PROJETO
DE LEI Nº 90, DE 1999
Autor:
Senador Lúcio Alcântara
Dispõe sobre Reprodução Assistida
O
CONGRESSO NACIONAL decreta:
SEÇÃO
I
DOS
PRINCÍPIOS GERAIS
Artigo
1º
Constituem técnicas de Reprodução Assistida
(RA) aquelas que importam na implantação artificial
de gametas ou embriões humanos no aparelho reprodutor de
mulheres receptoras com a finalidade de facilitar a procriação.§
1º Para os efeitos desta Lei, atribui-se a denominação
de:
I - embriões humanos aos produtos da
união in vitro de gametas humanos, qualquer que seja a
idade de seu desenvolvimento;
II - usuários às mulheres ou aos
casais que tenham solicitado o emprego de RA com o objetivo de
procriar;
III - criança ao indivíduo nascido em
decorrência do emprego de RA;
IV - gestação ou maternidade de substituição
ao caso em que uma doadora temporária de útero tenha
autorizado sua inseminação artificial ou a introdução,
em seu aparelho reprodutor, de embriões fertilizados in
vitro, com o objetivo de gerar uma criança para os usuários.
Artigo
2º
A
utilização da RA só será permitida,
na forma autorizada pelo Poder Público e conforme o disposto
nesta Lei, para auxiliar na resolução dos casos
de infertilidade e para a prevenção e tratamento
de doenças genéticas ou hereditárias, e desde
que:
I - tenha
sido devidamente constatada a existência de infertilidade
irreversível ou, caso se trate de infertilidade inexplicada,
tenha sido obedecido prazo mínimo de espera, na forma estabelecida
em regulamento;
II - os
demais tratamentos possíveis tenham sido ineficazes ou
ineficientes para solucionar a situação de infertilidade;
III - a
infertilidade não decorra da passagem da idade reprodutiva;
IV - a
receptora da técnica seja uma mulher capaz, nos termos
da lei, que tenha solicitado ou autorizado o tratamento de maneira
livre e consciente, em documento de consentimento informado a
ser elaborado conforme o disposto no artigo 3º;
V - exista
probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco
grave de saúde para a mulher receptora ou a criança;
VI - no
caso de prevenção e tratamento de doenças
genéticas ou hereditárias, haja indicação
precisa com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica.
SEÇÃO
II
DO
CONSENTIMENTO INFORMADO
Artigo
3º -
O consentimento informado será obrigatório e extensivo
aos cônjuges e companheiros em união estável,
em documento redigido em formulário especial, no qual os
usuários manifestem, pela aposição de suas
assinaturas, terem dado seu consentimento para a realização
das técnicas de RA e terem sido esclarecidos sobre o seguinte:
I - os
aspectos técnicos e as implicações médicas
das diferentes fases das técnicas de RA disponíveis,
bem como os custos envolvidos em cada uma delas;
II - os
dados estatísticos sobre a efetividade das técnicas
de RA nas diferentes situações, incluídos
aqueles específicos do estabelecimento e do profissional
envolvido, comparados com os números relativos aos casos
em que não se recorreu à RA;
III - a
possibilidade e probabilidade de incidência de acidentes,
danos ou efeitos indesejados para as mulheres e para as crianças;
IV - as
implicações jurídicas da utilização
da RA, inclusive quanto à paternidade da criança;
V - todas
as informações concernentes à licença
de atuação dos profissionais e estabelecimentos
envolvidos;
VI - demais
informações definidas em regulamento.
§
1º
O consentimento mencionado neste artigo, a ser efetivado conforme
as normas regulamentadoras que irão especificar as informações
mínimas a serem transmitidas, será extensivo aos
doadores e seus cônjuges ou companheiros em união
estável.
§ 2º No
caso do parágrafo anterior, as informações
mencionadas devem incluir todas as implicações decorrentes
do ato de doar, inclusive a possibilidade de a identificação
do doador vir a ser conhecida pela criança e, em alguns
casos, de o doador vir a ser obrigado a reconhecer a filiação
dessa criança, em virtude do disposto no artigo 12.
§ 3º O
consentimento deverá refletir a livre manifestação
da vontade dos envolvidos, vedada qualquer coação
física ou psíquica, e o documento originado deverá
explicitar:
I - a
técnica e os procedimentos autorizados pelos usuários;
II - o
destino a ser dado, no caso de divórcio ou separação
do casal, aos embriões excedentes que vierem a ser preservados
na forma do §4º do artigo 9º;
III - as
circunstâncias em que os doadores autorizam ou desautorizam
a utilização de seus gametas e embriões.
§
4º No
caso de utilização da RA para a prevenção
e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias,
o documento deve conter a indicação precisa da doença
e as garantias de diagnóstico e terapêutica, além
de mostrar claramente o consentimento dos receptores para as intervenções
a serem efetivadas sobre os gametas ou embriões.
§ 5º O
consentimento só será válido para atos lícitos
e não exonerará os envolvidos em práticas
culposas ou dolosas que infrinjam os limites estabelecidos nesta
Lei e em seus regulamentos.
SEÇÃO
III
DOS
ESTABELECIMENTOS E PROFISSIONAIS
Artigo
4º - Cabe
a clínicas, centros, serviços e demais estabelecimentos
que aplicam a RA a responsabilidade sobre:
I - o
recebimento de doações, a coleta, o manuseio, o
controle de doenças infecto-contagiosas, a conservação,
a distribuição e a transferência do material
biológico humano utilizado na RA, vedando-se a transferência
a fresco de material doado;
II - o registro de todas as informações
relativas aos doadores desse material e aos casos em que foi utilizada
a RA, pelo prazo de vinte e cinco anos após o emprego das
técnicas em cada caso;
III - a
obtenção do consentimento informado dos usuários
de RA, doadores e respectivos cônjuges ou companheiros em
união estável, na forma definida no artigo anterior.
