comercial ou lucrativo.

Art 17 É indispensável a autorização do Conselho Nacional de RHA para a doação temporária do útero, salvo nos casos em que a doadora seja parente até 42 grau, consangüíneo ou afim da futura mãe legal.

TÍTULO IV
Dos pais e dos filhos


Art 18 A filiação dos nascidos por RHA rege-se pelo disposto nesta lei e pela legislação que disciplina a filiação em geral.

Art 19 Fica vedada a inscrição na certidão de nascimento de qualquer observação sobre a condição genética do filho nascido por técnica de RHA.

Art 20 O registro civil não poderá ser questionado sob a alegação do filho ter nascido em decorrência da utilização de técnica de RHA.

Art 21 A revelação da identidade do doador, no caso previsto no parágrafo único do artigo 9°, parágrafo único, desta lei, não será motivo para determinação de nova filiação.

Art 22 É vedado o reconhecimento da paternidade, ou qualquer relação jurídica, no caso de morte de esposo ou companheiro anterior à utilização médica de alguma técnica de RHA, ressalvados os casos de manifestação prévia e expressa do casal.

TíTULO V
Da Crioconservação


Art 23 Os serviços médicos especializados em RHA poderão crioconservar gametas e pré-embriões.

Art 24 Os pré-embriões não utilizados a fresco serão crioconservados nos bancos autorizados, por até cinco anos, salvo manifestação em contrário do casal responsável.

Art 25 Após cinco anos, os gametas ou pré-embriões ficarão à disposição dos bancos correspondentes, que deverão descartá-los salvo para ser utilizado em experimentação, observado o disposto no Título VII desta lei.

Art 26 O casal manifestará por escrito o destino que se dará aos pré-embriões a serem crioconservados, em caso de morte de um dos pais ou de separação.

Art 27 Os pré-embriões em que sejam detectadas alterações genéticas que cornprovadamente venham comprometer a vicB saudável da descendência serão descartados após consentimento do casal.

TíTULO VI
Do Diagnóstico e do Tratamento


Art 28 Toda intervenção sobre pré-embrião "in vitro" deve ter a exclusiva finalidade de fazer uma avaliação de sua viabilidade, detecção de doenças hereditárias, com o fim de tratá-las ou impedir sua transmissão, condicionada ao prévio consentimento informado do casal.

Art 29 O diagnóstico e o tratamento de pré-embriões e de embriões não poderão ser objetivos de seleção eugênica.

Art 30 O tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões "in vitro" será de 14 dias.

Parágrafo único. O Conselho Nacional de RHA adotará as atualizações que se fizerem necessárias, caso surjam modificações cientificamente comprovadas.

TíTULO VII
Da investigação e experimeniação


Art 31 Os gametas humanos poderão ser objeto de investigação básica ou experimental, exclusivamente para fins de aperfeiçoamento das técnicas de obtenção, amadurecimento de oócitos crioconservação de óvulos.

§ 1° Os gametas usados na investigação ou experimentação não poderão ter por finalidade a procriação.

§ 2° Nas investigações previstas no caput deste artigo, permite-se, no máximo, até duas divisões celulares.

Art 32 A investigação ou experimentação em pré-embriões depende de consentimento dos doares, do deferimento do Conselho Nacional de RHA e de apresentação prévia de projetos ou protocolos que comprovem seu caráter exclusivamente diagnóstico, terapêutico ou preventivo.

Parágrafo único. Não será permitida alteração do patrimõnio genético não patológico.

Art 33 A investigação ou experimentação em gamefas humanos ou pré-embriões deve se enquadrar nas seguintes finalidades:
I - aperfeiçoar as técnicas de RHA a manipulações complementares, a crioconservação, o descongelamento, o transporte, os critérios de viabilidade de pré-embriões obtidos "in vitro" e a cronologia ótima para as transferências ao útero.
II - desenvolver estudos básicos sobre origem da vida humana, suas fases iniciais, envelhecimento celular, divisão celular, diferenciação, organização celular e desenvolvimento orgânico.
III - estudar a fertilidade e infertilidade masculina ou feminina. ovulação. fracasso no desenvolvimento de oócitos, as anomalias dos gametas ou dos óvulos fecundados;
IV - conhecer a estrutura dos genes, cromossomos dos processos de diferenciação celular, a contracepção ou anticoncepção conhecidas e a in fertilidade de causa imunológíca e hormonal;
V - conhecer a origem do câncer e das enfermidades genéticas hereditárias.

