A MORALIDADE DA CLONAGEM
Por
“moralidade da clonagem” entendo o conjunto
de argumentos morais pró e contra a utilização
da tecnologia clonagem com fins reprodutivos e/ou terapêuticos,
ou seja, consistentes em produzir seres vivos, ou partes
de seres vivos (por exemplo, órgãos e tecidos),
a princípio iguais ao original do ponto de vista
de alguma característica considerada essencial, ou
de todas.
Uma primeira pergunta, espontânea, que surge frente
a essa nova forma de reprodução e terapêutica,
consiste em perguntar se o ser humano teria o direito de
interferir nos processos naturais da vida ou – para
utilizar a linguagem religiosa - nos desígnios divinos?
Alguns respondem que sim, outros que não. Quem responde
sim o faz, via de regra, tendo em conta os possíveis
benefícios para a saúde humana: seja porque
permitiria a reprodução em casais que não
podem recorrer, satisfatoriamente, a outros meios, seja
porque a clonagem permitiria ter uma reserva de partes do
corpo sadias capazes de substituir as partes doentes. Esta
resposta é intuitivamente correta do ponto de vista
moral, pois se baseia num benefício em prol do bem-estar
humano.
Outros respondem negativamente, argumentando que os riscos,
de vários tipos, seriam muito mais importantes dos
benefícios potenciais, razão pela qual a clonagem
deveria ser banida. Mas, respondendo assim, deveriam então
responder a questão seguinte: se o Homem não
pudesse interferir nos processos naturais, na realidade
não haveria praticamente nenhum tipo de ciência
e tampouco a Medicina. Efetivamente, o que a Medicina faz
é interferir em processos naturais que não
são considerados bons, ou seja, nas doenças,
e ninguém pode razoavelmente contestar que a medicina
é a princípio algo bom, a não ser que
se acredite em alguma forma de fatalismo, o que seria completamente
contrário ao imaginário contemporâneo
da maioria das pessoas, que valoriza positivamente a saúde
e o bem-estar humanos.
Como sanitarista e bioeticista preocupado menos com o valor
da vida em si, mas com o valor da vida enquanto condição
para obter bens que considero moralmente legítimos,
isto é, com a qualidade de vida e os meios que permitem
valorizá-la, julgo que o ser humano, embora seja
também um ser natural, submetido a leis naturais
compartilhadas com os outros seres vivos, deve ser considerado
também como ser cultural e técnico. Como tal
o ser humano é alguém que tenta interferir
nos processos naturais por razões de sobrevivência
ou de saúde.
Atualmente, como já mencionei no começo, fala-se
em dois tipos de clonagem humana: a reprodutiva e a terapêutica.
A clonagem reprodutiva produz em tese um ser geneticamente
idêntico a um indivíduo existente. Digo “em
tese” porque o ser clonado compartilha só o
DNA do núcleo do original, que é só
uma parte do genoma de uma célula visto que existe
ainda o DNA das mitocôndrias (que não é
reproduzido visto que a clonagem pode ser utilizada para
evitar doenças de origem mitocondrial); não
conhecemos ainda bem a estrutura do genoma, nem suas funções
exatas, nem como ele evolui (questões estudadas pelos
emergentes âmbitos da genômica estrutural, funcional
e evolutiva) e, sobretudo, não sabemos quais genes
sintetizam quais proteínas e como (estudos feitos
pela recém nascida proteômica). No entanto,
essas não são questões morais, mas
técnicas. Sendo assim, a moralidade da clonagem reprodutiva
implica em ponderar se ela é lícita, ou não,
tendo em conta que pode vir ao encontro do aumento da infertilidade
humana: deste ponto de vista pode ser considerada um bem
pois evita sofrimentos evitáveis. Este tipo de clonagem
pode, por exemplo, ajudar casais que queiram ter um filho
sem recorrer à reprodução assistida
através de um doador externo (chamada heteróloga)
ou que queiram selecionar o sexo de sua cria para evitar
doenças genéticas ligadas ao sexo.
Já a clonagem terapêutica é considerada
menos problemática visto que tem como finalidade
a terapia contra determinadas doenças de origem genética.
Atualmente conhecem-se dezenas, senão centenas, desse
tipo de doenças, tais como distrofia muscular progressiva,
diabetes, Alzheimer, Parkinson, doenças autoimunitárias,
cânceres do sangue (leucemias), etc. Mas no futuro
serão certamente milhares pois este campo de pesquisa
está em pleno desenvolvimento. Portanto, a clonagem
terapêutica é moralmente legítima porque
permite o desenvolvimento de terapias úteis a um
grande número de pessoas, evitando seu sofrimento
e melhorando em princípio sua qualidade de vida.
Do meu ponto de vista, ambos os tipos de clonagem são
moralmente defensáveis e não vejo uma diferença
substantiva entre eles.
Uma das questões muito debatida nos últimos
anos, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, é
a clonagem de embriões para fins terapêuticos,
mas não considero que a clonagem de embriões
traz novas questões, diferentes daquelas que dizem
respeito às pesquisas sobre os embriões (nisso
concordo com o bioeticista australiano Peter Singer).