Parágrafo
único.
As normas para o cumprimento do disposto neste artigo serão
definidas em regulamento.
Artigo
5º - Para
obter sua licença de funcionamento, clínicas, centros,
serviços e demais estabelecimentos que aplicam RA devem
cumprir os seguintes requisitos mínimos:
I - funcionar
sob a direção de um profissional médico,
devidamente licenciado para realizar a RA, que se responsabilizará
por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados;
II - dispor
de recursos humanos, técnicos e materiais condizentes com
as necessidades científicas para realizar a RA;
III - dispor
de registro permanente de todos os casos em que tenha sido empregada
a RA, ocorra ou não gravidez, pelo prazo de vinte e cinco
anos;
IV - dispor
de registro permanente dos doadores e das provas diagnósticas
realizadas no material biológico a ser utilizado na RA
com a finalidade de evitar a transmissão de doenças
e manter esse registro pelo prazo de vinte e cinco anos após
o emprego do material.
§ 1º A
licença mencionada no caput, obrigatória para todos
os estabelecimentos e profissionais médicos que pratiquem
a RA, será válida por dois anos e renovável
ao término de cada período, podendo ser revogada
em virtude do descumprimento de qualquer disposição
desta Lei ou de seus regulamentos.
§ 2º O
profissional mencionado no inciso I não poderá estar
respondendo, na Justiça ou no órgão de regulamentação
profissional da categoria, a processos éticos, civis ou
penais relacionados ao emprego de RA.
§ 3º O
registro citado no inciso III deverá conter, em prontuários,
elaborados inclusive para a criança, e em formulários
específicos, a identificação dos usuários
e doadores, as técnicas utilizadas, os procedimentos laboratoriais
de manipulação de gametas e embriões, a ocorrência
ou não de gravidez, o desenvolvimento das gestações,
os nascimentos, as mal-formações de fetos ou recém-nascidos
e outros dados definidos em regulamento.
§ 4º
Em relação aos doadores, o registro citado no inciso
IV deverá conter, em prontuários individuais, a
identidade civil, os dados clínicos de caráter geral,
uma foto acompanhada das características fenotípicas
e uma amostra de material celular.
§ 5º As
normas para o cumprimento deste artigo serão definidas
em regulamento.
SEÇÃO
IV
DAS
DOAÇÕES
Artigo
6º - Será
permitida a doação de gametas e embriões,
sob a responsabilidade dos estabelecimentos que praticam a RA,
vedada a remuneração dos doadores e a cobrança
por esse material, a qualquer título.
§ 1º Os
estabelecimentos que praticam a RA estarão obrigados a
zelar pelo sigilo da doação, impedindo que doadores
e usuários venham a conhecer reciprocamente suas identidades,
e pelo sigilo absoluto das informações sobre a criança
nascida a partir de material doado.
§ 2º Apenas
a criança terá acesso, diretamente ou por meio de
um representante legal, a todas as informações sobre
o processo que a gerou, inclusive à identidade civil do
doador, nos casos autorizados nesta Lei, obrigando-se o estabelecimento
responsável pelo emprego da RA a fornecer as informações
solicitadas.
§ 3º Quando
razões médicas indicarem ser de interesse da criança
obter informações genéticas necessárias
para sua vida ou sua saúde, as informações
relativas ao doador deverão ser fornecidas exclusivamente
para o médico solicitante.
§ 4º No
caso autorizado no parágrafo anterior, resguardar-se-á
a identidade civil do doador, mesmo que o médico venha
a entrevistá-lo para obter maiores informações
sobre sua saúde.
§ 5º A
escolha dos doadores será responsabilidade do estabelecimento
que pratica a RA e deverá garantir, tanto quanto possível,
semelhança fenotípica e compatibilidade imunológica
entre doador e receptor.
§ 6º Com
base no registro de gestações, o estabelecimento
que pratica a RA deverá evitar que um mesmo doador venha
a produzir mais de duas gestações de sexos diferentes
numa área de um milhão de habitantes.
§ 7º
Não poderão ser doadores os dirigentes, funcionários
e membros de equipe do estabelecimento que pratica a RA ou seus
parentes até quarto grau.
Artigo
7º - Fica
permitida a gestação de substituição
em sua modalidade não remunerada conhecida como doação
temporária do útero, nos casos em que exista um
problema médico que impeça ou contra-indique a gestação
na usuária e desde que haja parentesco até o segundo
grau entre ela e a mãe substituta ou doadora temporária
do útero.
Parágrafo
único.
A gestação de substituição não
poderá ter caráter lucrativo ou comercial, ficando
vedada sua modalidade remunerada conhecida como útero ou
barriga de aluguel.
SEÇÃO
V
DOS
GAMETAS E EMBRIÕES
Artigo
8º
Na execução de técnica de RA, poderão
ser transferidos no máximo quatro embriões a cada
ciclo reprodutivo da mulher receptora.
Artigo
9º
Os estabelecimentos que praticam a RA ficam autorizados a preservar
gametas e embriões humanos, doados ou depositados apenas
para armazenamento, pelos métodos permitidos em regulamento.
§
1º Não
se aplicam aos embriões originados in vitro, antes de sua
introdução no aparelho reprodutor da mulher receptora,
os direitos assegurados ao nascituro na forma da lei.