Art 34 Os pré-embriões ou embriões abortados serão considerados mortos ou não viáveis, sendo vedada sua transferência novamente ao útero, permitida sua utilização como objeto de investigação ou experimentação, atendido o disposto no artigo anterior.

§ 1° É permitida a utilização de pré-embriões ou embriões humanos não viáveis para fins farmacêutico, de diagnóstico, terapêutico ou científico, desde que previamente deferida pela Comissão Na- cional de RHA.

§ 2° Os protocolos ou projetos de experimentação em que sejam utilizados pré-embriões humanos não viáveis "in vitro" deverão estar devidamente documentado sobre o material embriológico a ser utilizado, procedência, prazos e objetivos que desejam observar. Concluído o experimento, deverá ser encaminhada cópia do trabalho à Comissão de RA para fins de comprovação e arquivo.

TÍTULO VIII
Dos serviços médicos em R H e das equipes biomédicas


Art 35 Os profissionais e serviços que realizam técnicas de RHA, assim como bancos de recepção, conservação, distribuição de material biológico humano, além de se submeterem às normas éticas dos respectivos conselhos. sujeitam-se ao disposto nesta lei e demais dispositivos legais vigentes.

Art 36 O nível técnico dos profissionais será avaliado pelos seus respectivos Conselhos.

Art 37 Fica criada a Comissão Nacional de RHA vinculada ao Conselho Nacional de Saúde, de caráter permanente, destinada à orientação das técnicas, elaboração de critérios de funcionamento dos serviços públicos e privados de reprodução humana assistida e suas competências.

§ 1° A Comissão terá funções delegadas para autorizar projetos com propósitos de investigação e pesquisa de diagnóstico e terapêuticos.

§ 2° A composição da Comissão deve atender representação social paritária.

§ 3° A Comissão Nacional aprovará seu próprio regulamento interno.

§ 4° Os demais casos que envolvam técnica de RHA, não previstos nesta lei, serão submetidos ao Conselho Nacional de RHA.

TÍTULO IX
Das infrações e das sanções


Art 38 Fecundar óvulos com finalidade distinta da procriação humana.
Pena: reclusão, de 1(um) a 3 (três) anos, e multa.

Art 39 Obter pré-embriões humanos por lavado uterino para qualquer fim.
Pena: reclusão de 1(um) a 3 (três) anos, e multa.

Art 40 Manter uin vitrou óvulos fecundados além do prazo cientificamente recomendado.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos. e multa.

Art 41 Comerciaiizar ou Industrializar pré-em- briões ou células germinativas.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3(três) anos, e multa.

Art 42 Utilizar pré-embriões com fins cosméticos.

Art 43 Misturar sêmen de vários doadores ou óvulos de distintas mulheres para fertilização "in vi- tro" ou transferência intratubária.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art 44 Transferir gametas ou pré-embriões para útero sem a devida garantia biológica ou de vitalidade.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art 45 Revelar a identidade dos doadores.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art 46 Utilizar técnica de reprodução humana assistida com fins eugênicos, seleção racial ou seleção de sexo.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos. e multa.

Art 47 Transferir ao útero pré-embriões, originários de óvulos de várias mulheres.
Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art 48 Intercambiar material genético com objetivo de produção de hlbridos.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, e multa.

Art 49 Transferir gametas ou pré-embriões humanos para útero de outra espécie ou operação inversa.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, e multa.

Art 50 Utilizar da engenharia genética e de outros procedimentos de RHA, com fins militares ou para produzir annas biológicas ou extenninadoras da espécie humana.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. e multa.

Art 51 Clonar ser humano, por qualquer método.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, e multa.

TÍTULO X
Das Disposições Finais


Art 52 Caberá ao Poder Executivo, no prazo de seis meses da promulgação desta lei, dispor sobre:

I - normas técnicas e funcionais para autorização e homologação dos serviços públicos e privados de RHA, bancos de gametas, pré-embriões, células, tecidos e órgãos de embriões-fetos;

II - protocolos de informações sobre doadores, estudos e listagem de enfermidades genéticas ou hereditárias que podem ser detectadas com diagnósticos pré-natal;

III - requisitos para autorização em caráter excepcional para experimentação com gametas, pré- embriões, embriões ou aquelas que poderão ser delegadas ao Conselho Nacional;

IV - normas para transporte de gametas pré-embriões e células germinativas entre serviços.

Art 53 No prazo de um ano, a partir da promulgação desta lei, o Poder Executivo constituirá registro nacional de doadores de gametas pré-embriões para fins de RHA, bem corno cadastro de centros de serviços médicos dedicados à RHA.

