PROJETO
DE LEI Nº 88/2003
Autor:
Deputado Sanchotene Felice
Regula Procedimentos
Clínicos ou Cirúgicos ou Experimentais em pacientes
terminais, mediante consentimento informado...
Artigo
1º - No tratamento de pessoas com prognóstico
de morte iminente, quando os recursos terapêuticos disponíveis
forem ineficazes, as instituições públicas
ou privadas do Rio Grande do Sul, reconhecidas como Centros de
Excelência na área da saúde, poderão
realizar procedimentos clínicos ou cirúrgicos pioneiros
e experimentais, mediante consentimento informado do paciente.
Parágrafo
1º - No caso de paciente em estado de inconsciência,
de impedimento físico ou psíquico, ou legalmente
incapaz, a autorização poderá ser concedida
por seus familiares ou representantes legais.
Parágrafo
2º - É assegurado ao paciente o direito de
retirar, a qualquer momento, por si ou por seus representantes,
o consentimento outorgado.
Parágrafo
3º - Os Centros de Excelência previstos no
"caput" deverão ser reconhecidos como tal pelo
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul e
dedicar-se ao ensino e à pesquisa em nível de pós-graduação
e à assistência hospitalar.
Artigo 2º - O prognóstico de morte
iminente a que se refere o artigo 1º deverá caracterizar-se
pela comprovada incapacidade de curar, ou conter a progressividade
da doença, à luz dos conhecimentos científicos
protocolarmente disponíveis.
Artigo 3º - O prognóstico de morte
iminente será formalizado por equipe médica de reconhecida
qualificação, familiarizada com a enfermidade do
paciente, integrada por um internista, um neurologista e um cirurgião,
que atuem na Instituição onde está internado
o paciente.
Parágrafo 1º - A equipe de que trata
este artigo poderá convidar outros especialistas que opinem
sobre a matéria e valer-se de seus pareceres.
Parágrafo
2º - O documento mencionado no "caput"
deverá vir acompanhado de parecer favorável do Comitê
de Ética ou Bioética da Instituição,
com recomendação do procedimento clínico
ou cirúrgico autorizado pelo paciente, seus familiares
ou representantes legais.
Artigo 4º - Os médicos responsáveis
pelos procedimentos pioneiros e experimentais deverão ser
pós-graduados, pesquisadores ou profissionais com notório
saber, em atividade, com trabalhos científicos divulgados
em publicações idôneas, não podendo
ser os mesmos que atestam o prognóstico de morte iminente.
Artigo 5º - Quando o procedimento clínico
previsto nesta Lei compreender uso experimental de novos fármacos,
em processo de teste, o respectivo laboratório formalizará
a aquiescência, com o compromisso de fornecer o medicamento
gratuitamente ao paciente, durante o tratamento e manutenção
de sua vida.
Artigo 6º - Os procedimentos de que trata
esta Lei serão custeados pelos recursos do Centro de Excelência
onde está internado o paciente, ou ainda por entidades
públicas ou privadas que se disponham a subsidiá-los,
não impondo ônus financeiro ou patrimonial ao enfermo
e a seus familiares.
Parágrafo
único - Os casos considerados de exceção
ao disposto neste artigo serão decididos mediante recomendação
do Comitê de Ética ou Bioética do Centro de
Excelência onde está internado o paciente.
Artigo 7º - Toda informação
nova, no campo científico, obtida com os procedimentos
clínicos ou cirúrgicos pioneiros a que se refere
esta Lei, será registrada no Centro de Excelência
onde se verificar, comunicada às autoridades sanitárias
estaduais e nacionais e publicada.
Artigo 8º - Esta lei entra em vigor na data
de sua publicação.
Artigo 9º - Revogam-se as disposições
em contrário.
Sala de Sessões, em Porto Alegre, 16 de fevereiro
de 2003
Deputado
Sanchotene Felice
JUSTIFICATIVA
Este Projeto de Lei tem por objetivo fundamental criar oportunidades
para salvar a vida de pacientes em estado terminal e restituir-lhes
a saúde. Ao mesmo tempo, destina-se a viabilizar e disciplinar
procedimentos novos, no interesse das pessoas e da sociedade,
respondendo aos maiores desafios com que se deparam as ciências
médicas em nossos dias. Visa, também, ensejar tranqüilidade
e cobertura legal à classe médica, tantos os atuais
riscos impostos ao exercício profissional, a ponto, de
inibir gestos destemidos em prol de inovações e
constranger o exercício da medicina.