§
2º O
tempo máximo de preservação de gametas e
embriões será definido em regulamento.
§
4º O
número total de embriões produzidos em laboratório
durante a fecundação in vitro será comunicado
aos usuários para que se decida quantos embriões
serão transferidos a fresco, devendo o restante ser preservado,
salvo disposição em contrário dos próprios
usuários, que poderão optar pelo descarte, a doação
para terceiros ou a doação para pesquisa.
§
5º Os
gametas e embriões depositados apenas para armazenamento
só poderão ser entregues ao indivíduo ou
casal depositante, sendo que, neste último caso, conjuntamente
aos dois membros do casal que autorizou seu armazenamento.
§
4º É
obrigatório o descarte de gametas e embriões:
I
- doados
há mais de dois anos;
II
- sempre
que for solicitado pelos doadores;
III
- sempre
que estiver determinado no documento de consentimento informado;
IV
- nos
casos conhecidos de falecimento de doadores ou depositantes;
V
- no
caso de falecimento de pelo menos uma das pessoas que originaram
embriões preservados.
Artigo
10º - Ressalvados
os casos de material doado para pesquisa, a intervenção
sobre gametas ou embriões in vitro só será
permitida com a finalidade de avaliar sua viabilidade ou detectar
doenças hereditárias, no caso de ser feita com fins
diagnósticos, ou de tratar uma doença ou impedir
sua transmissão, no caso de ser feita com fins terapêuticos.
§
1º A
pré-seleção sexual de gametas ou embriões
só poderá ocorrer nos casos em que os usuários
recorram à RA em virtude de apresentarem hereditariedade
para gerar crianças portadoras de doenças ligadas
ao sexo.
§
2º As
intervenções autorizadas no caput e no parágrafo
anterior só poderão ocorrer se houver garantias
reais de sucesso.
§
3º
O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in
vitro será definido em regulamento.
SEÇÃO
VI
DA
FILIAÇÃO DA CRIANÇA
Artigo
11º - A
criança terá assegurados todos os direitos garantidos
aos filhos na forma da lei.
Parágrafo
único.
Ressalvados os casos especificados nos §§ 2º e
3º do art. 12, os pais da criança serão os
usuários.
Artigo
12º - A
criança nascida a partir de gameta ou embrião doado
ou por meio de gestação de substituição
terá assegurado, se assim o desejar, o direito de conhecer
a identidade do doador ou da mãe substituta, no momento
em que completar sua maioridade jurídica ou, a qualquer
tempo, no caso de falecimento de ambos os pais.
§
1º A
prerrogativa garantida no caput poderá ser exercida, desde
o nascimento, em nome de criança que não possua
em seu registro civil o reconhecimento de filiação
relativa a pessoa do mesmo sexo do doador ou da mãe substituta,
situação em que ficará resguardado à
criança, ao doador e à mãe substituta o direito
de obter esse reconhecimento na forma da lei.
§
2º No
caso em que tenha sido utilizado gameta proveniente de indivíduo
falecido antes da fecundação, a criança não
terá reconhecida a filiação relativa ao falecido.
§
3º No
caso de disputa judicial sobre a filiação da criança,
será atribuída a maternidade à mulher que
deu à luz a criança, exceto quando esta tiver recorrido
à RA por ter ultrapassado a idade reprodutiva, caso em
que a maternidade será outorgada à doadora do óvulo.
§
4º Ressalvado
o disposto nos §§ 1º e 3º, não se aplica
ao doador qualquer direito assegurado aos pais na forma da lei.
SEÇÃO
VII
DOS
CRIMES
Artigo
13º - É
crime:
I
- praticar
a RA sem estar previamente licenciado para a atividade;
Pena:
detenção, de seis meses a dois anos,
e multa.
II
- praticar
RA sem obter o consentimento informado dos receptores e dos doadores
na forma determinada nesta Lei, bem como fazê-lo em desacordo
com os termos constantes do documento de consentimento assinado
por eles;
Pena:
detenção, de seis meses a dois anos,
e multa.
III
- envolver-se
na prática de útero ou barriga de aluguel, na condição
de usuário, intermediário, receptor ou executor
da técnica;
Pena:
detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
IV
- fornecer
gametas ou embriões depositados apenas para armazenamento
a qualquer pessoa que não seja o próprio depositante,
bem como empregar esses gametas e embriões sem a autorização
deste;
Pena:
detenção, de seis meses a dois anos,
e multa.
V
- intervir
sobre gametas ou embriões in vitro com finalidade diferente
das permitidas nesta Lei;
Pena:
detenção, de seis meses a dois anos,
e multa.
VI
- deixar
de manter as informações exigidas nesta Lei, na
forma especificada, ou recusar-se a fornecê-las nas situações
previstas;
Pena:
detenção, de seis meses a dois anos,
e multa.
VII
- utilizar
gametas ou embriões de doadores ou depositantes sabidamente
falecidos;
Pena:
detenção, de dois a seis meses, ou multa.
VIII
- implantar mais de quatro embriões na mulher
receptora;
Pena:
detenção, de dois a seis meses, ou multa.
IX
- realizar
a pré-seleção sexual de gametas ou embriões,
ressalvado o disposto nesta Lei;
Pena:
detenção,
de dois a seis meses, ou multa.
X
- conservar
gametas ou embriões doados por período superior
a dois anos ou utilizar esses gametas e embriões;
Pena:
detenção, de dois a seis meses, ou multa.
§
1º No
caso de gametas ou embriões depositados por casal, incide
no crime definido no inciso IV a pessoa que os fornecer a um dos
membros do casal isoladamente.