JUSTIFICATIVA
Devido aos modernos avanços e descobertas científicas e tecnológicas, tanto na biomedicina, como na biotecnologia, tem surgido novas técnicas, que posssibilitam, cada vez mais, a muitos casais inférteis ou estéries a realização de antigos sonhos de virem a ter os seus próprios filhos, utilizando-se das, permanentemente, inovadoras técnicas de reprodução humana assistida.

O número de casais inférteis ou estéries é muito significativo, sendo que em alguns países, corno a Espanha, atinge índice próximo aos 10%. A estatística brasileira assemelha-se a esta taxa. Destarte, pode-se vislumbrar o grande número de pessoas que poderia desmandar os modernos métodos da reprodução humana assistida.

Os principais procedimentos disponíveis, no momento, são Inseminação Artificial (IA), que pode ser feita com sêmen do esposo ou companheiro ou com sêmen de doador, Fecundação In Vitro (FIV) com Transferência de Embriões (TE) e Transferência Infratubária de Gametas (TIG).

O acelerado processo de pesquisa nesta área não nos permite estabelecer regras que possam ser consideradas definitivas para a matéria. O mundo recentemente se assombrou com a clonagem de animais, por método que prescinde do espermatozóide do macho, abrindo-se a perspectiva técnica de se repetir processo semelhante no ser humano.

Este evento, que rompe barreiras existentes desde a origem do homem, trouxe para todo planeta, com força máxima, a necessidade de estabelecer uma profunda reflexão sobre quais seriam os caminhos e as perspectivas para toda a humanidade.

Se a complexidade e variedade de possibilidades originadas pelos métodos já conhecidos de reprodução humana assistida estava a exigir uma profunda reflexão e disciplinamento de sua utilização, agora, com a concreta possibilidade de se clonar o homem, esta questão se tomou inadiável.

Este projeto procura, portanto, contribuir para o equacionamento adequado das múltiplas questões que surgem a cada dia com o uso dessas novas técnicas. Não se teve a pretensão de disciplinar todas as possibilidades futuras, ficando assim aberto alguns tópicos justamente com objetivo da não amarrar ou invalidar novos procedimentos em estudo.

A ciência avança a passos largos e as normas jurídicas andam sempre atrasadas. Em um tema como este, em que sérias convicções conservadoras, com certeza existentes, poderão inviabilizar a prática da lei, devemos disciplinar sempre restringindo o que romper o eticamente aceitável por nossa sociedade, ao mesmo tempo em que possibilitamos os avanços da pesquisa no campo da Reprodução Humana Assistida (RHA).

Pouco se sabia, há pouco tempo, sobre estas técnicas hoje utilizadas no mundo todo. As questões éticas, aqui falam forte e necessitam de regulamentação, caso contrário, por omissão ou indiferença do governo e dos legisladores, passará, também, a vigorar a lei do neoliberalismo biológico.

Há que se buscar o equilíbrio normativo que permita a um número cada vez maior de brasileiros ter acesso aos serviços de reprodução humana assistida. Os valores éticos e morais devem ser respeitados. O que for benéfico para o indivíduo e que não fira os valores maiores da sociedade deve ser autorizado.

Estamos convencido de que não podemos engressar a ciência e a tecnologia, e de que a lei tem de ter um visão de equilíbrio, para que não seja consumida rapidamente, como algo descartável ou sazonal.

Não podemos cair, jamais, na extremada posição de tudo permitir, em nome da liberdade de iniciativa no campo científico. Este direito deve ser sempre balizado pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Mesmo entendendo que estes métodos tenham ainda baixos índices de êxito, custo elevado para os pacientes e sejam extremamente estressantes, reconhece-se seu enorme valor social, principalmente, quando aplicado para tratamento de casais inférteis, na ausência de outras alternativas terapêutícas.

Ao lado deste reconhecimento e da satisfação de se constatar os avanços já obtidos com estas técnicas e procedimentos, registrando-se a engenhosa capacidade criadora do ser humano, surgem, também, as inquietações e incertezas do uso ostensivo e não regulamentado destes métodos, trazendo questionamentos do uso liberal e suas conseqüências sociais, éticas biomédicas e jurídicas.

São, pois, objetivos deste projeto de lei apoiar o avanço de técnica, ampliar o acesso aos seus benefícios e regulamentar o uso, impedindo o surgimento de distorções que degenerem as relações em sociedade e coloquem em risco a própria humanidade.

Diante do exposto, e pela extrema relevância da matéria, conclamamos os ilustres pares, após intensos debates a aprovarem este projeto de lei.

Sala das Sessões, de ___ de ___________ de 1997
Deputado Confúcio Moura