Ultimamente vem se discutindo muito sobre a utilização
das assim chamadas células-tronco (stem cells em
inglês), que são células ainda indiferenciadas
e que permitiriam fabricar qualquer tipo de tecido e órgão
desejado, desde que “reparadas” em suas características
portadoras de doenças. Tais células, tiradas
do próprio paciente - e que são portanto geneticamente
idênticas às outras células de seu organismo
– têm a vantagem de não sofrer rejeição
(contrariamente aos órgãos recebidos de doadores),
podendo-se vislumbrar, num futuro não muito longínquo,
um banco de células-tronco para cada indivíduo.
Essas células-tronco, adicionadas de substâncias
adequadas e, se necessário, “reparadas”,
podem dar origem ao tecido desejado, regenerando portanto
a parte do organismo afetada pela doença.
Atualmente, existem três fontes conhecidas de células-tronco:
(1) aquelas possuídas a princípio por qualquer
organismo humano, jovem ou velho que seja (mas com a tendência
a diminuir com a velhice), e que estão presentes
na medula óssea, no sangue e outros tecidos; tais
células têm a vantagem de evitar a rejeição
pelo organismo, mas a desvantagem atual de não sabermos
ainda se existem em quantidade suficiente em cada organismo
e se podem diferenciar-se em qualquer tipo de tecido (totipotência),
além de não servirem, sem manipulação,
no caso do doador ser portador de doenças de origem
genética; (2) aquelas contidas no cordão umbilical,
que é reconhecidamente rico em células-tronco;
tais células têm também a desvantagem
de não sabermos ainda com certeza se são totipotentes;
(3) as embrionárias, que sabemos que são totipotentes.
Dos dois tipos de clonagem – como vimos – a
terapêutica é evidentemente a mais aceitável
moralmente, embora, no meu entender, existam bons argumentos
também para a aceitação moral da primeira,
apesar de ser quase universalmente ainda rejeitada.
A possibilidade de se clonar um ser humano existe. No entanto,
várias perguntas ainda estão sem respostas:
deve-se fazer a clonagem? Quem serão os beneficiados?
Quais serão os problemas não previstos? Quais
as possíveis e prováveis conseqüências?
Como tudo o que é novo, não se pode prever
exatamente o que acontecerá, mas este não
é um argumento suficiente para não tomar decisões
pois o imobilismo pode ter conseqüências daninhas.
Agora, muitas vezes, usa-se o argumento de que não
se deve fazer nada, quando não se pode prever o que
vai acontecer, aplicando assim o princípio da prudência,
decorrente de uma espécie de “hermenêutica
da suspeição” segundo a qual as conseqüências
negativas possíveis, embora duvidosas, são
tidas como certas (este argumento é defendido pelo
filósofo Hans Jonas). No entanto, a prudência
pode ser uma coisa muito boa em determinados casos, mas
também pode ser muito ruim por poder ter conseqüências
catastróficas e, neste caso, devemos justificar a
omissão por sermos moralmente imputáveis tanto
pelo feito como pelo omitido, o que está claramente
inscrito na condenação moral e jurídica
por “omissão de socorro”. Ou seja, embora
a prudência possa ser considerada prima facie uma
virtude moral (isto é válida a menos que existam
valores julgados mais importantes), às vezes é
preciso desrespeitá-la e tomar uma decisão
e, para tomá-la, é preciso ter claro a justificativa
ética para essa ação (ou sua omissão).
Assim, se temos a possibilidade de mudar a nossa biologia
em prol de uma melhor qualidade de vida e de saúde
(como já permite a medicina genômica e promete
a proteômica) e não o fazemos, poderemos ser
declarados responsáveis, pelas gerações
futuras, por não termos tomado essa decisão
fundamental quando poderíamos tê-la tomada
(um pouco como Pôncio Pilato). Isso implica que, do
ponto de vista ético, somos responsáveis não
só pelo mal que fazemos, mas também, por omissão,
pelo bem que poderíamos ter feito e não fizemos.
Assim sendo, pode-se afirmar que, do ponto de vista bioético,
o ser humano não só tem o direito de interferir
nos processos naturais, como também tem essa necessidade
vital que pode ser eticamente defendida. Caso contrário,
não haveria progresso, nem civilização.
Portanto, o problema não é se intervir, ou
não, mas como interferir nesses processos naturais
e dizer quais são as precauções que
devem ser tomadas para que isso não se reverta em
algo negativo.