§
2º A
prática de qualquer uma das condutas arroladas neste artigo
acarretará a perda da licença do estabelecimento
de reprodução assistida e do profissional responsável,
sem prejuízo das demais sanções legais cabíveis.
SEÇÃO
VIII
DAS
DISPOSIÇÕES FINAIS
Artigo
14º - O
Poder Público editará os regulamentos necessários
à efetividade da Lei, inclusive as normas especificadoras
dos requisitos para a execução de cada técnica
de RA, concederá a licença aos estabelecimentos
e profissionais que praticam a RA e fiscalizará a atuação
de ambos.
Artigo
15º - Esta
Lei entrará em vigor cento e oitenta dias após sua
publicação.
JUSTIFICAÇÃO
Reprodução
Assistida (RA) é a tecnologia que importa na implantação
artificial de espermatozóides ou embriões humanos
no aparelho reprodutor de mulheres receptoras com a finalidade
de facilitar a procriação.
Basicamente,
as técnicas de RA pertencem a duas modalidades: aquelas
em que se introduz no aparelho reprodutor da mulher o esperma,
genericamente denominadas inseminação artificial
(IA), e a fertilização in vitro (FIV), na qual o
óvulo e o esperma são juntados em um tubo de proveta
e posteriormente se introduzem alguns embriões no aparelho
reprodutor da futura mãe
A IA subdivide-se em inseminação intrauterina (IIU),
em que o esperma é colocado no útero, transferência
intrafalopiana de gametas (IFTG), em que os espermatozóides
são introduzidos nas trompas de falópio, e inseminação
intraperitoneal (IIP).
Na implementação dessas técnicas, pode-se
utilizar sêmen e/ou óvulo homólogo (pertecente
ao marido ou à própria mulher, respectivamente)
ou heterólogo (doado por terceiros). Conforme a origem
dos espermatozóides, portanto, a IA pode ser classificada
em inseminação artificial intra-conjugal (IAC) e
inseminação artificial com doador de esperma (IAD).
Há também o caso da gestação ou maternidade
de substituição, em que uma mulher é contratada
para dar à luz uma criança para outra mulher e que
pode ocorrer tanto por IA, caso em que o óvulo pertence
à mulher contratada (que, conseqüentemente, se torna
a mãe genética e gestacional do bebê), quanto
por FIV, com óvulo e/ou sêmen do casal contratante
ou de terceiros. Se o acordo envolver retribuição
financeira, o caso é conhecido por "útero de
aluguel" ou "barriga de aluguel". Senão,
trata-se de uma "doação temporária de
útero".
Diante de todas essas possibilidades, a grande questão
surgida a partir do desenvolvimento da RA diz respeito exatamente
a suas conseqüências para o estado de filiação
da criança.
Verificam-se os malefícios da RA, de forma bastante clara,
em situações tais como o caso apresentado em artigo
de revista, no qual uma menina de dois anos veio a ser declarada
"criança sem pais" por um juiz do Tribunal Superior
de Justiça da Califórnia.
Segundo o artigo, a garota, "fruto de um processo de fertilização
artificial, obtido a partir de espermatozóides e óvulos
de doadores anônimos", foi "gestada por uma mãe
de aluguel", contratada por um casal no qual o homem apresentava
baixa contagem de espermatozóides e a mulher, por sofrer
de endometriose, não conseguia liberar os óvulos
para fecundação e nem podia levar a termo uma gestação.
O texto informa que, um mês antes do nascimento da criança,
o homem decidiu separar-se da mulher e, para "livrar-se dos
encargos com a pensão alimentícia", "disse
que nunca quis ter um filho dessa maneira e passou a repudiar
qualquer responsabilidade paterna". "A Justiça,
em princípio, aceitou o argumento". A mulher que desejou
a criança foi autorizada a adotá-la, mas quer "obrigar
o ex-marido a cumprir o contrato assinado por ocasião da
concepção artificial".
O resultado disso é um ser humano que, "como não
tem nenhum vínculo genético com o casal, nem com
a mãe de aluguel", e descende de pais biológicos
anônimos, "existe numa espécie de vácuo".
Sobre o caso, médico brasileiro ouvido pela revista declarou
que o casal deveria ter recorrido a uma adoção,
em vez de se utilizar desse arranjo "antinatural" firmado
em contrato, uma vez que nenhum dos dois envolvidos transmitiria
seus genes ao bebê, nem a mulher poderia vivenciar a gestação.
Tudo bem que a situação acima descrita corresponda
a um caso de utilização da RA com final infeliz.
Porém, mesmo em casos com final feliz, a conseqüência
normal do emprego dessa tecnologia é o surgimento de situações
anômalas que, até então, ou não poderiam
ocorrer, ou, quando ocorriam, eram consideradas infortúnios
para os envolvidos. Referimo-nos aqui às situações
de "criança sem pai" (em alguns casos mais raros,
"criança sem mãe), "criança com
duas mães" e "criança com dois pais".
O emprego da RA pode originar uma "criança sem pai"
em dois casos: quando o pai genético, do qual foi retirado
esperma, morre antes da concepção ou quando uma
criança nasce na ausência legal de um pai, como,
por exemplo, o filho gerado como "produção
independente" de uma mulher solteira fecundada com esperma
doado (mais raramente, tem-se observado a situação
de "criança sem mãe", quando dois homens
contratam uma mulher para gerar uma criança que será
cuidada apenas por eles dois).
Em relação ao primeiro caso, situação
similar pode acontecer por "meios naturais" quando um
homem morre deixando grávida sua esposa. Um acontecimento
como esse - considerado, via de regra, uma tragédia para
a criança que nascerá postumamente - origina uma
situação nunca desejada por qualquer pessoa.