É
importante mencionar, preliminarmente, que a iniciativa encontra
guarida nas recomendações da Associação
Médica Mundial. Esta, na Declaração de Helsinque
VI (documento com sucessivas alterações, sendo a
última em 2000, na Escócia), dentre os princípios
aplicáveis aos casos em que a pesquisa médica combina
com o atendimento ao paciente, assim prescreveu:
"Quando
os métodos preventivos, diagnósticos ou terapêuticos
disponíveis resultarem ineficazes no atendimento de um
doente, o médico, com o consentimento informado do paciente,
pode permitir-se usar procedimentos preventivos, diagnósticos
e terapêuticos novos ou não testados, se, a seu juízo,
eles trazem alguma esperança de salvar a vida, restituir
a saúde ou aliviar o sofrimento" (item 32 da Declaração
de Helsinque VI).
Igualmente,
atende às exigências do Conselho Nacional de Saúde,
particularmente as constantes da Resolução nº
196/96, a qual faz menção explícita à
Declaração de Helsinque. Esta mesma Resolução
dispõe que as pesquisas devem ser aprovadas por um Comitê
de Ética, razão pela qual o Projeto de Lei prevê,
no parágrafo 2º do artigo 3º, a necessidade de
parecer favorável do comitê do Centro de Excelência
onde estiver internado o paciente. Note-se ainda que o Projeto
levou em consideração as diretrizes emanadas pelo
Conselho para Organizações Internacionais de Ciências
Médicas, especialmente as relativas à pesquisa biomédica
que envolve assuntos humanos.
Observe-se,
também, que o Projeto tem diversos dispositivos relacionados
com o consentimento do paciente, incorporando princípios
da jurisprudência e da Bioética formulados na segunda
metade do século XX. No dizer do eminente Professor Doutor
Joaquim Clotet, o consentimento legitima e fundamenta o ato médico
ou de pesquisa como justo e correto. Transcrevo conceito formulado
por Clotet, dada a sua riqueza e a fundamentação
que enseja ao Projeto:
"O
consentimento informado é uma condição indispensável
da relação médico-paciente e da pesquisa
com seres humanos. Trata-se de uma decisão voluntária,
realizada por uma pessoa autônoma e capaz, tomada após
um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação
de um tratamento específico ou experimentação,
sabendo da natureza do mesmo, das suas conseqüências
e dos seus riscos"
E
mais adiante, o mesmo mestre de Bioética dos cursos de
pós-graduação em medicina e odontologia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul esclarece:
"No
interesse de consolidar o uso e a prática do consentimento
informado no Brasil, seria conveniente uma revitalização
da classe médica nas novas dimensões éticas
da profissão levantadas nas últimas décadas.
Do mesmo modo, a adequada preparação e funcionamento
das Comissões de Ética, Comitês de Ética
Hospitalar ou Comitês de Bioética na Pesquisa com
Seres Humanos - a denominação desses organismos
não é o mais importante - contribuiria eficazmente
no aprimoramento dessa e de outras práticas e atitudes
que enobrecem o exercício da medicina e prestigiam a saúde
de uma nação".
Segundo
a Constituição Federal (Art. 196) e a Constituição
Estadual (Art. 241), a saúde é direito de todos
e dever do Estado, cabendo a este implementar políticas
públicas que assegurem aos cidadãos o acesso às
ações e serviços para a sua promoção,
proteção e recuperação. Aos pacientes
que atravessam situações extraordinárias,
com prognóstico de morte iminente, é imperativo
que sejam alcançados recursos também extraordinários,
com o propósito de preservar suas vidas.
De
outra parte, a Constituição Federal (Art. 24, inciso
XII) atribui competência à União e aos Estados
para legislar concorrentemente sobre a proteção
e defesa da saúde. A Constituição Estadual,
a sua vez, no artigo 52, inciso XIV, confere à Assembléia
competência para legislar sobre as matérias referidas
no artigo 24 da Carta Magna, entre elas as previstas no inciso
XII da Carta Magna, quais sejam a proteção e defesa
da saúde. É nestes preceitos constitucionais que
está inserido e fundamentado o presente Projeto de Lei.
Além de suprir uma lacuna no ordenamento jurídico,
ele será um sinalizador seguro aos centros de excelência
na área da medicina e um estímulo ao progresso das
ciências médicas.
Valendo-me
desta mesma competência constitucional concorrente, em 1988,
no exercício de meu primeiro mandato parlamentar, tive
a honra de propor a esta Casa um Projeto de Lei estabelecendo
estímulos e fixando normas para transplantes de órgãos.
A iniciativa obteve aprovação da Assembléia
e transformou-se na Lei nº 8.750, de 09 de dezembro de 1988.