Do ponto de vista ético, não vejo nenhuma
razão sólida para não fazer a clonagem
humana, seja reprodutiva ou terapêutica. Não
vejo problemas, por exemplo, numa mulher, que não
pode ter um bebê pelo método natural, optar
por ter uma criança supostamente igual a ela ou ao
seu parceiro, através da clonagem. De qualquer maneira
essa “igualdade” morfológica não
implica a sua “igualdade” em todas as dimensões
do humano (psicológica, cultural, etc.), pois essas
outras dimensões são o produto da interação
com o meio ambiente, o meio cultural e social. O que faz
a identidade propriamente humana é de fato o produto
das intricadas interações eco-bio-psico-socio-culturais
(como se diz). Portanto - costumam dizer os lógicos
(e isso já era um argumento utilizado pelos escolásticos)
– a identidade no sentido do “idêntico”
(latim idem) não é a mesma coisa da identidade
no sentido do “mesmo” (latim ipse): um clone
meu pode ser idêntico a mim, mas não ser o
mesmo que eu da mesma maneira que um clone de Hitler (contrariamente
à mensagem passada pelo filme “meninos do Brasil”)
não será necessariamente nazista nem um clone
de Jesus Cristo será necessariamente cristão!
Ademais, do ponto de vista biológico, existem seres
idênticos por processos naturais: os gêmeos
homozigotos ou univitelinos, os quais têm o mesmo
patrimônio genético mas personalidades diferentes.
Se condenarmos os clones isso implicaria no fato de que
criar dois seres iguais seria também moralmente reprovável,
mas isso seria razoável? Mudando de linguagem: vamos
dar uma reprovação moral à natureza?
Pensando dessa forma, todos os gêmeos univitelinos
do mundo seriam considerados uma espécie de aberração
do ponto de vista moral. Acho que adotar esse caminho é
muito perigoso, porque ele é discriminador. Temos
que tomar muito cuidado para não sermos discriminatórios
em relação aos assim chamados idênticos,
o que seria tão reprovável como discriminar
os “diferentes”! Para mim, a bioética,
além de ser uma disciplina acadêmica, tem um
papel muito importante em tentar evitar todas as formas
discriminatórias possíveis: por isso é
uma ética aplicada com forte preocupação
democrática. Além disso, a bioética
tem que aplicar valores ou princípios morais que
sejam os mais gerais possíveis, para não criar
éticas ad hoc, o que implicaria também em
discriminação e injustiças. Portanto,
se eu discrimino os clones, vou necessariamente discriminar
os idênticos, como são os gêmeos.
No fundo, tanto a clonagem terapêutica como a reprodutiva
são como qualquer outra técnica médica:
preventivas ou reparadoras, e a prevenção
é importante do ponto de vista da saúde pública.
Com efeito, os testes preditivos conseguem detectar probabilidades
de adoecimento, o que é positivo numa política
sanitária preventiva. No entanto, deve-se ter prudência
para não discriminar os eventuais portadores de doenças
futuras. Para que os testes preditivos não sejam
usados de modo discriminatório e abusivo, é
preciso que se tenham mecanismos de controle social, como
leis específicas.
Para mim, como para muitos bioeticistas, a questão
mais problemática da clonagem é a sua utilização
para melhorar a linhagem. Essa questão pode ter conseqüências
nefastas, pois se poderia em tese querer criar uma linhagem
de “super-homens”, com características
muito diferentes daquelas dos demais humanos, supostamente
mais adaptados a condições naturais adversas
e mais performantes em termos de inteligência, força
física, capacidade laboral, etc. Isso pode ser muito
complicado de vários pontos de vista, uma vez que
seria preciso, por exemplo, monitorar os eventuais “defeitos”
implicados pelas mutações genéticas
a longo prazo; evitar abusos de poder de uma “casta”
sobre as demais (os “fortes” sobre os “fracos”,
os “bonitos” sobre os “feios”, os
“inteligentes” sobre os “burros”...
ou vice-versa), etc. Para seres humanos, que têm longo
ciclo de vida, seriam necessárias várias gerações
para detectar, por exemplo, os aspectos negativos resultantes
dessa mutação, monitorá-los e mantê-los
sob controle. Portanto, isso implicaria numa espécie
de “policiamento” de muito tempo, que pode implicar
em formas tirânicas insuportáveis. Por outro
lado, é importante refletir sobre o que significam
a educação, a boa higiene, a prática
de esportes e tantos outros conselhos que damos às
pessoas e que, em alguns momentos, impomos a nossos filhos.
Esses “conselhos” nada mais são do que
uma forma de tentar melhorar o ser humano. Todos os sistemas
educativos tentam, de alguma forma, melhorar o ser humano,
inclusive tornando-o capaz de criar soluções
criativas para antigos e novos desafios e de ser autônomo.
Sem essa competência não haveria, aliás,
nenhum progresso científico, nem teríamos
chegado à discussão atual sobre a moralidade
da clonagem! Comparativamente, hoje, vivemos melhor e temos
maior expectativa de vida do que antigamente, o que não
nos impede de querermos melhorar ainda, inclusive utilizando
a clonagem. No entanto, devido aos problemas técnicos
ainda sem respostas claras, a clonagem reprodutiva deve
por enquanto ser encarada como uma possibilidade futura.
Fermin
Roland Schramm
Notas
Artigo publicado no jornal
arte & política, ano V, número XV, de
26 de julho de 2002, pp. 4-5.
PhD. Bioeticista, Pesquisador
Associado da Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz, ENSP/FIOCRUZ, e
Consultor em bioética do Instituto Nacional do Câncer,
INCA.