Já o segundo caso, até há pouco tempo considerado
bastante desagradável para a criança (o filho "bastardo"
de mãe solteira que nascia rejeitado pelo pai), deixou,
em certos círculos da sociedade urbana ocidental, de representar
um acontecimento perturbador e passou até a ser desejado
por algumas mulheres que consideram o nascimento de uma criança
um evento a ser reservado só para a mãe.
A "criança com duas mães" - verificada
na gestação de substituição - possui
uma mãe genética (que doou seu óvulo para
a obtenção do embrião in vitro) e uma mãe
gestacional (que recebeu o embrião em seu útero
e deu à luz a criança). É nessa modalidade
que mais se evidencia a artificialidade das técnicas, pois
tal situação nunca ocorre por meios naturais
A última situação refere-se à "criança
com dois pais", que nasce quando um homem infértil
- pai legal - autoriza a inseminação artificial
de sua mulher com esperma de um doador - pai genético -
, caso freqüente no universo de utilização
da RA. Nesses casos, os interesses da criança relativos
à filiação permanecem parcialmente preservados,
uma vez que ela tem como pais um casal legalmente constituído.
Considerando a possibilidade de utilização da RA,
chega-se então à seguinte questão: é
correta a criação deliberada dessas situações?
A resposta a essa pergunta só poderia ser afirmativa se
viesse embasada na hipótese de que para uma criança,
ou para as crianças em geral, é melhor não
ter um dos genitores ou ter mais de um genitor do mesmo sexo,
do que ter só um pai e uma mãe da forma como ocorre
naturalmente. É muito difícil tentar avaliar a correção
dessa hipótese com base em fatos objetivos ou experiências
que não sejam somente individuais, ou com base em postulados
científicos (apesar de já haver evidências
consistentes, baseadas em pesquisas disponíveis, que contrariam
a hipótese de que é melhor ter somente mãe,
por exemplo).
Porém, ainda que faltem esses postulados científicos
ou constatações que possam ser estendidas para toda
uma sociedade, é possível proceder a uma análise
dos riscos a que se submetem as crianças nascidas com o
emprego de RA.
Isso requer seja adotado o pressuposto de que nada do que o homem
vem considerando como progresso até hoje permanecerá
obrigatoriamente aceitável no futuro, sem uma avaliação
concomitante sobre os riscos aos quais esse progresso expõe
a humanidade e sem o aperfeiçoamento dos instrumentos científicos
e tecnológicos idealizados para compensar totalmente esses
danos.
Assim sendo, da mesma forma como ocorre com um levantamento de
impacto ambiental, se a avaliação relativa ao emprego
da RA trouxer à luz a possibilidade de sérios riscos
para a criança - mesmo que esses riscos possam estar acompanhados
de possíveis vantagens - então deve-se recusar autorização
ou idealizar mecanismos para desencorajar o recurso à RA.
Acreditamos ser preciso fazer pelas crianças do futuro
o que hoje já se faz a respeito de qualquer inovação
que se deseje implementar no ambiente: se existem sérios
riscos, então as mudanças não serão
feitas, mesmo que algumas pessoas as creiam vantajosas.
Quem quer que se proponha a uma análise como essa, constata
facilmente que a técnica de maternidade dividida e o modelo
do genitor de um único sexo acarretam riscos sérios
o bastante para invalidar essas modalidades perante uma análise
de impacto ambiental.
É, portanto, um ser humano como todas essas crianças,
"sem genitor" ou "com dois genitores" do mesmo
sexo, o balizador das escolhas que precisaram ser feitas no âmbito
do projeto, definidas com o objetivo de tentar implementar a proteção
que a criança requer em cada situação específica.
Quanto
aos instrumentos existentes para impedir ou desencorajar as pessoas
a recorrerem às práticas passíveis de trazer
grandes riscos para a criança, observamos preliminarmente
que nenhum instrumento poderia impedir totalmente essas práticas.
Na cultura ocidental de hoje prevalece a assertiva da onipotência
dos desejos individuais. Entre esses desejos está o de
ter um filho a qualquer custo e em qualquer condição
que o sujeito determine, sem que outra pessoa possa interferir.
É um desejo muito forte e tende a prevalecer sobre a lei
e sobre o respeito à criança que irá nascer.
Outra observação constatou que ameaças de
natureza penal terão utilidade restrita aos casos específicos
em que os envolvidos venham a buscar na Justiça a solução
para seus conflitos. Essas ameaças dificilmente serão
vistas com bons olhos pela sociedade e provavelmente não
irão ter o alcance necessário para desencorajar
o recurso às técnicas, uma vez que, como a RA oferece
a oportunidade para que usuários e médicos realizem
seus desejos recíprocos de procriar e permitir a procriação,
o quadro provável é o estabelecimento de um pacto
de silêncio entre eles. Recomenda-se, portanto, definir
também outros mecanismos de dissuasão, sobretudo
aqueles que vinculem efeitos de natureza civil, no âmbito
do Direito de Família, aos atos do cidadão. A idéia
é produzir efeitos judiciais diferentes daqueles que o
sujeito estaria disposto a sofrer em decorrência de seu
comportamento.
Assim, foram propostos os seguintes dispositivos para restringir
e desencorajar, especificamente, cada uma das situações
claramente indesejáveis para a criança.