Teve, à época, repercussão nacional por ser
pioneira, e ensejou, nos anos subseqüentes, o surgimento
de importantes diplomas legais no âmbito federal. O propósito
de agora é igual ao de então: salvar vidas. Movido
pelo este ideal, faço questão que meu primeiro Projeto
de Lei nesta Legislatura se fundamente no mesmo objetivo. Como
acaba de afirmar o papa João Paulo II, "o direito
à vida é o mais fundamental de todos os direitos
humanos".
A
Constituição e a legislação infra-constitucional
acolhem e declaram um direito que as antecedeu, o direito à
vida e à saúde. Muito antes das leis positivas,
tinha o ser humano a noção clara de que a vida e
a saúde devem ser respeitadas e protegidas. Com o avanço
da ciência e da tecnologia, tornou-se necessário
disciplinar os procedimentos para assegurar às instituições
de saúde e aos seus profissionais a prática de atos
capazes de restituir a saúde aos pacientes, enfatizando
cuidados e esforços especiais aos que se encontram em estado
muito grave.
O
projeto não pretende contribuir para a prática da
obstinação terapêutica, eis que "a cura
não é infinita, tem seus limites", como declara
Firmin Roland Schramm, consultor de Bioética do Instituto
Nacional do Câncer. Entretanto, o escopo do Projeto é
o de exercer vigor ético e legal frente aos perigos da
omissão, diante das possibilidades de proteger a vida e
de contribuir para o progresso da ciência. Ninguém,
até hoje, se animou a estabelecer o limite entre a possibilidade
e a impossibilidade de curar, até porque tal limite, se
sugerido, pressuporia a estagnação da ciência.
A história da medicina inspira-se em gestos humanos e solidários
no afã de prevenir e combater a doença. A pesquisa
sistemática veio muito depois do heroísmo, do amor
ao próximo e do desprendimento compreendidos na arte de
salvar a vida.
Pode-se
aduzir, como enfático exemplo, o caso do médico
norte-americano Geoffrey Kurland, que estava acostumado a atender
pacientes terminais. Acometido de tricoleucemia, passou a submeter-se
aos mesmos procedimentos médicos que recomendava a seus
enfermos e reavaliou tudo o que fizera antes. No auge da doença,
aceitou participar de um projeto experimental para testar um medicamento
novo. O tumor regrediu, Kurland está curado e, além
de médico, é desportista e maratonista. Em entrevista
recente à revista Veja, perguntado por que foi voluntário
numa experiência com uma droga de resultados incertos, respondeu:
-
Quando descobri a doença, em 1987, as chances que eu tinha
de sobreviver eram de 40%. Já me submetia a sessões
de quimioterapia, mas no meio do tratamento aceitei participar
de um projeto médico com uma droga chamada Pentostatina,
que ainda era inédita naquela época. Ou seja, acabei
fazendo parte de uma experiência científica que iria
testar se o novo medicamento funcionava. Diante das circunstâncias
e das possibilidades de obter a cura da doença, decidi
que não teria nada a perder (grifei).
Pode-se
invocar ainda, como exemplo recente, o caso de inúmeros
pacientes de Leucemia Mielóide Crônica, nos três
Estados da Região Sul, que, tratados com um novo fármaco
em fase experimental - Glivec -, obtiveram resultados altamente
positivos. A Comissão de Saúde desta Casa acompanhou
a experiência, em 2001 e 2002, e gestionou junto ao Ministério
da Saúde e à companhia farmacêutica responsável
para adequar o preço do remédio ao poder aquisitivo
dos consumidores e viabilizar o seu fornecimento pelo Sistema
Único de Saúde - SUS.
Tenho
a convicção de que este Projeto está em condições
de ser apreciado e de merecer a aprovação de meus
ilustres pares nesta Casa. Foi elaborado na convicção
de que poderá alcançar inúmeros benefícios
às pessoas, à sociedade e à ciência,
com todo o cuidado que a Bioética recomenda, subordinado
aos princípios da justiça, do respeito à
vida e à pessoa.
Se
a saúde é um direito fundamental do ser humano,
devendo o Estado prover as condições indispensáveis
ao seu pleno exercício, não pode permanecer sem
um dispositivo que atenda às condições singulares
para socorrer o paciente terminal. A esperança e a vida
guardam relação fundamental, o mesmo ocorrendo com
a expectativa de cura face aos avanços da ciência.
Daí o presente Projeto de Lei, que espero venha a transformar-se
na "Lei da Esperança".
Sala
de Sessões, em Porto Alegre, 16 de fevereiro de 2002
Deputado Sanchotene Felice