Em
relação aos casos que envolvam o desejo de utilizar
material biológico - em geral esperma - de pessoas mortas
para gerar uma criança, há que se distinguir entre
duas situações:
- a do homem que torna disponível seu esperma para permitir
a uma mulher (normalmente sua esposa) ter um filho seu mesmo após
sua morte;
-
a do doador anônimo que deposita seu esperma em um banco
de sêmen e depois morre.
No
que se refere à segunda situação, determinou-se
ao banco de sêmen que não utilize gametas de um doador
sabidamente morto. Porém, esse dispositivo não é
suficiente para garantir que o gameta a ser utilizado não
seja o de uma pessoa falecida, já que é impossível
para o estabelecimento manter registro do que ocorre com cada
pessoa após a doação. Assim, estabeleceu-se
também uma outra coerção: proibir a conservação
de esperma por tempo maior do que dois anos.
Já para evitar a primeira situação, o projeto
proíbe o banco de gametas de entregar o material depositado
a qualquer pessoa que não seja o próprio depositante.
A regra decisiva, porém, é aquela que exclui a atribuição
de paternidade ao morto. É verdade que essa regra incrementa
ainda mais o dano à criança, uma vez que ela, além
de nascer "sem pai", não poderá reclamar
descendência daquele que é seu pai biológico.
Porém somente uma dissuasão assim tão forte
pode ser capaz de evitar o emprego dessa prática prejudicial
aos interesses das crianças do futuro.
Além disso, mesmo que se outorgasse, exclusivamente à
criança e à partir de uma idade mínima, o
direito de obter o reconhecimento de sua filiação,
ainda assim teriam de persistir excluídas tanto as conseqüências
relativas aos bens - herança, por exemplo - quanto à
formalização de laços com os demais parentes
do falecido. De fato, essa é a interpretação
de Álvaro Villaça Azevedo, jurista brasileiro, que
entende ficar o eventual nascituro excluído da herança,
tanto por não poder competir com os herdeiros de seu pai
morto previamente a sua concepção, quanto por não
ser possível falar em retroação de efeitos,
uma vez que eles não podem existir antes da concepção.
Em relação à utilização de
gameta de um doador anônimo para possibilitar o nascimento
de uma criança legalmente sem pai - ou, mais raramente,
sem mãe - , o projeto propõe um meio efetivo de
dissuasão: possibilitar à criança que vier
a nascer que exerça o direito de exigir do doador o reconhecimento
de paternidade, direito esse que também deve ser estendido
ao doador que queira reclamar a paternidade da criança.
Apesar da evidente dificuldade inerente a qualquer tentativa de
rastrear e encontrar os doadores, a mera possibilidade de isso
vir a acontecer pode servir para desencorajar as pessoas a recorrerem
à prática.
Para se restringir a ocorrência de "dupla maternidade",
em primeiro lugar determinou-se que a utilização
da RA só será permitida como tratamento para os
casos de infertilidade e para prevenção e tratamento
de doenças genéticas ou hereditárias, quando
haja indicação precisa e com suficientes garantias
de diagnóstico e terapêutica. Com esse dispositivo,
busca-se evitar a gravidez artificialmente produzida em mulheres
que ultrapassaram a idade reprodutiva ou o recurso à prática
do "útero de aluguel" por mulheres que não
desejam, por qualquer motivo, viver a experiência da gravidez
e do parto.
A única exceção permitida de gestação
de substituição ou doação temporária
do útero aplica-se aos casos em que exista um problema
médico que impeça ou contra-indique a gestação
na doadora genética e desde que haja parentesco até
o segundo grau entre ela e a doadora temporária do útero
(essa gestação não pode ter qualquer fim
comercial ou lucrativo).
Como a Constituição Federal proíbe o comércio
de órgãos, tornou-se obrigatório vedar o
"útero de aluguel" (assim como o comércio
de gametas e embriões), ainda que se saiba, como dito anteriormente,
que o dispositivo será certamente desobedecido.
Porém, apesar de haver uma quase unanimidade mundial no
sentido de proibir o "útero ou barriga de aluguel",
é preciso não se iludir de que ela possa ser totalmente
abolida. Isso é especialmente verdadeiro para o Brasil,
onde a precária situação sócio-econômica
da maior parcela da população certamente propicia
a existência de mulheres dispostas a se oferecer para gerar
filhos de outras mulheres em troca de remuneração.
Em decorrência disso, foi necessário também
estabelecer claramente quem deve ficar com a criança em
caso disputa. A legislação francesa optou por atribuir
a maternidade à mãe gestacional, enquanto a jurisprudência
americana vem consolidando a solução oposta. Este
projeto, seguindo a linha francesa, determina que a mãe
será aquela que deu à luz a criança, exceto
no caso de mulheres que ultrapassaram a idade reprodutiva.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que se determinou um mecanismo
para desencorajar mulheres, tanto as de meia-idade quanto aquelas
que não sofram de infertilidade, de recorrerem à
RA pela vaidade de ter um filho fora da idade reprodutiva ou de
não se submeter aos efeitos indesejados de uma gravidez,
estabeleceu-se também a proteção para uma
outra categoria: a mãe substituta. Consideramos mais justo
proteger as mulheres que se dispuserem a alugar seu útero
por dinheiro em detrimento das que se dispuserem a pagar por ele,
independentemente das sanções legais a que os dois
grupos sejam submetidos por desobedecerem à lei.
Pois bem, além de tentar desencorajar a utilização
da RA para gerar situações potencialmente danosas
para a criança, o projeto cuidou também de tentar
resguardar seu direito à filiação.
Para resolver os questionamentos de filiação originados
de situações em que se utilizou a RA, alguns países
optaram por determinar, em lei ou nas decisões proferidas
em juízo, a preponderância da paternidade artificial
sobre a genética ou biológica, o que, além
de solucionar a situação, constituiu uma maneira
de fomentar a utilização e disseminação
da RA.
Esse caminho, entretanto, gerou situação paradoxal,
uma vez que se utilizam dois pesos e duas medidas para as diferentes
situações. No caso, por exemplo, de casais que recorram
à RA com a utilização de esperma de doador
anônimo, atribui-se a paternidade da criança ao homem
do casal, ignorando-se o papel dos genes do pai verdadeiro. Já
no caso de "aluguel de útero" em que o óvulo
provenha da mulher contratante, atribui-se-lhe a maternidade da
criança, priorizando o papel de seus genes sobre a função
exercida pela mulher geratriz.
Além dessa observação, faz-se necessária,
neste ponto, uma breve menção sobre os direitos
da personalidade humana, especialmente o direito de filiação.
Sobre o assunto, reportamo-nos a Álvaro Villaça
Azevedo:
O estado de filiação, como direito da personalidade,
está vinculado à própria natureza do homem,
que, descendendo, ex iure sanquinis, existe, nesse estado, desde
sua concepção até sua morte, como um fato
natural, independentemente de lei, que há de respeitá-lo,
por inserir-se no âmbito do Direito Natural.
Ora, o respeito à situação natural da paternidade,
da maternidade e da filiação é inerente ao
Direito Natural, devendo preservar-se, como a própria natureza,
prevalecendo sobre situações artificiais, humani
iuris.
Reafirme-se, portanto, que, quando se cuida de direitos da personalidade,
como o estado da pessoa, mormente o de filiação,
a indispensabilidade dos princípios de Direito Natural.
Dessa
forma, o direito à filiação, que inclui o
conhecimento da filiação genética e biológica
e se confunde com o direito à identidade, deveria ser respeitado
independentemente de estar disposto em lei, a qual não
deveria nunca torná-lo dispensável ou obstruir seu
exercício.
Cabe enfatizar aqui - ainda que não seja necessário
esse direito estar previsto em lei para que seja protegido - o
disposto nos artigos sete e oito da Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças,
de 20 de novembro de 1989:
Artigo
7º
1.
A
criança será registrada imediatamente após
seu nascimento e terá direito desde o momento em que nasce,
a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível,
a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles.
2.
Os
Estados Partes zelarão pela aplicação desses
direitos de acordo com sua legislação nacional e
com as obrigações que tenham assumido em virtude
dos instrumentos internacionais pertinentes, sobretudo se, de
outro modo, a criança se tornaria (sic) apátrida.
Artigo
8º
1.
Os
Estados Partes se comprometem a respeitar o direito da criança
de preservar sua identidade, inclusive a nacionalidade, o nome
e as relações familiares, de acordo com a lei, sem
interferências ilícitas.
2.
Quando
uma criança se vir privada ilegalmente de algum ou de todos
os elementos que configuram sua identidade, os Estados Partes
deverão prestar assistência e proteção
adequadas com vistas a restabelecer rapidamente sua identidade.
Assim
sendo, todas as nações deveriam salvaguardar à
criança gerada o direito de ter uma filiação
definida. Por esse motivo, e para evitar casos como o da criança
considerada "sem pais" narrado anteriormente, o projeto
dispõe que a criança nascida em decorrência
do emprego de RA terá assegurados todos os direitos garantidos
aos filhos na forma da lei e determina que os pais, salvo nos
casos especificados, serão os usuários que tenham
solicitado o emprego das técnicas para gerar a criança.
Do mesmo modo, as nações deveriam resguardar o direito
da criança de conhecer sua filiação genética
ou biológica. Por isso, estabelecemos, neste projeto o
direito de a criança conhecer a identidade de seus pais
genéticos no momento em que atinja a maioridade jurídica
(esse direito também é garantido na Suécia),
ou a qualquer tempo, diante do falecimento de seus pais. Observe-se
que o estabelecido acima se estende a qualquer caso em que tenha
ocorrido RA com o emprego de gameta heterólogo, indiscriminadamente.
No caso de criança legalmente sem pai - ou, mais raramente,
sem mãe - , o projeto possibilita-lhe, além de conhecer
a identidade do doador, exercer o direito de exigir do doador
o reconhecimento de paternidade, direito esse que também
é estendido ao doador que queira reclamar a paternidade
da criança. Apesar da evidente dificuldade inerente a qualquer
tentativa de rastrear e encontrar os doadores, a mera possibilidade
de isso vir a acontecer pode servir para desencorajar as pessoas
a contribuírem para originar esse tipo de situação
que não atende aos interesses da criança.
Há que se ressaltar que, pela lei brasileira atual, em
casos assim tanto a criança - no papel de filho - , quanto
o doador, - no de pai - , já têm o direito de "pedir
alimentos", consoante o Código Civil, em virtude de
serem parentes consangüíneos.
Assinale-se também que esse dispositivo se coaduna com
o princípio da "paternidade responsável"
erigido pela Constituição Federal de 1998 e corroborado
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que determinam
que "os filhos, havidos ou não da relação
do casamento, ou por adoção, terão os mesmos
direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação".
Espera-se, assim, que o projeto tenha o efeito de desencorajar
a doação inconseqüente e o emprego irresponsável
de gametas humanos e, portanto, a proliferação de
casos que atentem contra o direito de filiação da
criança e seu senso de identidade.
O terceiro grupo para o qual se buscou instituir proteção
legal é o dos usuários das técnicas, que
inclui todos os casais e mulheres que adquirem os serviços
e produtos - gametas e embriões - dos estabelecimentos
e profissionais de reprodução assistida. Essa proteção
é requerida para se equilibrar essa relação
comercial que apresenta, em uma ponta, indivíduos dispostos
a tudo para realizar seu desejo de procriação, e,
na outra, profissionais detentores unilaterais do conhecimento
médico e remunerados substancialmente por seus serviços.
A desigualdade dessa relação é agravada não
só pelo envolvimento emocional dos candidatos a pais, que
podem por isso mesmo ser facilmente engendrados em acertos indesejados,
mas também pela pressão econômica exercida
pela indústria de tecnologia médico-farmacêutica,
sempre pronta a patrocinar e incentivar as atividades de seu interesse.
Em relação aos usuários das técnicas,
o principal objetivo do projeto foi zelar para que suas ações
sejam tomadas de forma consciente, minimizando suas possibilidades
de serem engendrados em situações das quais possam
vir a se arrepender. Isso porque, além das conseqüências
físicas para as mulheres e das conseqüências
jurídicas relacionadas à paternidade da criança
- que o projeto busca tornar vigentes - , existe ainda a questão
da baixa efetividade das técnicas, contra seu alto custo
em termos financeiros, psicológicos e biológicos.
Os dados sobre a efetividade dos tratamentos apresentam taxas
de sucesso de 20 a 35%, quatro a sete vezes maior do que a taxa
de 5% obtida no início dos anos 80, mas ainda assim muito
baixas, sobretudo ao se considerar o sofrimento físico
e psicológico por que passam os usuários das técnicas.
Na FIV, a mulher é submetida, em média, a quatro
tentativas (uma por mês) até a gravidez. Se esta
nunca sobrevém e o casal não está adequadamente
preparado, assiste-se a um quadro de profunda depressão.
Assinale-se que a escolha dos principais objetos de proteção
da lei da forma acima explicitada orientou a redação
dos demais dispositivos do projeto. Isso porque a qualidade da
lei que busque regular a RA depende não só das distintas
opções que se adotem diante das alternativas que
se apresentam, mas também da coerência dessas opções
(se o corpo de um projeto de lei apresentar escolhas feitas sem
a menor coerência entre si, limitando de um lado aquilo
que permite de outro, na prática, a lei originada não
regulamentará nada).
Algumas das matérias abrangidas no projeto são bastante
polêmicas, como a destinação a ser dada aos
embriões excedentes. As diferentes possibilidades - doação
para terceiros, doação para pesquisas, preservação
ou descarte - esbarram nas divergentes opiniões sobre o
status existencial do embrião, opiniões que se baseiam
em critérios éticos, religiosos ou filosóficos
de cada pessoa. Alguns autores consideram que os embriões
já são gente ou seres humanos em desenvolvimento,
o que inviabilizaria o descarte, a doação para pesquisa
e mesmo a criopreservação.
Porém, conforme estatui magistrado membro da Associação
Internacional de Magistrados para Assuntos de Menores, Turim,
Itália, em artigo, já citado, que analisa as conseqüências
da reprodução artificial sobre os direitos das crianças,
as questões levantadas em relação à
RA costumam ser abordadas de vários pontos de vista éticos
ou religiosos. Isso, em sua opinião, não parece
ser suficiente, pois ele considera que o papel do legislador não
é fazer lei com base naquilo que alguns considerem estar
de acordo com a vontade de Deus, nem no que a maioria dos cidadãos
considerem estar de acordo com seus próprios princípios
éticos. Quando as leis são feitas, elas devem também,
e talvez principalmente, refletir o que parece ser útil
para a totalidade de uma certa sociedade humana ou mesmo para
toda a humanidade.
Seguindo a linha até aqui adotada de escolher as opções
menos danosas para as crianças do futuro, consideramos
que o descarte dos embriões excedentes implica menores
riscos do que a doação para terceiros ou para pesquisas.
Além disso, como o projeto já propõe um tempo
máximo de preservação permitido, não
há outra alternativa senão o descarte - a não
ser que se pretenda proibir a criação de embriões
excedentes ou obrigar o emprego desses embriões na inseminação
de terceiros ou em pesquisas, alternativas de difícil regulamentação
e fiscalização. Outrossim, se proibíssemos
a criação de embriões excedentes, estaríamos
prejudicando os usuários, uma vez que se limitariam suas
oportunidades de se submeterem novamente à técnica
de RA, no caso de insucesso na primeira tentativa.
Não se pode esquecer, no entanto, que o Código Civil
Brasileiro resguarda, desde o momento da concepção,
os direitos do nascituro. Por essa razão, o projeto determina
também que não se aplicam aos embriões fertilizados
in vitro, antes de sua introdução no aparelho reprodutor
da mulher receptora, os direitos garantidos ao nascituro na forma
da lei.
Chamamos mais uma vez a atenção para o fato de que,
ao escolher a linha mestra de proteger a criança, este
projeto fortalece o princípio da paternidade responsável
erigido na Constituição Federal e no Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Não podemos nos esquecer, entretanto, que a tarefa de regulamentar
a RA corresponde, de certa forma, a plagiar o Criador no momento
em que Ele concedeu ao ser humano a capacidade de reproduzir-se
espontânea e naturalmente. Assim, diante de tal responsabilidade,
conclamamos nossos Pares a aperfeiçoar este projeto, com
o intuito de buscarmos contribuir decisivamente para a qualidade
de vida das crianças do futuro.
Sala
das Sessões, em
Senador LÚCIO ALCANTARA
FONTE:
http://www.senado.gov.br/lucioalcantara/1999/projetos/reprodas.htm
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